Entre rios e ruas: visibilidade, poesia e memória
Artista visual Isabela Prado propõe intervenção urbana sobre relações entre indivíduo, meio ambiente e cidade
Belo Horizonte (MG) assim como outras grandes cidades no Brasil e no mundo, desviou ou cobriu córregos e rios durante os 122 anos de sua história. Um sufocamento das águas abundantes na geografia da cidade montanhosa.
Mas tudo aquilo que foi e está coberto pode, ao menos na imaginação e na conscientização, ser agora descoberto.
Para chamar a atenção sobre o que foi apagado da paisagem e da memória de moradoras e moradores de Belo Horizonte, de forma crítica e poética, a artista visual Isabela Prado desenvolveu o projeto Entre Rios e Ruas. Um trabalho plural, executado em diversas plataformas artísticas, que vem sendo idealizado há mais de dez anos.
É um projeto que busca estabelecer um diálogo com a cidade, por meio do afeto e da memória da paisagem urbana. De acordo com a artista, o projeto ganhou dimensão social por trazer à tona as relações que estabelecemos com a cidade, seus habitantes, sua dinâmica de ocupação e apropriação do espaço. Uma das ações da iniciativa foi uma intervenção urbana que consistiu na instalação de placas de sinalização de todos os córregos canalizados dentro do perímetro envolto pela Avenida do Contorno, na região central da capital mineira, que foi planejada originalmente para estar conformada dentro dessa grande avenida circular.
A artista refletiu:
A partir do momento em que a presença dos córregos é identificada, relembrada, por meio das placas de sinalização, sua existência passa a ser algo natural, reconhecida pelos cidadãos que transitam na cidade, engajando toda a sociedade no (re)conhecimento deste corpo d’água que habita a cidade
Transbordamentos
O projeto começou a ser gestado em 2006, quando a artista voltou ao Brasil, após viver cinco anos no exterior. Na época, um trecho do Ribeirão Arrudas (pertencente à Bacia do Rio São Francisco) estava sendo coberto para a construção do Boulevard Arrudas, obra viária no centro de BH. A artista conta que, no mesmo período, teve notícias, por meio uma colega coreana, de que o Rio Cheonggyecheon, em Seul, estava sendo destampado e revitalizado. “Aquele contraste entre as duas realidades urbanas enfatizou ainda mais meu incômodo pelo apagamento do Ribeirão Arrudas da paisagem e da memória da cidade. Esta foi a motivação inicial que deu origem ao projeto Entre Rios e Ruas”, relatou Isabela.
No início de 2020, com autorização da Subsecretaria de Planejamento Urbano, a artista instalou mais de duzentas placas para sinalizar a existência de córregos canalizados, mapeando vários pontos de interseção entre rios e ruas na região central de Belo Horizonte.
Intitulada Sobre o Rio, a intervenção ocorreu antes e após as fortes chuvas e seus tristes desdobramentos, como grandes enchentes e deslizamentos que atingiram várias regiões da cidade no início do ano. O Córrego do Leitão, canalizado a partir dos anos 1920, em uma política urbana fortemente propagandeada na época (vide vídeo), transbordou em pontos nunca antes vistos, como nas proximidades do Mercado Central.
“O transbordamento das águas confirma a relevância do trabalho, pois reforça a importância de falar sobre o tema dos córregos canalizados, sobre as escolhas feitas na urbanização de Belo Horizonte e, de forma mais geral, sobre a relação entre cidade e meio ambiente”, refletiu a artista.
A artista instalou as últimas placas e fotografou o processo de instalação em meados de março, dias antes da necessidade do isolamento social em decorrência da pandemia da Covid-19. A ideia é que os registros façam parte de uma publicação no futuro.
Processos compartilhados
Isabela Prado é professora da Escola de Belas Artes da UFMG e participou de vários programas de residência artística em países como Argentina, EUA, Jordânia, Palestina, além de exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Em 2011, foi contemplada com o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea, com o projeto Entre Rios e Ruas, que deu origem ao livro Lição: se essa rua fosse um rio, publicado em 2016.
Segundo Isabela, o desenvolvimento dos processos associados ao projeto Entre Rios e Ruas, em particular, foi realizado a partir de pesquisas em dados e mapas disponibilizados pela Prefeitura de Belo Horizonte, com informações sobre os córregos afluentes do Ribeirão Arrudas. “Utilizei também o som dos córregos sob o asfalto, que captava nas madrugadas, quando a cidade estava silenciosa. A partir desses dados e informações objetivas, eu desenvolvi trabalhos em várias mídias, como desenhos, vídeos e instalações”, completou a artista.
Ao logo da sua trajetória como artista visual, o trabalho de Isabela se manifesta em diversas plataformas, como exposições, performances e vídeos. “Muitas vezes, a escolha da mídia também depende de um certo tempo de amadurecimento do trabalho. No caso do vídeo Mapa Mofo, por exemplo, comecei a fotografar o mofo nas paredes em 2007 e um bom tempo depois é que esse trabalho tomou forma, não como um trabalho de fotografia, mas sim como um vídeo”, explicou a artista sobre o vídeo Mapa Mofo, obra concluída em 2012 e que consta no acervo artístico do BDMG Cultural.