A palavra como protagonista
Artista Bruno Rios ocupa a Galeria de Arte BDMG Cultural com obras que exploram a multidimensionalidade da palavra
A palavra pode ser múltipla e diversa. Não está fechada em um ponto final ou precisa seguir uma ordem certa. Ela pode se expandir, tomar inúmeros caminhos, transitar e se confundir com outras linguagens. Em “Faca, palavra e outras coisas para lamber”, o artista Bruno Rios busca explorar os desdobramentos semânticos, sensoriais e físicos da palavra.
A exposição, que fica na Galeria de Arte BDMG Cultural até 5 de junho, inaugura o Ciclo de Mostras 2022. No espaço, estão presentes monotipias, xilogravuras e esculturas produzidas pelo artista belorizontino nos últimos anos e que mostram o processo criativo de conectar as palavras de outras maneiras, como se elas estivessem orbitando os estudos do artista. “Faca, palavra e outras coisas para lamber” também pode ser visitada na plataforma mostrasbdmgcultural.org
“São obras interessadas em desafiar as estruturas convencionais da linguagem, à procura de expandir nossos modos de escrever o mundo e a nós mesmos…
Se não é possível existir fora da linguagem, é através dela que sofisticamos uma imaginação que permite organizar o real, testar modos de viver e sonhar coletivamente, ontem e hoje. Bruno Rios forja uma escrita para além dos significados pois tudo aqui está dotado de presença. Seus riscos brancos iluminam o céu da gravura como se traduzissem a teimosia de um gesto que resiste à escuridão iminente. Eles acendem e apagam, sobem e descem… como no pulsar de um organismo vivo”, relata a pesquisadora, curadora e crítica cultural Pollyana Quintella, no texto curatorial da exposição.
Bruno conversou com a equipe do BDMG Cultural para falar mais sobre a mostra e seu desenvolvimento criativo nos últimos anos, marcados pelo isolamento e por uma imersão em diferentes trabalhos. Confira.
- Você pode explicar um pouco sobre o título da mostra e como ele se relaciona com o jogo de palavras proposto em suas obras?
Em “Faca, palavra e outras coisas para lamber” existe um interesse genuíno sobre a palavra e seus possíveis desdobramentos semânticos, sensoriais, físicos. A escrita sempre esteve muito presente no meu processo criativo. Por vezes, ela aparecia como uma forma de captar um pensamento que estava me rodeando, pairando no ar, fosse através de um exercício de refletir sobre o próprio trabalho ou tentando esticar e tornar mais alargados os campos de conhecimento que tal obra ou outra pudessem tocar. Acho que desde o começo do meu trajeto, esse interesse já desapontava e esse interesse foi ficando cada vez mais claro, e aí, inevitavelmente, quando a palavra tá ali, te acompanhando, através de um processo de reflexão, de estudo, de pesquisa dentro do atelier, ela começa a vir para dentro do campo do desenho, fazer parte do trabalho. Ela sempre apareceu muito nos títulos. Para mim, sempre foi uma questão muito importante, como pensar um título de um trabalho, como uma palavra pode disparar uma sensação, uma imagem, uma sensorialidade.
“Faca, palavra e outras coisas para lamber” tem esse título pensando em como a linguagem pode, como ela tem esse campo do perigo, de cercear um certo tipo de entendimento sobre o mundo, de fechar um certo de tipo de entendimento, ao mesmo tempo que ela possibilita uma forma de plasticidade, pensando ela como um campo escultórico, sinestésico.
Eu acho que a partir de ‘faca’e ‘palavra’, eu fico pensando quando a gente come algo gostoso e você lambe a faca depois, com o que sobra daquele alimento, o quão esse gesto está repleto de perigo e delícia. E eu penso a linguagem a partir daí: o quão perigoso é dar nome às coisas, fechar sentido para as coisas, fechar algumas portas e, ao mesmo tempo, como que a palavra também possibilita essa espécie de delícia, de possibilidade de saborear, de mastigar, de lamber uma determinada sonoridade, uma determinada palavra. Acho que a poesia faz isso muito bem. Acho que a literatura traz isso de alguma forma. As palavras que estão nesse conjunto de monotipias e xilogravuras, na série que é uma espécie de protagonista da exposição, são palavras que foram surgindo no processo criativo de forma muito intuitiva e depois fui entendendo o quão elas estavam ligadas a uma espécie de sinestesia, de sensorialidade, de tatibilidade.
- Como foi o processo de trabalhar e experimentar diferentes linguagens artísticas para a concepção das obras?
Uma coisa acaba puxando a outra. Acho que isso vem muito de um interesse diverso por várias técnicas, várias linguagens e em como resolver o mesmo problemas de diferentes formas. A minha formação, apesar de ter sido feita nas Artes Gráficas dentro da Escola de Belas Artes da UFMG, foi muito múltipla. Durante o tempo da graduação, por exemplo, mesmo estando nas Artes Gráficas, tive a possibilidade de experimentar muito nas outras disciplinas, na gravura, no desenho, na pintura, etc. Então, eu acho que essa multiplicidade sempre me acompanhou de algum jeito. Por vezes, eu acho que o interesse não reside na linguagem em si, mas no que eu disse antes: em como resolver o mesmo problema de diferentes formas, acho que é um jeito de lidar com o mundo mesmo. Um problema ou uma questão não têm só um tipo de solução, seja ela filosófica, seja ela formal. Então, eu acho que o que acontece muito dentro do ateliê é isso, estar trabalhando, por exemplo, com desenho, com as monotipias, com as xilos e elas ficam meio escanteadas, enquanto tem uma escultura em processo que está no canto e me chama pra dançar com ela, para construir algo junto dela, mas depois de um histórico corporal de ter trabalhado momentos antes com o desenho. Então, é jogar o desenho para o pensamento da escultura ou vice-versa, tem um pensamento escultórico dentro do desenho ou um tipo de raciocínio audiovisual dentro de uma fotografia, etc.
- “Faca, palavra e outras coisas para lamber” é a sua sexta exposição individual e ocorre após 3 anos da sua última mostra, sendo que nos dois últimos seguimos atravessados por uma pandemia. Como foi trabalhar neste período e trazer obras que retratam o seu cotidiano enquanto artista?
Durante esses dois anos, dois e meio de pandemia, consegui manter uma rotina de produção, de pesquisa e de imersão em alguns períodos. Nos primeiros meses de 2020, quando a pandemia estourou, eu estava em uma residência artística em São Paulo, na residência da FAAP. Como todo mundo, o momento ali nos afetou de uma forma muito intensa. No entanto, acho que pra mim foi um momento que eu pude estar imerso, mergulhado na produção. Foi um período solitário, como para muita gente e eu sentia que o que eu fazia, que a produção que eu estava fazendo naquele momento foi o que me salvou, o que me sobrava, o que me alimentava, me mantinha vivo para além de toda a complexidade do momento, tanto pandêmico como político. Era uma coisa que eu ficava pensando, que era muito louco como que o que me sustentava, como que o que me dava chão para continuar realizando coisas eram suportes muito frágeis: coisas de papel, desenho, livro. Esse momento pandêmico foi sendo atravessado, e está sendo atravessado por essa percepção de como que às vezes a gente tem como ideal de força, de estrutura, coisas muito sólidas, muito erigidas em uma certeza e como que, na verdade, são os pequenos momentos e talvez essas pequenas materialidades que nos sustentam. Eu aumentei muito, fomentei exponencialmente minha relação e admiração pelo papel, por exemplo, pelo gesto simples, pelo desenho, pelas coisas cotidianas, o ato de passar um café, conseguir tomar um sol, conseguir preparar uma comida ou coisas do tipo.
A última exposição que eu fiz foi em 2019, “Chão de Passagem”. Foi uma individual também que fazia parte do meu processo de conclusão do mestrado. Ali me interessava apresentar a dissertação dentro da galeria, no Mama/Cadela, que é um espaço cultural aqui de Belo Horizonte, tendo os trabalhos ali também como parte da produção do mestrado, não querendo dissociar muito prática de teoria. Acho que essa, agora, já tem uma outra pegada, uma produção que mistura alguns tempos, também fruto de pesquisas. Foi acontecendo de uma forma mais fluida.
Eu não sei até que ponto essa coisa de demonstrar o cotidiano está tão clara, eu não sou uma pessoa que produz muito apontando para essas questões individuais. Então, essa relação com o cotidiano fica um pouco mais opaca. Mas eu acredito também que, na rotina, tudo se embaralha um pouco, não tem discernimento entre o que faço ou penso como coisas que estão fora ou dentro do trabalho, acho que está tudo dentro, assim como a linguagem também. A Pollyana Quintella, que escreveu o texto da exposição, falou uma coisa que eu concordo muito, que é
“se não tem como a gente fugir da linguagem, o que nos resta é sofisticar ela através da imaginação, reorganizar o real, testar outros modos de sonhar, de produzir, de viver”.
E eu acho que essa relação com o cotidiano, com a rotina está um pouco nesse lugar. É muito difícil fugir dela e o que a gente pode fazer é essa reorganização, reordenar o que já está posto e criar outro sentido. Então, eu fico pensando muito, voltando mais uma vez, nesses pequenos gestos, nas coisas que nos sustentam também, como a gente deve ficar atento a isso.
- E qual é o sentimento de voltar a expor depois de todo esse período?
A gente ainda está nesse período pandêmico. Agora, as coisas estão se abrindo. Ter a possibilidade de fazer uma exposição e ter a presença física é muito bom, um privilégio. E é isso, a exposição é uma consequência, é um fruto de um período intenso de trabalho, de pesquisa. Acho que é um momento de partilha, de sentir como os trabalhos se comportam em um outro espaço que não o atelier. Na exposição, por exemplo, é o primeiro momento que eu vou ver todos esses trabalhos em conjunto, por uma questão espacial. E eu acho que, para mim, a exposição é, sobretudo, um momento de experimentar, de provocar, de errar, de brincar com a arquitetura do espaço e, ainda que você vá para a montagem com o plano um pouco mais estabelecido, os diálogos entre as obras começam a ser ativados de outra forma, aquilo começa a vibrar em outra frequência.
Esse momento é uma oportunidade de trocar com as pessoas, é uma espécie de presente mesmo, é o momento dos visitantes poderem acessar essa produção de forma mais plena, mais crua. Eu acho que durante esse tempo da pandemia e não só nele, como um todo, a gente vem lidando com a imagem cada vez mais no âmbito virtual, nessa perspectiva do celular, do computador e eu acho que uma exposição com possibilidade de visitação move o corpo de outro jeito, principalmente essa. É a exposição que já fiz que tem mais esculturas, um campo que para mim vem chamando interesse e que já tinha lidado algumas vezes, mas nessa está mais presente. E escultura é um corpo no espaço, você não tem muito como fugir dela, está posta e o que você pode fazer é se relacionar com ela, ela está ali tal qual você, tem presença no mundo, está sobre essa espécie de cúpula da gravidade que rege tudo que está na terra.
- O que desencadeou para o tema desta exposição e como se deu o processo de escolha da série de obras presentes na Galeria de Arte BDMG Cultural e na plataforma virtual?
Acho que não necessariamente é uma exposição com tema, é uma exposição com interesses, com diferentes apontamentos para algumas questões que são muito próximas, muito parecidas. Eu percebi que, sempre que faço uma individual, preciso, primeiramente, desse tempo de muito mergulho, de muitas pesquisa e essa não foi diferente.
A série que dá nome a exposição “Faca, palavra e outras coisas para lamber” é, de fato, um laço que costura outros trabalhos, mas ela também foi sendo construída de forma muito enviesada, muito atravessada por tudo que estava vivendo e também pelas outras coisas, como eu estava dizendo antes, de tudo que contorna ali também está vibrando e está chamando atenção. O lance é você estar com a antena ligada.
Esse processo de escolha do que faria parte ou não da exposição foi acontecendo em um processo de imantação, as coisas vão puxando relações com o que está próximo. Então, essa questão da palavra, da linguagem, da escrita, do desenho já são coisas que eu vinha trabalhando e agora ficaram mais fortes e aí fui percebendo que ali tinha um conjunto que se amarrava bem e decidi testar isso como proposta expositiva. A maioria dos trabalhos que estão na exposição são mais recentes, os últimos do ano passado e agora, de 2022, mas também trouxe um trabalho de 2020, trouxe um de 2018, porque achava que as coisas estavam pedindo a presença deles ali e trabalhos que também que vou levar para o espaço e pensar como eles fazem sentido, se eles estão de acordo com essa participação, esses são mais recentes ainda, talvez eles nasçam ali, naquele momento mesmo.
- Além das gravuras, a mostra traz vídeos inspirados na obra ficcional Da Terra à Lua, de Júlio Verne, publicada em 1965. Como e quando partiu a ideia do diálogo entre a obra literária e a sua obra?
O “Elã” é um vídeo que está na exposição também e, de alguma forma, foi inspirado no Da Terra à Lua do Júlio Verne. Mais do que inspirado, ele foi atravessado por essa leitura. É um vídeo que até hoje me soa meio estranho, parece que é uma voz que chegou para mim. Ele foi feito de um modo muito rápido, muito intuitivo, de um dia para o outro praticamente. E ele aconteceu bem no começo ali da pandemia, em Abril. Eu estava nessa residência da FAAP, que eu havia mencionado, e a partir de uma imagem, de ter visto a lua cheia em um dia, atravessando a janela. A imagem foi tão forte que o que podia fazer era escrever de alguma forma. Eu estava lendo o Da Terra à Lua e acho que foi uma coisa meio atravessada pelo acaso. Teve um momento no começo da pandemia, um gesto super bonito do Gustavo Torrezan, que é meu amigo, que deixou uma caixa com livros e literatura. Estava com muita falta de literatura, tinha acabado de chegar na residência, então estava apenas com o computador, então lendo muita coisa teórica e para desenvolvimento do projeto, escrevendo muito nesse lugar reflexivo e parece que naquele momento eu precisava dar uma suspendida, de alguma forma, na realidade.
Eu acho que a literatura faz isso com a gente às vezes, acho bom. E ele trouxe essa caixa de livros e dentro dessa caixa tinha o Da Terra à Lua e eu nunca tinha lido nada do Júlio Verne. E eu acho louco, o Da Terra à Lua tem uma coisa que eu acho super bonita da escrita, da ficção como uma espécie de prenúncio. Você imaginar que ele escreveu em 1865, e deve ser uma das primeiras ficções que falam um pouco dessa corrida espacial, e aí, 100 anos depois, é que isso vai acontecer. É a escrita, a literatura, a ficção como um oráculo. E eu acho que “Elã” aponta um pouco para isso, para a escrita desse texto. Eu sinto que é um texto muito enovelado, muito cheio de nós e possibilidades de caminhos, mas que fala muito de uma saída, essa saída que está colocada no vídeo, nessa possibilidade de ser propulsionado por fora da Terra para chegar em um outro lugar. Eu acho que a escrita e a arte, como um todo, têm essa capacidade de te jogar para o futuro, para além, suspender um pouco a realidade.