REVISTA nº 7

O som que reúne pessoas e tradições

Encontro de Flautas do Jequitinhonha chega à sua quinta edição, promovendo trocas de saberes locais por meio das bandas de taquara da região

Antônio Paiva
29 Nov 2022 10 Min
O som que reúne pessoas e tradições
Bandas de Taquara se reúnem para o encerramento do 5º Encontro de Flautas do Jequitinhonha. Foto: Kika Antunes

A primeira vez que vi e ouvi uma banda de taquara tocando foi surpreendente. Há uma organicidade que faz cada grupo e cada música ser única, uma musicalidade diferente da que grandes centros urbanos estão acostumados. Ao mesmo tempo essas diferenças se complementam e constroem algo maior, não uma performance, mas algo que diz sobre um fazer comunitário, que se torna uma identidade para as comunidades. Cada grupo, da sua maneira, envolve as pessoas que param para observar e sentir aquela energia musical, potencializada pelas movimentações de seus participantes, que caminham e dançam por todo o espaço.

Essa prática tradicional e tão rica acontece nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, duas das doze mesorregiões que compõem o estado de Minas Gerais. Os dados estatísticos costumam esconder a riqueza cultural que perpassa diferentes cidades e comunidades dessas regiões, que vão desde a tecelagem até a música. E é nas zonas rurais dos municípios de Minas Novas, Capelinha, Angelândia, Setubinha, Malacacheta e Novo Cruzeiro que uma dessas grandes atividades culturais está ligada à flauta ou ao “canudo”, como ela é chamada nesses lugares. Esse instrumento é um dos protagonistas das bandas de taquara, tradicionais grupos musicais responsáveis por animar inúmeras festividades nas comunidades da região. 

As irmãs Dona Cota e Dona Lôra realizam a oficina de cerâmica durante o 5º Encontro de Flautas do Jequitinhonha. Foto: Kika Antunes

Antigamente, o nome dado a esses grupos era “marujada”, que ainda é utilizado, mas com menor frequência. O termo “banda de taquara” surgiu há mais ou menos 50 anos, quando a banda da Bem Posta participava da Festa de Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas. A presença da flauta feita com taquara (um tipo de bambu) na banda fez com que os moradores da cidade nomeassem esses grupos assim. Mais do que tocar, eles realizam leilões, levantamento de mastros, procissões, entre outras coisas. Esses grupos carregam uma tradição de séculos, que transformou e ainda transforma a região.

Além da flauta, as bandas tocam outros instrumentos tradicionais, como caixas, zabumba, reco-reco e pandeiro. Boa parte deles ainda são feitos artesanalmente, usando a taquara e outros materiais como: PVC, metal e cera de abelha para as flautas; bambu e madeira para os reco-recos; madeira, cipó, couro e corda de algodão para as zabumbas e caixas. Os pandeiros costumavam ser feitos pelos próprios instrumentistas em madeira, couro e pratinelas de metal, porém hoje são comprados e produzidos com plástico e peças de metal. Alguns instrumentos, como o cavaquinho e a sanfona – ambos fabricados industrialmente – também podem estar presentes nos conjuntos. 

Quando as bandas se encontram 

As bandas de taquara se reúnem anualmente no Encontro de Flautas do Jequitinhonha, projeto criado por Daniel Magalhães e Letícia Bertelli para fortalecer a cultura em torno dessa prática artística musical. Antes dele, os grupos em atividade raramente se encontravam, por isso o evento funciona como uma oportunidade de trocas de experiência e celebração conjunta para os envolvidos.

Por meio da partilha de conhecimentos, as comunidades locais atualizam suas tradições centenárias, aumentando a qualidade de vida dessas pessoas, através do fortalecimento de suas identidades, de seu senso de pertencimento e de sua autoestima.

A primeira edição ocorreu em 2016, na comunidade quilombola de Quilombo, área rural do município de Minas Novas. “A gente entendeu que o mais importante era colocá-los juntos, e não realizar a coisa como espetáculo. Não queríamos trazê-los para uma capital, mas sim proporcionar isso lá dentro da região”, explica Letícia Bertelli, que atua como produtora executiva do Encontro. Letícia também conta que outro objetivo dessa ação foi assegurar a manutenção desses grupos, que estavam perdendo força, e promover a sua atuação junto a outras faixas etárias, em especial jovens e crianças.

O resultado é a consolidação da atividade no calendário regional. Daniel Magalhães, coordenador geral do Encontro de Flautas, comenta que, a partir da quarta edição, as próprias comunidades começaram a manifestar interesse em ‘anfitrionar’ o evento. “Temos também observado o fortalecimento de uma rede solidária espontânea entre as comunidades, através dos mutirões de preparação dos espaços dos eventos”. E isso fica perceptível nas ações que esses grupos promovem e que se expandem por toda a teia social, envolvendo seus modos de vida e expressões culturais. Além das bandas, oficinas de artesanato, danças tradicionais e feiras de produtos da região completam a programação.

“Hoje, são as comunidades que decidem o que querem fazer”, diz Letícia, reforçando o protagonismo dos participantes na organização e o uso dos saberes populares e da criatividade para aperfeiçoar estratégias de preparação, recepção e acolhimento. “As pessoas vão percebendo a demanda de público e vão, por exemplo, fazendo galpões cada vez maiores. E, em função disso, também aumentam a quantidade de alimento produzido”.

Música, cabo de machado, folha de palmeira e cultura popular

Em 2022, o 5º Encontro de Flautas do Jequitinhonha, sediado na comunidade de Sapé-Timirim, em Angelândia, ocorreu entre os dias 18 e 19 de junho. Ao todo, oito bandas de taquara do Alto/Médio Vale do Jequitinhonha e do Mucuri reuniram-se para celebrar sua tradição. Foram elas: Chapadinha /São Bebedito; Quaresma; Bem Posta; Quilombo/Santiago; Sapé/Timirim; Palmeiras do Vale; Santo Antônio do Fanado; Comunidade dos Ramos.

No sábado, ao chegar em Sapé-Timirim, fomos recebidos com um café da manhã repleto de quitandas e comidas locais. Rosely foi uma das 16 cozinheiras que se encarregaram de preparar a comida para alimentar as mais de 1200 pessoas que passaram por lá. Para ela, estar na organização da cozinha foi uma experiência maravilhosa para apresentar a cultura local aos visitantes. E, de fato, os sabores da farofa de andu ou do palmito se tornaram uma das minhas melhores memórias gustativas do evento. Além dos almoços, também pudemos saborear outras comidas feitas por elas, como pães, biscoitos, bolos e “cabo de machado”, um tipo de bolo feito de batata-doce e fubá, assado em folha de bananeira, que foi unanimidade entre os presentes.

“Tivemos algumas reuniões para montar o cardápio e também para decidir a quantidade de alimentos que iríamos precisar. A preparação das comidas foi uma experiência muito boa. Tudo foi feito com muito carinho e dedicação”, comenta Rosely. As comidas foram preparadas em uma cozinha de fornalhas no chão e o café que tomamos também é produzido lá. Mais uma vez, a preparação do evento passa por esses fazeres que reforçam as culturas locais. 

E a grande representação disso estão no galpões provisórios, que são feitos com a folha da palmeira-catolé, uma árvore típica da região, simbolizando o cerrado preservado. Sua folha era usada como cobertura para as casas, mas, com o tempo, a folha foi perdendo essa função. Porém, durante os dias de evento, ela se tornou uma saída para proteger as pessoas do sol e da chuva. “Optamos pela folha do catolé, visto que podíamos contar com mão de obra especializada e o resultado estético é harmonioso com a cultura que buscamos valorizar”, afirma Daniel.

Moradores das comunidades participantes do Encontro de Flautas usam a folha da palmeira-catolé para construir o telhado de um dos galpões que recebeu o evento. Foto: Kika Antunes

Durante a montagem de um dos galpões, o que se ouvia era uma enorme cantoria das pessoas de diferentes comunidades que, em conjunto, colocavam as folhas da palmeira sobre as estruturas de madeira para fazer o teto.

“É trabalhoso, mas com a fé em Deus, a gente trabalha tudo com prazer, com alegria, com os amigos para ajudar a gente. O encontro já nasce desde aquela preparação. A gente já vê ali a alegria do pessoal no rosto, preparando, com aquela animação”, aponta Juarez Pacheco, morador da comunidade dos Ramos e um dos coordenadores locais do Encontro de Flautas.

Juarez é filho de Dona Cota, que compartilhou seus conhecimentos no preparo de panelas de cerâmica durante uma das oficinas do evento. Aos 86 anos e com a ajuda de sua irmã, Dona Lôra, ela nos mostrou que o tempo de preparo do barro e das panelas é também tempo de cantar e contar histórias, tradição que veio da sua mãe e que foi retomada em função do Encontro. Como explica Letícia, a oficina de Dona Cota é um exemplo de cuidado com o fazer artesanal e manutenção de uma atividade passada de geração para geração: “A gente viu rebrotar a produção de cerâmica na comunidade dos Ramos, quando a Dona Cota resolveu produzir panelas para a feira de cultura alimentar e artesanato que é realizada lá”.

Durante a sua oficina, Dona Cota parou o tempo, envolvendo todas e todos que estavam ali. Suas mãos eram as grandes condutoras daquela prática que dialoga com a tradição das bandas de taquara, e representa o contexto e a história da sua comunidade. “Sem essas comunidades, não existem grupos de flautistas, de tocadores, de dançareiras”, reforça Letícia. Outro exemplo é o de Dominga de Gentil, que, há alguns anos, começou a fazer oficinas de peneira de taquara por iniciativa própria. Ao abarcar oficinas como essas, o Encontro amplia seus horizontes e se torna um espaço não apenas das bandas, mas de todas as culturas locais.

Cortejo, coletividade e fortalecimento

Foi no domingo o encontro das inúmeras bandas de taquara que vieram para o evento. A reunião é uma grande mistura, uma troca sonora singular: diferentes bandas se sobrepondo, cada uma seguindo o seu ritmo, suas canções e construindo conjuntamente essa sonoridade tão completa. Enquanto eu andava pelo espaço, parecia que nunca haveria silêncio. Cada música se completava, como uma grande rede formada por diferentes fios e que parecia não ter fim. E assim se dá até o cortejo final, com as bandas caminhando e tocando dentro e em volta do galpão.

Ainda no domingo e concomitantemente a esses cortejos, aconteceram as oficinas de produção de flautas, reco-reco, confecção de máscaras e de peneiras de taquara. Mais uma vez, é o fazer manual que envolve e sustenta toda a programação. É o protagonismo de agentes locais que incentiva e preserva o legado dessas culturas tradicionais e que promove o seu crescimento, com novas pessoas querendo fazer parte daquela celebração, se integrar às bandas de taquara e ajudar na organização do evento, seja fazendo a comida, seja sediando a sua casa para hóspedes, seja nas oficinas que ocorreram durante os dois dias do Encontro.

Banda de Taquara da Bem Posta se apresenta no 5º Encontro de Flautas do Vale do Jequitinhonha. Foto: Kika Antunes

Juarez e Rosely falam com bastante alegria ao verem as crianças de suas comunidades conhecendo mais sobre as culturas da região e demonstrando interesse por elas. “Cada criança vai perguntando para a gente o significado daquela coisa. A gente também tem o maior prazer de explicar o que é aquilo, o que é aquilo outro que eles nunca viram”, aponta Juarez. De 2016 para cá, três bandas mirins foram fundadas a partir de bandas já estabelecidas, além de outros dois grupos que retomaram as suas atividades e dos novos integrantes que vieram se juntar aos músicos veteranos.

“O Encontro tem cumprido o papel de valorização desta cultura, e a presença de jovens e crianças interessados traz uma perspectiva de continuidade fundamental para os grupos”, reforça Daniel.

Não apenas as crianças, todas e todos que estão ali acabam por se agrupar ainda mais. As comunidades participantes promovem diálogos e trocas umas com as outras. Como diz Juarez: “Vai vivendo uma comunidade com a outra, aprendendo e vivendo, cada uma com suas atividades diferentes. Eu participo de um jeito e a outra pessoa participa de outro jeito, e aí as coisas vão acontecendo, cada um aprendendo mais com o outro”. Para Letícia, o encontro gera esse fortalecimento mútuo, que valoriza o convívio e cria a ideia de uma grande família das bandas de taquara.

Para quem vê de longe, a colaboração e o fortalecimento são o grande motor do Encontro. Nos dois dias em Sapé-Timirim, foi possível enxergar a coletividade de quem organizava o evento, de como aquela união era e continua sendo fundamental para realizar as atividades, para a concepção desse encontro que fica em nossa memória e que nos mostra a importância da manutenção de suas formas próprias de organização e colaboração.

Minidoc do 5º Encontro de Flautas do Jequitinhonha

Antônio Paiva


é estudante de jornalismo pela UFMG e estagiário de comunicação no BDMG Cultural desde 2021.

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