REVISTA nº 1

Minas tocada: identidades musicais e os 20 anos do BDMG Instrumental

Não tem nada que precise mais de inovação para continuar viva do que a tradição, resume Rafael Martini.

Igor Lage
21 Fev 2020 8 Min
Minas tocada: identidades musicais e os 20 anos do BDMG Instrumental
BDMG Instrumental 2019 - Show de Marcela Nunes com Teco Cardoso como convidado. Banda formada por Luísa Mitre (piano), Paulo Fróis (bateria) e Camila Rocha (baixo). Teatro CCBB, Belo Horizonte MG.13/11/2019 © Copyright Élcio Paraíso/Bendita – Conteúdo & Imagem | Todos os direitos reservados | All rights reserved

As tradições sobrevivem justamente porque são permanentemente reinventadas. Esse movimento constante é essencial para qualquer sociedade, e coloca em movimento a cultura em relação aos seus passados, presentes e possíveis futuros.

A música que circula entre nós, contemporâneos, é expressão da integração global, cultural e simbólica de séculos. Nas melodias, harmonias e ritmos de nosso país, transbordam aspectos históricos, geográficos, imaginativos e afetivos que nos constituem.

Pensar a música que se faz em um território é, portanto, pensar nas muitas identidades que a compõem, sempre em movimento. E entender as identidades dessa forma, no plural, talvez seja um caminho interessante para observarmos a música instrumental produzida em Minas Gerais.

“Quando eu me debruço sobre a música instrumental mineira e tento observar aquilo que lhe é singular, o que percebo é que os mineiros são muito bons cozinheiros de mistura”, arrisca o pianista, compositor e arranjador Túlio Mourão. “Talvez por ficarmos mais perto do coração do Brasil, perto do Rio, perto do Nordeste, talvez a gente tenha aqui uma sabedoria e uma equanimidade em dosar as influências que vêm de muitas partes para fazer um caldo rico”.

Mais que um gênero, a música instrumental é generosa e abarca uma diversidade de estilos, instrumentos e possibilidades.

Em Minas Gerais, a cena em torno da música instrumental vem se consolidando já há alguns anos entre as mais vibrantes do país, graças ao trabalho dos artistas e a um conjunto de iniciativas que oferecem visibilidade, espaços e incentivo profissional aos músicos. Túlio Mourão, hoje um dos veteranos dessa cena, explica que ela é uma corrente de vários elos, fruto de um trabalho contínuo de fortalecimento que faz com que a música instrumental seja um traço importantíssimo da cultura contemporânea mineira.

Não foi de repente que a nossa música instrumental alcançou esse patamar de qualidade, vigor e expressividade. Essas coisas não chegam de graça, elas passam pelo fortalecimento das instituições envolvidas, por projetos de apoio à cultura, pelo investimento em exibição, formação etc.

BDMG Instrumental entra em cena

Um dos elos dessa corrente é o Prêmio BDMG Instrumental, que completa 20 anos em 2020. Criado e realizado pelo BDMG Cultural, o prêmio se tornou uma das principais vitrines de artistas da música instrumental mineira, revelando talentos, impulsionando carreiras e se constituindo como um ambiente de troca, afeto, parcerias e aprendizado.

Desde a primeira edição, em 2001, passaram pelos seus palcos centenas de compositores, arranjadores e instrumentistas. No total, foram premiados 79 artistas.

“O prêmio se tornou um balizador do calendário de trabalho de todo mundo. Ele movimenta a cadeia dos músicos, e ainda dá um super panorama do que está sendo produzido hoje em dia”, resume Rafael Martini, que é pianista, compositor e arranjador.

https://youtu.be/8AsceQIsqJU

Por ter como objetivo a valorização da composição, o BDMG Instrumental funciona como um termômetro importante da produção autoral na música em Minas. É um espaço em que compositores experientes podem se arriscar e mostrar novas facetas, bem como uma oportunidade para que os estreantes apresentem seu trabalho para colegas e o grande público.

Formar público, inclusive, é um dos objetivos principais da iniciativa. Como ressalta Beth Santos, coordenadora de música do BDMG Cultural, a música instrumental ainda sofre de estigmas que impõem um certo afastamento do público. “A música instrumental, infelizmente, ainda tem pouco espaço para circular. Há menos programação, menos projetos focados nesse nicho. Por isso é importante divulgar, difundir, para que as pessoas percam o preconceito e despertem o interesse. Por que não gosta? Já teve a oportunidade de escutar? ”.

 Histórias musicais

Ao longo de suas duas décadas, o BDMG Instrumental tem deixado contribuições valiosas para a cultura mineira, mas ele também marca individualmente a vida de muitos músicos. Rafael Martini é um deles.

Minha vontade de ter uma carreira na música instrumental nasce mais ou menos junto do prêmio. Foi para ele que eu mandei minha primeira gravação, ainda em uma fase bem inicial e indecisa da minha carreira, conta. Se não fosse pelo prêmio, eu não teria investido no meu trabalho autoral tão cedo.

Era 2002, segunda edição da premiação, e Rafael não ficou entre os selecionados. Dois anos depois, ele foi eleito um dos vencedores, com apenas 23 anos. Foi um estímulo crucial para que o jovem investisse em sua carreira de compositor e arranjador. Anos mais tarde, Rafael ainda viria a vencer o prêmio mais duas vezes: em 2012 e em 2019.

“A primeira vez foi um assentamento na trilha, a primeira demão de asfalto. Na segunda, estava lançando meu primeiro disco solo, depois de anos focado em trabalhos coletivos. Foi outro impulso gigante na carreira. E, agora, já com quatro discos lançados como solista, eu volto com um trabalho novo, mais voltado para o rock and roll e o eletrônico, então o prêmio marcou várias fases da minha vida”.

O BDMG Instrumental tem um papel fundamental na história da Luísa Mitre também. Tendo começado no piano aos sete, a compositora e professora de música assistiu a diversas apresentações do prêmio e de artistas que conheceu por meio dele ao longo da adolescência. Sua primeira participação no palco foi em 2013, acompanhando o marido, Lucas Telles. Mas o grande salto veio em 2019, quando recebeu a premiação principal.

“Foi um divisor de águas na minha carreira. Foi a primeira vez que mostrei um trabalho autoral. Trabalhava com música há muito tempo, mas sempre acompanhando outros artistas. Nunca tinha tocado composições minhas. Foi uma revolução pessoal, superar um medo, uma barreira. Foi um desafio e uma superação pessoal que deu resultado. O meio musical começou a me ver de forma diferente, surgiram novas oportunidades de trabalho. Abriu outro mercado para mim”.

A vitória de Luísa foi um marco importante também para o prêmio, que, em todos esses anos, só havia consagrado anteriormente uma outra mulher: a percussionista Daniela Rennó, em 2009. Além de Luísa, na mesma noite, duas integrantes de seu quinteto venceram como melhores instrumentistas: a contrabaixista Camila Rocha e a vibrafonista Natália Mitre, sua irmã. Em 2019, a flaustista Marcela Nunes foi uma das premiadas do 19º Prêmio BDMG Instrumental.

Daniela Rennó no estúdio | Foto: Élcio Paraíso/Bendita conteúdo & imagem

Essa noite foi muito simbólica, lembra Luísa. Quando a gente ganhou, o pessoal comemorou muito. É difícil ver mulheres tocando no prêmio. Acho que é um resquício histórico do lugar da mulher como musicista. Até pouco tempo atrás, nós não podíamos ocupar esse espaço, ser profissionais da música. Há muitas cantoras, só que o número de instrumentistas é menor. Mas as coisas estão mudando. Nos próximos anos, vamos ter cada vez mais mulheres tocando. Espero que isso incentive outras artistas a tentarem.

Tradições renovadas

Já consolidado no cenário da música instrumental brasileira, o Prêmio BDMG Instrumental tem o constante desafio de dar visibilidade às pesquisas, fluxos e mudanças que renovam nossa música. É no convívio com diferentes influências, matrizes e tempos que a história musical adquire identidades contemporâneas.

De fato, a própria música instrumental feita em Minas parece trabalhar muito bem essa relação entre tradição e inovação. Para Túlio Mourão, são fortes as matrizes que fundam nossa sonoridade: as festas populares, como o congado e a marujada; ritmos de origem africana; a presença forte da música erudita e da música religiosa na formação das pessoas; e os muitos cancioneiros de tradição popular.

Temos essas matrizes próprias muito presentes, mas também não nos intimidamos com o que vem de fora. Você não faz algo contemporâneo se ficar fechado para o mundo”, afirma. “Nossa música tem marcas muito importantes, como o Clube da Esquina, mas busca estabelecer diálogo com outros estilos e gerações. Temos músicos muito bem formados, com bastante conhecimento e com desejo de produzir o novo. A contemporaneidade chega por conta dessa bagagem e por uma inquietude, uma visão do mundo já sem vidraças.

19° Prêmio BDMG Instrumental | Foto: Élcio Paraíso/Bendita – Conteúdo & Imagem

Para Luísa Mitre, “ao mesmo tempo em que há novidade, há um respeito muito grande pelo que já foi feito também. Por exemplo, nos arranjos solicitados pelo Prêmio BDMG, sempre aparecem obras de compositores aqui de Minas. É muito importante conhecer nossas raízes, pois nossa música só vai perdurar se nós a tocarmos. Se a gente não tocar do nosso jeito, não der uma nova interpretação para esse repertório, ele fica embalsamado nos discos”.

Não tem nada que precise mais de inovação para continuar viva do que a tradição”, resume Rafael Martini.

Na sua visão, a música mineira tem, sim, um traço conservador muito forte, mas isso não precisa necessariamente ser entendido de maneira pejorativa. “É um traço nosso essa relação com a tradição. Por outro lado, se aqui é onde o caldo engrossa, é preciso tomar cuidado para que essa substância produzida não vire uma areia movediça. O negócio é abrir a antena ao máximo, mas fincar a raiz. A árvore cresce para os dois lados”.

Hoje com 38 anos, Rafael se considera privilegiado de poder já se sentir um pouco mais próximo da velha guarda ativa da música instrumental, mas também observar de perto as ideias do pessoal novo que vem chegando. Nesse processo contínuo de produção musical no estado, ele destaca que o diálogo e a troca estão sempre presentes e contribuem para manter firme esse cabo de forças saudável entre tradição e inovação.

Manter a tradição viva é algo muito difícil. Continuar sendo o que se é, e continuar inovando sem deixar de ser o que se é. Como diz o Egberto Gismonti, você joga a pedra mais adiante quanto mais para trás você a puxa. Então, essa relação entre tradição e inovação não escapa do processo de retroalimentação. E acho que, aqui em Minas, ele tem sido feito com muita substância, com o pé na tradição e sem deslumbre excessivo com o novo.

Igor Lage

 

Igor Lage é jornalista, pesquisador e professor. Doutor e mestre em Comunicação pela UFMG.

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