Diplomacia, cultura e imaginário
14 Jan 2020 |

Diplomacia, cultura e imaginário

Em 2019, a turnê internacional do espetáculo “Ofertório”, do cantor e compositor Caetano Veloso e seus três filhos Moreno, Zeca e Tom Veloso passou por 13 países, 33 cidades e foi assistida por um público internacional de aproximadamente 120 mil pessoas, segundo dados da Uns Produções, que administra os diretos e produz o artista. Um exemplo único, mas não isolado, da força e da repercussão da arte que se produz no Brasil em todo mundo.

E esse é apenas um dos motivos pelos quais a cultura deve ser parte integrante das discussões que envolvem agendas econômicas, geopolítica, inovação e desenvolvimento. Ela é pauta estratégica para o desenvolvimento dos países e tem papel extremamente relevante na promoção da cooperação internacional, por isso sua inclusão fundamental nas discussões que antecedem a Cúpula 2019 dos Brics [1].

Para olhar para este tema, nos parece relevante observá-lo sob três aspectos. O primeiro diz respeito ao histórico da agenda de cultura dos BRICS; o segundo, diz respeito à força simbólica e econômica da cultura no Brasil, sobre a qual iniciamos falando; e o terceiro traz uma conexão desses dois primeiros com a ideia de soft power e diplomacia cultural.

Foto: divulgação

[1] Em 07 de novembro de 2019, o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais realizou o Pre Summit Brics Minas Gerais, em uma prévia das discussões que marcariam o encontro de líderes políticos de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul em Brasília para a 11ª Cúpula dos Brics

Entre as discussões do Pre Summit,  uma mesa de cultura foi liderada pelo BDMG Cultural com a participação de Marcelo Matte, Secretário de Cultura e Turismo do Estado de Minas Gerais; Mario Mazzili, presidente do Instituto CPFL; Heloísa Pisani, da área de relações internacionais do Sesc São Paulo; e Gabriela Moulin, diretora-presidente do BDMG Cultural. Este artigo traz, com edição e novas inclusões, a fala da presidente do BDMG Cultural na ocasião.

Um bloco de singularidades

Do ponto de vista cultural, o bloco BRICS é tudo, menos homogêneo. É um bloco de singularidades. O Brasil, país de cultura latina, representando no imaginário mundial o “sul tropical”; a Rússia, país eslavo, ocupa boa parte do Norte terrestre e guarda a memória de um século 20 de revoluções; China e Índia, duas antigas civilizações asiáticas que dominam o Oriente; e África do Sul marcada pela sua cultura tribal ancestral, colonialismo e apartheid. Um conjunto de potências culturais que produz cultura, arte, ciência e conhecimento.

O BRICS foi criado em 2006, mas o setor cultural do bloco só ganhou impulso em 2015, durante a 7ª Cúpula, realizada na Rússia, quando foi organizada a 1ª Reunião de Ministros da Cultura. Na ocasião, foi assinado o Acordo de Cooperação na Área da Cultura. Dois anos depois, o acordo foi reforçado pelo Plano de Ação, criado na 9ª Cúpula, na China. Com vigência de 2017 a 2021, o plano estabelece diretrizes e cria quatro alianças concentradas nos temas: galerias e museus de arte nacionais, bibliotecas, teatro infantil e juvenil e museus.

Na reunião dos ministros da cultura dos países integrantes dos BRICS em 2018, foi assinada a Declaração de Maropeng, Berço da Humanidade, em que reafirmam o papel da cultura enquanto geradora de desenvolvimento econômico. Também através do documento, os ministros ratificaram o compromisso com o Plano de Ação para a Implementação do Acordo entre os Governos do BRICS para Cooperação no Campo da Cultura (2017-2021), assinado em julho de 2017, na China.

No entanto, na prática, tanto do ponto de vista do Estado, quanto do ponto de vista da fruição e do intercâmbio cultural, ainda estamos distantes de nossos parceiros de bloco.

Impactos tangíveis

A cultura e a criatividade têm impactos diretos em setores como o turismo e serviços e são integradas em todas as etapas da cadeia de valor de vários outros setores. Por isso, as indústrias criativas são um elemento-chave na competitividade global.

No Brasil, a indústria criativa foi responsável por injetar R$ 171 bilhões na economia em 2017, segundo os dados mais recentes do Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil, levantamento realizado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). O montante foi equivalente a 2,6% do PIB do país naquele ano.

Estima-se, com base na Pnad Contínua, do IBGE, que 7,4% dos empregos do país (cerca de 6,8 milhões) estão vinculados ao universo da economia criativa, que abarca atividades que vão das artes cênicas ao design, passando, entre outras, por música, moda e televisão.

Cultura e imaginário

Para além de gerar riquezas e empregos, que são importantes, mas não sua única razão de ser, a cultura desempenha um papel fundamental na construção de sensibilidades, pensamentos, emoções e comportamentos, influenciando consideravelmente a relação entre países em um mundo multipolar.

Por isso, pode e deve ser uma fonte essencial do chamado soft power e da diplomacia cultural.

Em um mundo cada vez mais interconectado, a cultura é um meio ideal para a diplomacia, pois tem a capacidade de atingir um número substancial de pessoas. Ela desempenha um papel essencial no processo de enriquecer a reputação de um país, ao impulsionar as percepções do público em direção a um entendimento mais amplo e permanente do país (do seu território) e de seus valores. O aspecto cultural da imagem nacional é único na construção do imaginário global sobre um país.

Uma das contribuições mais importantes que a cultura pode dar à diplomacia de um país é a capacidade de mostrar uma diversidade de pontos de vista, perspectivas e opiniões, quebrando os estereótipos nacionais persistentes.

Estudiosos concordam que a diplomacia cultural contribui para manter ou melhorar a imagem de um país no exterior e ajuda a criar uma base de confiança com outros povos, fundamental para a promoção de interesses econômicos. Quando pessoas de diferentes países confiam umas nas outras, elas negociam umas com as outras e investem mais umas nas outras.

Um dos aspectos mais importantes das relações culturais internacionais e da diplomacia cultural, no entanto, é o modo como a própria cultura se desenvolve por meio do intercâmbio.

O intercâmbio cultural internacional de estudantes, cientistas, funcionários, turistas etc. provoca novos modos de pensar, fazer, aprender e compartilhar, enfim, ajuda a inovar. Além do intercâmbio de produtos de cultura e da economia criativa que geram riqueza direta.

Que poder é esse?

É possível medir como os países se valem de sua cultura para alavancar a si mesmos em um cenário global. Existem métricas que mensuram o soft power e a diplomacia cultural no mundo. Os índices mais conhecidos são o Monocle Soft Power Index, o Soft Power Index e o Cultural Diplomacy Index.

O Monocle Soft Power Index baseia-se nos fatores do país que afetam as preferências do público estrangeiro. Ele avalia o soft power de acordo com cinco categorias: governo, cultura, diplomacia, educação e negócios / inovação. O sub-índice Cultura tenta medir o alcance e o volume da produção cultural por indicadores de vários campos: do turismo, passando pelo meio de comunicação patrocinado pelo estado, correspondentes estrangeiros, idioma, perfil olímpico, mercado musical, vendas mundiais de discos, vendas de discos globais, presença em galerias de arte, patrimônio mundial, status no sucesso internacional do futebol e do festival de cinema.

Na medição 2018 / 2019 do Monocle Soft Power, que gera um ranking de 1 a 25 o Brasil ficou em 25º Lugar, a Índia em 24º, a China em 19º. Em primeiro lugar está a França, seguida pela Alemanha e pelo Japão.

Em outro ranking, o Soft Power Index, as variáveis estão organizadas em três categorias: imagem global, integridade global e integração global. Um sub-índice de imagem global mede a popularidade e a admiração globais do país, especialmente a de sua cultura.

Na última medição, no ranking de 1 a 30, o Brasil aparece em 26º, a China em 27º e a Rússia em 30º. França, Reino Unido e Alemanha encabeçam a lista.

Há muito por construir

Os índices citados não são determinados apenas pela produção cultural, mas vale dizer que, de uma primeira mirada, parecem incoerentes com o potencial do país quando sabemos que a música popular brasileira, por exemplo, é uma das mais importantes do planeta e que, desde Pixinguinha e os “Batutas”, na década de 1950, vem forjando a ideia de identidade brasileira em todo mundo.

Em uma entrevista ao crítico literário Walter Friedrich Höllerer, em um canal de televisão alemão, em 1962, o escritor Guimarães Rosa, ao falar sobre seu então recém-lançado livro Grande Sertão: Veredas, coloca o sertão, Minas Gerais e o Brasil no centro do mundo, dizendo que construiu uma espécie de “Fausto sertanejo”, em alusão à famosa obra do alemão Goethe. A linda ideia de que o sertão e o mundo são, de alguma forma, uma coisa só pode e deve inspirar a nossa diplomacia.

O entendimento de que cultura é um valor democrático, diplomático, simbólico e econômico é sempre urgente e imprescindível.

Como diz Hollerer, a diplomacia pode ser poética e a poesia, diplomática.