Valorização de processos artísticos
Grace Passô, Julia Rebouças e Rafael Martini, tutores do LAB Cultural, comentam sobre o programa de pesquisas artísticas do BDMG Cultural
Lançado em 2020, o LAB Cultural é um programa de valorização e incentivo à pesquisa e desenvolvimento de processos artísticos e culturais em Minas Gerais com três editais de bolsas – nas áreas de Artes Cênicas, Artes Visuais e Música e Experimentação Sonora. As inscrições para os editais são gratuitas e podem ser realizadas exclusivamente aqui até 07 de julho de 2020.
Serão selecionados 30 projetos artísticos ao todo. Cada área terá 10 projetos aprovados a serem desenvolvidos em 4 meses de pesquisa. Cada proposta selecionada receberá uma bolsa de R$ 6 mil a ser dividida nos 4 meses de pesquisa sob tutoria
O programa LAB Cultural prevê a geração e o compartilhamento de conhecimento e dos processos que serão desenvolvidos por meio de uma plataforma digital, ampliando as possibilidades de reflexão e diálogo com a sociedade.
Os projetos selecionados contarão com a tutela de profissionais das três áreas: a atriz, diretora e dramaturga Grace Passô é a tutora de Artes Cênicas; a curadora, pesquisadora e crítica de arte Julia Rebouças é a tutora de Artes Visuais; e o compositor e instrumentista Rafael Martini é o tutor de Música e Experimentação Sonora.
Conversamos com a tutoria do programa LAB Cultural e ela analisa a importância de uma iniciativa como esta que valoriza os processos de pesquisas artísticas. Acompanhe as entrevistas.
Por que um programa de pesquisa de processos artísticos como o LAB Cultural é importante?
Grace Passô: Programas como o LAB Cultural são de extrema importância para o desenvolvimento das artes cênicas em Minas Gerais. Sobretudo porque programas dessa natureza protegem o campo da pesquisa, e não existe arte sem pesquisa. Qualquer expressão artística necessita profundamente de um espaço de experimentação, de reflexão, de estudo e de vasculhamento. Em um mundo que cultiva valores de consumo e valores imediatistas, o lugar da pesquisa é o que garante um processo de decantação e de reflexão mais profunda das criações.
Júlia Rebouças: Quando pensamos nas atividades artísticas e culturais, estamos quase sempre considerando trabalhos e projetos que chegam aos espaços públicos de circulação na forma de exposições, eventos, ações, obras, objetos que são, via de regra, o resultado de um processo muito maior, que nem sempre está visível. Para poder apresentar uma obra, seja no ambiente institucional, virtual, editorial ou acadêmico, é preciso antes ter realizado pesquisas, experimentações, trocas de conhecimentos e saberes. Essas instâncias, que muitas vezes demandam tempo e são dispendiosas, constituem o fazer artístico e devem estar contempladas quando pensamos nos afazeres da cultura e em suas estratégias de fomento.
Rafael Martini: Um olhar mais atento para o processo de criação é muito potente pois o processo (e não o produto final) é a verdadeira matéria do ofício do artista. E paradoxalmente, uma das maiores buscas dentro desse processo é justamente não deixar que ele seja sensivelmente perceptível no objeto artístico que é seu fruto direto. Os anos de pesquisa, estudo e leitura, o tempo gasto em conceituação, tudo isso não é compartilhado no objeto de criação, a não ser, claro, em obras que tem esse compartilhamento como objetivo. Porém, só a qualidade e a consistência do processo de criação é que podem garantir uma criação de um objeto que satisfaça os anseios do próprio artista e que seja passível de carregar uma rede de sentidos que sejam capazes de atravessar quem o frui. Para além disso, é muito rica a criação de uma plataforma onde o processo pode ser acessado por um público, no sentido de provocar reflexões que podem criar, dentro de cada um, mais ferramentas para a própria fruição.
Qual a importância desse projeto para o momento em que o país atravessa?
Grace Passô: A iniciativa do LAB Cultural é rara e extremamente necessária, porque ela cria possibilidades para que um momento como esse, de isolamento social, seja possível refletir e seja possível pesquisar. Existe uma série de editais emergenciais que estão sendo feitos agora e que têm grande importância tanto para que a produção artística não pare, quanto também para garantir trabalho e subsistência dos artistas. Mas o que o programa LAB Cultural faz como um passo adiante, é criar condições para que mais do que mostrar um resultado artístico, seja possível um espaço de elaboração e de reflexão. Definitivamente, a nossa sociedade passa por um momento de transformação tão grande e tão único que uma das coisas que mais precisamos, agora, é desses espaços; de refletir mais do que produzir respostas imediatas. A gente precisa refletir sobre o nosso tempo e refletir sobre as formas artísticas no nosso tempo. Então, o LAB Cultural é um programa que nasce com uma força e uma contundência muito grande em um momento muito específico do país.
Júlia Rebouças: Estamos passando por um momento muito crítico, em que as formas tradicionais de pensar circulação, debate e fomento de arte parecem não ser mais suficientes para responder às demandas e necessidades de criação, tanto num aspecto conceitual, em termos de linguagens, mas também em termos materiais e econômicos. Ainda que a economia da cultura represente uma parcela importante das nossas riquezas, ela não tem sido devidamente valorizada e incentivada, resultando numa situação de grande precariedade para artistas e para toda a diversa rede de agentes e profissionais da cultura. Um projeto como esse, que estimula a pesquisa, o diálogo, e valoriza o processo de criação, contribui decisivamente para o incremento da cena artística atual, mas também estimula que sejam repensados os mecanismos de estímulo e suporte à produção cultural.
Rafael Martini: Mesmo sem considerar o momento em que nos encontramos, é notável a carência por iniciativas que iluminem o processo criativo e promovam reflexão acerca da criação de dispositivos, estratégias e gatilhos que os artistas usam nas suas investigações. O projeto potencializa a geração de pensamento e instrumentaliza os artistas para criarem com mais consciência e por isso, correndo mais riscos, realizando uma arte de invenção, instigando-os a se pautar menos na reprodução de modelos geralmente aceitos sem reflexão. Para além de toda essa importância, o momento de total aridez que a classe artística encontra durante as condições de isolamento social, tem nesse projeto uma possibilidade de arrefecimento, possibilitando a criação de condições para a continuidade de pesquisas ou criação de novos experimentos e de continuidade de suas formações prático/teóricas. De certa forma, são poucas as ações mais coerentes com o momento que as de reflexão e desenvolvimento de um processo criativo. Neste momento de impossibilidades variadas, com a grande maioria dos artistas sem condições materiais para executar algo neste sentido, o projeto tem toda relevância e é um verdadeiro investimento na arte e na cultura para que ela possa sair não só viva, mas fortalecida quando o momento já for outro.
O programa LAB Cultural contempla as áreas das artes cênicas, artes visuais e música. Qual a importância dessas áreas estarem interligadas nesse projeto de desenvolvimento?
Grace Passô: Entendo que esses segmentos artísticos abrem o LAB Cultural e imagino que com o desenvolvimento desse programa outros segmentos também podem e devem entrar ao longo do tempo. Acho que existe uma reflexão importante em relação às artes contemporâneas que é a necessidade delas serem lidas de uma forma expandida. Mais do que criar limites entre linguagens, o que o nosso tempo pede é entender pontes e articulações entre elas. Então, a ideia, a meu ver, é entender o modo de articular essas expressões e essas linguagens. Modos de coabita-las e de entender as potências de cada uma, além de entender como elas podem se articular e se atravessar.
Júlia Rebouças: Entendo que a arte lida com as questões do mundo, aquelas que nos atravessam e inquietam. Elas ganham corpo por meio de distintas linguagens e se manifestam em áreas diferentes, mas no final estamos tratando de provocações e especulações criativas que se encontram em nosso tempo-espaço. Pensar de forma colaborativa, integrada e transdisciplinar, nesse sentido, é um exercício rico que amplia as possibilidades de atuação das áreas, reconhecendo as especificidades de cada manifestação artística.
Rafael Martini: Incentivar o pensamento múltiplo e interligar as experiências vividas em diversas linguagens é muito rico pois ativa áreas da criatividade de cada artista de uma maneira muito potente. As interfaces entre as artes são reveladoras de possibilidades de substrato, de exemplos de processos e de variedades de expressão. É um sonho pensar em um espaço de interação interartes onde a alteridade seja veículo para a maior percepção de si mesmo. Isso é muito valioso para um artista, mesmo para aqueles que ainda não sabem disso, por estarem mais restritos à suas próprias áreas.
Sobre a tutoria
Grace Passô (Belo Horizonte, 1980) é dramaturga, diretora e atriz que trabalha em parceria com diversas companhias e artistas brasileiros e foi cronista do Jornal O Tempo (MG). Atuou em companhias teatrais da cidade de Belo Horizonte, fundou o grupo Espanca!, onde permaneceu por nove anos e assinou a dramaturgia de seu repertório: Marcha para Zenturo, Amores Surdos, Por Elise e Congresso Internacional do Medo; também atuando como diretora dos dois últimos trabalhos citados. Atuou no filme Praça Paris (2018), de Lúcia Murat, e, além de integrar o elenco do espetáculo Preto (2017), dividiu a 9 dramaturgia com Marcio Abreu e Nadja Naira. Ministra workshops de teatro em companhias e instituições artísticas. Dentre os prêmios que recebeu, estão: Shell de Teatro e APCA, 2005 (dramaturga); SESC/SATED e Usiminas Sinparc, 2004 (atriz), Prêmio SESC/SATED, 2005 e 2006 (dramaturga); Usiminas Sinparc, 2006 (atriz e dramaturga). Com a estreia do espetáculo Vaga Carne, em 2016, recebeu os prêmios de Melhor Texto no Prêmio Shell de Teatro, Cesgranrio de Teatro e Questão de Crítica. Grace também recebeu outras indicações, como Prêmio Bravo!, 2016 (peça nacional), Prêmio APTR, 2016 (atriz), Shell de Teatro, 2009 (dramaturga), Qualidade Brasil, 2008 (atriz e dramaturga), Usiminas Sinparc, 2013 (atriz), Questão de Crítica, 2014 (direção), dentre outras indicações.
Júlia Rebouças (Aracaju, 1984, vive entre São Paulo e Belo Horizonte) é curadora e pesquisadora de arte. Foi curadora do 36º Panorama da Arte Brasileira: Sertão, MAMSP (2019). Ainda em 2019, foi curadora de Entrevendo: Cildo Meireles, no Sesc Pompeia, São Paulo (2019), com Diego Matos. Integrou a comissão de seleção e acompanhamento curatorial da 7ª edição da Bolsa Pampulha 2018/2019. Em 2018, realizou como curadora as exposições Entrementes, de Valeska Soares, na Estação Pinacoteca, São Paulo; e Mitomotim, 9 mostra coletiva no Galpão Videobrasil, São Paulo. Foi co-curadora da 32ª Bienal de São Paulo: Incerteza Viva (2016). De 2007 a 2015, trabalhou na curadoria do Instituto Inhotim, Minas Gerais. Foi curadora adjunta da 9ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre (2013). Tem graduação em Comunicação Social pela UFPE (2006). É mestre e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFMG (2017).
Rafael Martini é compositor e instrumentista, tem 4 discos lançados, “Motivo”, “Suíte Onírica” (com a Orquestra Sinfônica da Venezuela), “Haru” (em parceria com Alexandre Andrés) e “Gesto” (em parceria com Joana Queiroz e Bernardo Ramos). Já apresentou seu trabalho em diversas partes do mundo e coleciona vários prêmios como compositor e arranjador. É professor da Escola de Música da UFMG, onde dirige a Geraes Big Band e atualmente tem realizado concertos como integrante do grupo de Egberto Gismonti tocando acordeom.