LAB Cultural e o compartilhamento de saberes
28 Mar 2022 |

LAB Cultural e o compartilhamento de saberes

Entrevistamos a equipe de profissionais que acompanharão artistas do programa de residência artística do BDMG Cultural em 2022

Paulo Proença
28 Mar 2022 14 Min

Idealizado em 2020, em meio a pandemia, o programa LAB Cultural proporciona um espaço para trocas e atravessamentos de práticas artísticas, produzindo conhecimento de forma colaborativa e horizontal entre artistas e profissionais de diversas áreas do saber. 

Em dois anos de realização, o programa consolidou um formato em constante elaboração, em que, cada edição ganha novos contornos de acordo com as devolutivas de seus artistas participantes. O LAB Cultural reconhece a potência da comunicação online, ampliada em virtude da pandemia, e que efetivamente, possibilita interações com conhecimentos mais plurais, criando pontes e estreitando laços, talvez antes inviáveis pelo distanciamento territorial e aproximando regiões de Minas Gerais, um estado tão amplo quanto diverso.

Este ano, o programa de residência artística online do BDMG Cultural recebe inscrições de projetos de diversas atividades artísticas – artes visuais, música, experimentação sonora, escrita, artes cênicas, dança, expressões corporais, dentre outras – até 24 de abril. O edital está disponível aqui.

Artistas selecionades terão a oportunidade de desenvolver suas pesquisas com o acompanhamento de profissionais experientes e atuantes no desenvolvimento de projetos artísticos. Nesta edição, intitulamos como provocadoras e provocadores do LAB Cultural: a diretora teatral Fernanda Júlia Onisajé; a educadora, pesquisadora e curadora Luciara Ribeiro; o artista sonoro, improvisador e compositor Marco Scarassatti; e o artista da dança Rui Moreira.

Conversamos com as provocadoras e os provocadores, que ressaltam a importância da iniciativa para artistas e para a sociedade, além das suas expectativas para esta terceira edição do programa. Acompanhe.

  • Por que um programa de bolsas de pesquisas de processos artísticos como o LAB Cultural é importante?

Fernanda Júlia Onisajé: Um programa de pesquisa de processos artísticos, como o LAB Cultural, é importante porque ele estimula a investigação da linguagem artística, provoca o processo de amadurecimento, de maturação da poética e da estética dos artistas e reverbera nas possíveis criações e construções, não só de obras artísticas, como também de teorizações a respeito do processo cultural, histórico e artístico das linguagens. E isso é muito enriquecedor e importante, principalmente, porque faz com que cada artista envolvido com processos de pesquisas percebam o diálogo profícuo, o diálogo salutar entre a prática, a teoria e, depois, teoria e prática. Essa troca, esse fluxo e contrafluxo faz com que o artista se enriqueça, profissionalize sua forma de fazer e esse se profissionalizar tem a ver, muito com o amadurecimento técnico, mas não desprovido de filosofia, de pensamento, de engajamento, de discursos, tanto político como artístico. Enfim, um laboratório dessa magnitude estimula toda uma profusão de possibilidades dentro da criação e da investigação artística.

Luciara Ribeiro: Acredito que a prática artística é um processo compartilhado entre artista e sociedade, e por tanto, se faz essencial que as instituições e seus mecanismos de apoio se comprometam com ela e com seus criadores, os artistas. Projetos como o LAB Cultural funcionam como processos relacionados, que correlacionam a formação, criação e apresentação, entendendo que são partes da prática artística, sem a discriminação de valores. Além disso, e diante da realidade social das artes no país, essa é uma possibilidade de auxiliar financeiramente no desenvolvimento de práticas artísticas. 

Marco Scarassati: Pra mim, o momento em que o artista constitui um saber a partir do seu fazer, é no processo. É no processo que a percepção sobre o mundo, ou sobre as coisas se estrutura como uma poética, como um caminho expressivo. Poder vivenciar esse momento, apoiado por um programa que permite o mergulho na sua subjetividade e permite uma partilha com outros artistas que estão dedicados a pensar juntos nessas descobertas é raro, é especial, é único, ainda mais se pensando no contexto brasileiro. Um programa de bolsa de pesquisa para processos artísticos é, talvez, o mais importante estímulo e possibilidade de educação sensível e crítica do artista a partir das suas próprias inquietações diante daquilo que ele faz, daquilo que ele busca como expressão, diante da potência e saber inerentes ao fazer artístico.

Rui Moreira: Acho que um dos pontos que ressalto no LAB Cultural é a fonte local onde ele é lançado. Um programa cultural que é lançado por um banco de desenvolvimento de um estado como Minas Gerais é, para mim, uma potência muito grande. Nós vivemos várias questões relacionadas aos processos culturais; a própria estruturação da cultura como um lugar macro, onde cabem tantas situações que as artes acabam ficando em um lugar um pouco nebuloso. A pesquisa no campo da arte, então, é mais difícil ainda. É um campo de subjetividade, mas, ao mesmo tempo, de materialidade. Quando nós pegamos as pesquisas, quando pegamos os processos que acabam criando produtos culturais, como espetáculos, músicas e exposições, veremos que o processo é o lugar onde a gente se apropria da materialidade daquilo que parece ser subjetivo. Eu vou pegar o cheiro do café e vou tornar o cheiro do café algo material. Eu vou pegar o olhar, a caminhada, o cotidiano das pessoas dentro de um contexto e esse contexto vai se materializar em forma de um produto que vai ser compartilhado com outras pessoas. Isso é muito rico. Mesmo que o processo não seja objetivo para uma ação, ele tem uma capacidade de criar sinapses que são riquíssimas, que acabam, sim, sendo englobadas em algum momento do desenvolvimento humano da sociedade. Então, um edital como esse, que envolve a relação de pesquisas e processos artísticos, é de uma riqueza, na minha forma de entender os processos sendo artista e sendo um irradiador também de processos. Eu sou receptor e irradiador de processos e, também, protagonista de processos. É muito legal perceber a possibilidade de dedicar um tempo dentro dessa nossa cosmogonia, onde a relação de tempo passa a ser comprada. É muito bom quando a gente consegue encaixar dentro das necessidades de mergulho e profundidade que um processo exige, a possibilidade de ter um recurso que garanta essa possibilidade. Eu sempre parabenizo esse lugar do BDMG Cultural e entendendo isso, a beleza e a riqueza que é entender o apoio ou a visão da arte e da cultura dentro das artes como um lugar de desenvolvimento humano.

  • O programa LAB Cultural contempla multiáreas artísticas. Qual a importância destas áreas estarem interligadas e atravessadas entre artistas e provocadoras e provocadores desta edição?

Fernanda Júlia Onisajé: O diálogo entre as áreas, entre as linguagens, proporciona o que a gente chama não só de aprofundamento em linguagem, mas, principalmente, faz com que a gente perceba o que acontece no mundo na atualidade. Esse processo sectário, separado, dividido em pequenas caixas de conhecimento, a cada dia, com vários elementos, vários processos que vem modificando o modo de pensar contemporâneo, ele vai minando essa forma de pensar, fazer, criar arte. Então, o LAB Cultural, quando ele contempla multiáreas, quando ele propõe um diálogo, coloca artistas em diálogo com provocadores e provocadoras, ele começa a dar conta do que contemporaneidade propões, ele coloca a diversidade e as contribuições de cada linguagem no processo de formação plural, tanto no que tange linguagens artísticas quanto as constituições, os pensamentos, dentro das diversas questões que envolvem a constituição de uma pessoa, então as suas orientações sexuais, a sua identidade de gênero, a sua raça, o seu discurso político. E isso tudo envolve, sim, diversidade de linguagem, ou seja, música, dança, teatro, artes visuais, audiovisual. Essas linguagens criam narrativas, criam discursos e refletem o processo de construção, de constituição do que a gente vê no amadurecimento cultural, no amadurecimento político, no amadurecimento social. E isso vai refletir na vida dos artistas. Então, multiárea é multinarrativas, multilinguagens, é multipossibilidades de constituições, poéticas e estéticas dentro da formação de um artista. Então, o LAB Cultural fica de parabéns quando ele reúne diversos provocadores e provocadoras para dialogar com os artistas de várias áreas diferentes. Isso expressa, espelha a realidade do contemporâneo e faz com que a gente saia de um enrijecimento ou de verdades absolutas e unilaterais a respeito do pensamento artístico. E olha que a arte, cada linguagem é um mundo. Tramar esses mundos poderosos.

Luciara Ribeiro: O modelo de conhecimento fragmentado tem sido revisto e questionado nos últimos anos, pois, nenhuma prática, independente de sua função social, se faz isolada. É necessário a interligação de linguagens, formações, meios, técnicas; além de diversificação nos perfis dos envolvidos, como, diferentes faixas etárias, regiões, visões, posicionamentos, entre outros. Nesta edição, contamos com agentes que observam as artes a partir de expansões, de proposições circulares e mutáveis, o que contribui para trocas e crescimentos entre os artistas convidados, mas também para os mediadores e todas as equipes envolvidas, que poderão repensar conjuntamente as suas práticas e visões.

Marco Scarassati: A arte é atravessamento, é encruzilhada. Por mais que as disciplinas artísticas reivindiquem saberes próprios e técnicas específicas, o pensamento que se constitui em arte, como uma filosofia encarnada no que a gente chama de obra, é cosmoperceptiva. Pelo menos é assim que eu vejo o legado das rupturas entreartes desde o século 20. Por isso acho que, ser atravessado pelas provocações e saberes de outras e outros artistas durante o processo de mergulho, dá a dimensão do que é essa encruzilhada cosmoperceptiva e amplia a capacidade do artista de pensar e vivenciar esse processo.

Rui Moreira: Essa é outra grande riqueza do LAB Cultural. Esse programa acontece no Brasil, ele está em um estado onde as manifestações africanas, de diversas nações africanas, se faz e se mantém presente e onde a capital é a segunda cidade, em densidade populacional, negra no Brasil. Então, nós vamos ver que a cultura africana e a cultura indígena, também, são muito potentes aqui. Vendo essas coisas, nós vamos entender que, dentro dessas culturas, tanto a cultura de matriz africana quanto a cultura de matriz indígena, elas vão em direção contrária a esse aspecto ocidental de divisão das áreas de expressão do homem, da expressão artística, daquilo que a gente chama arte. Percebemos que essa separação entre áreas do ocidente, como artes cênicas, artes visuais, música e experimentação sonora… Tudo isso é um pacote só dentro das culturas indígenas e de matriz africana. 

  • Quais as suas expectativas em relação ao programa do BDMG Cultural e como você pretende contribuir nos processos artísticos?

Fernanda Júlia Onisajé: Eu sou uma entusiasta de programas, projetos e instituições, sejam elas de foro privado ou de foro público que pensam, que conseguem alcançar, conseguem compreender a importância e a relevância do processo de pesquisa da investigação artística para além do produto, para além da obra, quando você não está preocupado com o resultado e sim com o processo, com o caminho. Então, as minhas expectativas são as maiores. Primeiro, porque, além de ser entusiasta, me interessa como encenadora, como dramaturga, como preparadora de atores, como uma pensadora das artes cênicas negras, a maturação, a troca, o compartilhamento, o dividir. É um dividir que multiplica e soma e não um dividir que subtrai, de estratégias, conhecimentos, provocações, discussões, construções de narrativas identitárias e filosóficas. E eu pretendo contribuir com essa possibilidade de ser uma mulher multiárea, uma mulher que dirige espetáculos, que escreve para teatro, que trabalha com preparação de atuantes, atores e atrizes e com a formação deles. Além de ser uma mulher de axé, sou uma mulher do candomblé e o candomblé alimenta, constrói a minha linguagem nessas áreas, a artista que eu sou. Então, vou colocar à disposição conhecimentos elaborados na minha pesquisa de mestrado, doutorado, na minha experiência de 25 anos com o teatro: as leituras, as trocas, as parcerias que eu já estabeleci nessa área, com encenadores e encenadoras, tanto do ponto de vista de quando fui assistente, de quando encenei teatro e tive assistentes, de quando formo equipes para a criação dos espetáculos. Então, colocar esses conhecimentos à disposição e, principalmente, me abrir para trocas é a grande riqueza desse projeto. Aprende tudo mundo. É um processo de aprendizado globalizante, no bom sentido dessa palavra. Faz com que a gente enriqueça e ajude no enriquecimento de outrem e sai enriquecido do processo.

Luciara Ribeiro: Acredito que será uma experiência impactante para todos os envolvidos. Estou muito animada e confiante no poder das trocas que virão. Tenho pensado meios de interligação para as práticas artísticas no Brasil, sobretudo, em como sairmos das armadilhas dos discursos centralizados em determinadas linguagens, territórios e modelos de produção. Acredito que o trabalho como mediadora na residência trará novas contribuições a esse desejo que se aflora.

Marco Scarassati: Minha expectativa é de profundos encontros, um mergulho nos processos de cada artista e eu espero contribuir com as minhas inquietações, reflexões e minhas percepções desenvolvidas na minha trajetória, nos meus mergulhos existenciais a cada trabalho que eu faço.

Rui Moreira: Eu vivencio os processos de criação e os processos de investigação criativa já há alguns anos. Seja como intérprete criador, intérprete criativo, somente intérprete, pesquisador, criador… Participo desses lugares e vou ampliando essa minha possibilidade de participar desses processos. E, uma coisa que aprendi ao longo do tempo, é que, dentro de um processo – quando a gente se coloca a disposição e se coloca dentro totalmente de um processo – a gente acaba se misturando. O maior desafio que enfrentaremos todos, todas e todes é que vamos nos confrontar com um desconhecido, que é o fato de criarmos dentro do espaço digital. Por mais que a gente conheça e que já avançamos em algumas metodologias para lidar com a tecnologia, ainda é um espaço de confrontação, mas também um espaço livre e de exercício da arte de maneira plural. Será muito bom quando pudermos nos confrontar corpo a corpo. Mas o tempo urge e a maneira como a gente usa o tempo é constante. Se estamos vivos, estamos em movimento. E, estando em movimento, a gente usa todas as oportunidades para viver, para continuar vivo. Então, a minha expectativa de contribuição é essa. É a presença com a possibilidade de escuta, de fala, de troca de experiências, de conhecer o outro e, do outro, conhecer a mim e todo o contexto no qual estaremos envolvidos. 

Provocadores

  • Fernanda Júlia Onisajé
    diretora teatral, graduada no Bacharelado em Direção Teatral da Escola de Teatro da UFBA, doutora em Artes Cênicas pelo Programa de Pós graduação em Artes Cênicas – PPGAC/UFBA, com a tese: Teatro Preto de Candomblé: uma construção ético-política de encenação e atuação negras. Diretora fundadora do Núcleo Afro brasileiro de Teatro de Alagoinhas – NATA. Dramaturga, preparadora de atuantes, educadora e pesquisadora da cultura africana no Brasil. Escreveu e dirigiu espetáculos próprios, tendo ainda dirigido as montagens Traga-me a cabeça de Lima Barreto, Oyaci – A filha de Oyá, Kanzuá – Nossa casa, Oxum, Pele Negra, máscaras brancas. Ministra o Laboratório de preparação de Atuantes – Ojuinan, o Laboratório Dramaturgia afrodiaspórica: um foco na construção de narrativas negras, o Café Dramático – Laboratório de leitura e estudo de textos teatrais negros e o Em direção a elas: Elas na direção – Laboratório de formação para diretoras teatrais negras. 
  • Luciara Ribeiro
    Educadora, pesquisadora e curadora. Tem mestrado em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2019). Tem graduação em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2014). É técnica em Museologia pela Escola Técnica Estadual de São Paulo (ETEC, 2015). Atualmente é docente no Departamento de Artes da Faculdade Santa Marcelina. 
  • Marco Scarassatti
    Artista sonoro, improvisador e compositor. Desenvolve pesquisa e construção de esculturas e instalações sonoras, além de gravações de campo; professor e pesquisador da Faculdade de Educação da UFMG e autor do livro Walter Smetak, o alquimista dos sons (editora Perspectiva / SESC, 2008). Tocou ao lado de Mbé na 34°Bienal de São Paulo 2021, na obra “deposição”, de Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict e David Rueter. Possui 19 álbuns lançados em diversos países. Idealizou e co-dirigiu, o Filme-Partitura Anestesia (2021), inspirado na composição gráfica homônima de Walter Smetak, com estreia marcada para 05/08/2021, no festival Memórias na Música, da Akademie Der Kunst, em Berlim. 
  • Rui Moreira
    Artista da dança e ativista pelo direito de fruição e amplitude social das artes. Natural de São Paulo, morou em Belo Horizonte, Lyon (França) e desde 2016 reside em Porto Alegre. Desenvolve investigação gestual focada nas culturas negras africanas e afro-diaspóricas, com base conceitual nas expressões tradicionais patrimoniais, populares e contemporâneas. Fundou a Cia. SeráQuê?, a Associação SeráQuê Cultural e a Rui Moreira Cia de Danças. Foi curador e diretor artístico do FAN – Festival Internacional de Arte Negra e promotor da Rede Terreiro Contemporâneo de Danças.