2. Tempos vívidos (e vividos) – 1945 a 1964
Texto Nº 2 de uma série de 6
Em 1946 uma multidão se reuniu em frente ao palácio Tiradentes – antiga Câmara dos Deputados da capital –para festejar a aprovação da nova Constituição do Brasil. Seu texto buscava varrer a carta autoritária outorgada por Getúlio Vargas, em 1937 e será um importante instrumento para a experiência democrática do período – encerrada pelo golpe de 1964. Fotógrafo não identificado. Rio de Janeiro, setembro de 1946. Acervo: Arquivo Nacional
Na infinita coletânea de experiências humanas ao longo do tempo, não existe nenhum passado mais ou menos desimportante. Todas as épocas e lugares foi palco de ações, eventos e desdobramentos de processos anteriores.
Em outras palavras, cada momento tem o seu lugar na História. Mas sem dúvida há períodos mais intensos e dinâmicos que outros, onde foram produzidas aceleradas alterações nos quadros políticos, econômicos, sociais e culturais de um povo e lugar. São recortes históricos de fenômenos que funcionam como motores da história da civilização. Um exemplo desse recorte no tempo e no espaço se deu entre os anos 1945 e 1964 no Brasil.
Entre os historiadores convencionou-se a denominar esse recorte temporal, que vai de meados de 1945 até abril de 1964, como “democracia de massas”. O nome não vem por acaso. Trata-se de uma experiência democrática inédita no país. A começar pela participação popular nas urnas. Se até 1930 o percentual de eleitores não chegou a 6% da população, esse número cresceu para 14% em 1945, e 25% em 1962. Foi só em 1945, ou seja, com mais de cinquenta anos de atraso, que as mulheres puderam votar para presidente no Brasil. O número de votantes só não foi maior pois a legislação eleitoral proibia esse direito aos analfabetos — situação que dizia respeito à absoluta maioria dos brasileiros naquele contexto. Mas esse percentual cresceu progressivamente: em 1945 o analfabetismo era de 54% no país; e em 1962, esse número caiu para 36%.
A luta pela terra e por direitos dos trabalhadores rurais também foi ponto chave deste contexto. A reforma agrária passou a ser debatida em todos os meios, crescendo cada vez mais no horizonte de expectativas de milhões de campesinos. Experiências como as Ligas Camponesas e cooperativas agrárias; a ação de personagens como Francisco Julião, que lutou pelo direito de sindicalização dos trabalhadores rurais foram importantes marcos que ampliaram o repertório democratizante do país.
A população urbana também cresceu assustadoramente nesse período. As cidades com mais de 100 mil habitantes se abundaram; e os grandes centros urbanos, para além das altas taxas de natalidade, passaram a receber um fluxo migratório ininterrupto. As metrópoles, sedentas por força de trabalho virgem e revigorante, foram destino para milhões de brasileiros, que trocavam a vida campestre pelo ritmo cosmopolita acelerado. Vale destacar outra marca da desse período: as mobilizações dos trabalhadores nas cidades. Reunidos em associações e sindicatos, protagonizaram importantes ações em busca da garantia e conquistas legais. A Greve dos 300 mil, em 1953, é um dentre vários exemplos de ação política por parte dessa classe social.
Ainda que essa passagem, do rural para o urbano, tenha sido muito menos romântica na prática, ela acabou por formar um novo quadro social e cultural, de homens e mulheres que progressivamente iam se habituando às paisagens da cidade grande e às formas da modernidade industrial. Esse processo de ampliação da participação ativa do cidadão brasileiro nos rumos políticos do país, teve início em 1945 — ano que representou o fim da 2ª Guerra Mundial e a queda de Getúlio Vargas da Presidência da República.
A chamada Era Vargas iniciou-se em 1930, quando Getúlio liderou uma articulação civil e militar vitoriosa no golpe que pôs termo à Primeira República —chamada, de maneira pejorativa pelos próprios varguistas, de República Velha. Durante quinze anos Getúlio se manteve no poder, adotando uma cartilha política que conjurava, num mesmo pacote, medidas conciliatórias e autoritárias. Em novembro de 1937, às vésperas das eleições presidenciais que ocorreriam no ano seguinte, Vargas, aplicou um novo golpe e instituiu seu governo ditatorial, conhecido como Estado Novo. Porém, desde a entrada do Brasil na II Guerra ao lado dos Aliados, em 1942 — vale dizer, mais por pressão dos EUA que pela vontade de Vargas —, foi ficando cada vez mais evidente a contradição de combater as forças nazifascistas em nome de uma democracia liberal inexistente no próprio país.
A ditadura varguista foi progressivamente perdendo sustentação. Eleições gerais foram anunciadas ainda com Getúlio na presidência. Na esteira, vieram a anistia de presos políticos e o fim da censura nos jornais. Mas sabendo da força popular de Vargas, os militares não vacilaram: derrubaram o presidente e o proibiram de disputar o pleito. Venceu Eurico Gaspar Dutra — o primeiro presidente eleito pelo voto direto a tomar posse em quase 20 anos. Novos atores e grupos e sociais emergiram. Em 1946, uma nova constituição foi promulgada. A carta, apesar de bastante restringente com relação às populações camponesas, indígenas e outros corpos periféricos do establishment, significou um avanço republicano considerável em relação às constituições anteriores.
Tudo novo, de novo
Essa breve recapitulação da história brasileira tem aqui razão de ser. Afinal, foram quinze anos sem alternância de chefes de Estado. Desses, quase oito vivendo sob uma ditadura violenta e assassina. Dada a mudança de cenário, não é de se estranhar que as expectativas quanto aos rumos políticos do Brasil eram altas.
Os ventos da mudança sopravam forte também nos meios artísticos. Foi nesse espírito, de ampla renovação, que o campo da cultura encontrou novas possibilidades de ação e pensamento.
Na chamada democracia de massas, imaginação cultural como um todo olhou para o Brasil e refletiu não apenas sobre a identidade nacional. A modernidade da Bossa Nova — que explodiu no Brasil em 1958, com Chega de Saudade de João Gilberto, e para o mundo em um show antológico no Carnegie Hall, em 1962 nos EUA —, além das inovações estéticas do Cinema Novo e do Teatro de Arena expandiram o imaginário acerca das brasilidades, num processo reflexivo que se movimentava de dentro para fora. Isto é, pensavam sobre o Brasil sob uma nova perspectiva: não apenas que país era aquele, mas qual ele poderia ser.
Nesse recorte temporal, as artes visuais e os processos históricos estiveram unidos de modo atávico no Brasil, produzindo uma fecunda experiência de modernização em diversas esferas. Um período de expansão, onde se partilhou um sentimento de euforia e se vislumbrou a materialização de projetos utópicos — muitos deles frustrados, vale dizer.
Modernidade em marcha
Para explanar esse processo, é impossível desconsiderar um projeto de modernização das artes tocado por agentes privados e públicos nos anos 1940. Em meados daquela década, um tipo de mecenato passou a vigorar nos grandes centros urbanos do país. Para que um novo senso estético se disseminasse e fosse socialmente compartilhado era necessário que houvesse meios para que houvesse essa penetração do sensível na população. Espaços que propiciassem o contato entre esses dois corpus: público e obra.
Em um intervalo de poucos anos, foram fundados: o Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1947 — por iniciativa do empresário e fundador dos Diários Associados, o paraibano Assis Chateaubriand —, e os Museus de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro e de São Paulo, ambos em 1948. São espaços que, para além de suas funções culturais — ou seja, servir de teto e chão para as exposições e mostras de arte —, também representaram importantes marcos da arquitetura modernistas, penetrando no imaginário coletivo devido seu impacto na cena pública. Esse grau de intervenção na paisagem urbana não é desprezível. Afinal, mesmo pessoas que apenas passam pelos museus, sem sequer cogitar adentrá-los, têm sua imaginação sacudida pelas formas singulares que veem.
Antes mesmo do Rio de Janeiro e São Paulo inaugurarem seus modernos museus, Juscelino Kubitscheck, então prefeito de Belo Horizonte (1940-1945) empenhou-se em erguer um complexo arquitetônico sem precedentes no Brasil. Muito antes de ser eternizado pelo projeto de Brasília, JK avançou numa aventura modernista chamada Pampulha.
Nos tempos em que governou a capital mineira, JK ficou conhecido como “prefeito-furacão”. O apelido dado pela imprensa veio do volume de obras iniciadas e concluídas durante sua gestão. Vias — como as avenidas Afonso Pena e do Contorno — foram alargadas e asfaltadas, abrindo passagem para outro símbolo desse progresso modernizador: o automóvel. Mas para além da quantidade estava a qualidade desses empreendimentos; isso é, o ímpeto que motivou essa tremenda alteração do espaço público. Não se tratava (apenas) de facilitar a vida do cidadão belorizontino, e sim consolidar a imagem de BH como um centro urbano com vocação para o moderno. E principalmente, mostrar isso ao mundo.
JK convocou o arquiteto Oscar Niemeyer para elaborar o projeto da monumental Pampulha. Também contribuíram o paisagista Burle Marx e os pintores Cândido Portinari e Tomás Santa-Rosa — todos eles representantes do modernismo brasileiro que, àquela época, se encontrava em fase mais amadurecida, em comparação a Semana de Arte de 1922. O conjunto artístico-arquitetônico ampliava o campo de visão e o alcance imaginativo dos moradores e visitantes da capital mineira.
O cidadão tinha diante de si a modernidade estampada em curvas e retas, manifestas em cimento, vidro e concreto armado. Por outro lado, também era latente as contradições e apagamentos sociais da empreitada modernista conduzida por JK. Na prática, a Pampulha foi concebida como uma área de lazer voltada para as elites — com a prática de esportes náuticos, o cassino, além das mansões construídas no entorno. Para o seu acesso, a construção da Avenida Pampulha (atual Av. Antônio Carlos) significou a remoção de centenas de moradores. As indenizações recebidas pelos desalojados, vale dizer, foram baixíssimas — isso quando havia a compensação.
Até meados da década de 1930, a capital de Minas Gerais era percebida de duas formas distintas. Inovadora no traçado urbano, a parte planejada da cidade contrastava em tudo com a antecessora sede do governo do estado, a histórica Ouro Preto. Mas BH também era vista — principalmente por paulistas e cariocas — como pacata e interiorana: uma cidade de funcionários públicos, cuja maior parte nem nascida na cidade era, trazendo na bagagem uma cultura menos cosmopolita e mais interiorana.
Para JK, porém, Belo Horizonte estaria mesmo designada a ser um símbolo de modernidade — afinal, fora a primeira capital planejada do Brasil —, e a Pampulha seria a maior expressão desse destino. Sua inauguração foi em 1943. Na esteira, em maio de 1944, uma exposição de arte moderna, reunindo os maiores representantes do Brasil, inseriu a capital de Minas definitivamente no circuito das artes plásticas, ao lado de São Paulo e Rio de Janeiro.
Outra ação da política cultural de Juscelino Kubitscheck, enquanto ocupou a prefeitura de BH foi a fundação do Instituto de Belas Artes, em 1944. Não era o primeiro curso de artes na cidade. Contudo, havia aqui um diferencial: a vinda do pintor fluminense Alberto da Veiga Guignard para encabeçar o projeto, dando aulas de pintura e desenho ele próprio. Entre os primeiros alunos do mestre modernista estava um jovem estudante de Direito, chamado Amílcar de Castro.