3. Dois artistas em formação
Texto Nº 3 de uma série de 6
Alberto da Veiga Guignard (ao centro) desenvolveu vínculos com Amílcar (à esq.) e outros alunos, que foram além da relação mestre-pupilo. A amizade e o estímulo à criação de seus alunos são marcas registradas do seu ensino. Muitos anos depois, essas também serão marcas da fotografia, do professor que foi Amílcar de Castro. Fotógrafo não identificado. Belo Horizonte. Década 1940. Acervo: Instituto Amílcar de Castro
A arte de Lygia foi progressivamente trabalhando os limites de sua expressão material. No início dos anos 1960, trabalhos como Obra Mole e Trepantes são esculturas orgânicas, de formas maleáveis, que se alteram de acordo com o ambiente e suporte na qual são instaladas. Fotógrafo não identificado. Dec.1950 Acervo: Associação Cultural Lygia Clark.
Entre 1941 e 1945, Amílcar foi aluno do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Porém, a transformação provocada pelo curso de artes falou mais alto na sua trajetória pessoal. A despeito de ser atraído pela produção artística desde muito jovem, é possível imaginar que a decisão de frequentar as aulas do Instituto de Belas Artes veio de um impulso, consciente ou inconsciente, de escapar da condição (socialmente imposta) que impunha seguir os passos de seu pai. Do velho, Amílcar herdou não só expectativas profissionais, como o próprio nome: muito antes de fazer menção ao artista mundialmente famoso, Amílcar de Castro era o nome de um desembargador do Estado — ainda hoje respeitado no meio jurídico por sua habilidade com as letras e as leis. Amílcar de Castro (o filho) nunca havia se imaginado seguindo outra carreira que não a do Direito. Isso até tomar contato prático com as artes.
O Instituto de Belas Artes de Belo Horizonte foi fundamental para a trajetória pessoal e profissional de Amílcar. Frequentou o curso quase diariamente, entre 1944 e 1950. Lá aprendeu com Guignard, por exemplo, a operar a superfície com propriedade e simplicidade, num gesto único e preciso.
O traço firme, com lápis grosso — o 6H — sulca o papel não permite borracha. Essa concepção Amílcar levou para sempre em seu fazer artístico. “Riscou está riscado”, como disse certa vez em entrevista. E, se por um lado não herdou de Guignard, de modo algum, a preferência por obras figurativas — ou seja, que representam figuras, objetos reais, paisagens etc. —, por outro, as bases da técnica e a percepção visual para as formas básicas (quadrado, triângulo, círculo) que compunham os esboços feitos pelo mestre também lhe marcaram em definitivo.
Quando a gestão JK na capital mineira começava a ganhar ritmo, Lygia Clark preparava para mudar-se da cidade natal. Nem por isso esteve afastada das transformações sensíveis e inserções modernas do período. Ao contrário. Mudou-se para a então capital federal, recém-casada com um engenheiro chamado Aloízio Clark — pai de seus filhos, e do qual herdou o famoso sobrenome. Começou a ter aulas de pintura em 1947.
Pelo que confidenciou, anos mais tarde em correspondência trocada com o artista e colega, Hélio Oiticica, Lygia foi acometida por um estado depressivo após nascimento do terceiro filho, buscando nas artes uma forma respiro. Ainda que à época não se tivesse a concepção que atualmente se tem à respeito do potencial terapêutico contido na expressão artística, foi o que Lygia efetivamente fez: buscar na arte um processo de cura para sua depressão pós-parto. Na primeira tentativa, achou a professora muito acadêmica. A índole criativa de Lygia requeria maior liberdade estética. A encontrou, nas aulas com outro mestre modernista, Burle Marx.
Junto com as aulas, Lygia passou a frequentar um reduto artístico carioca privilegiado. Entre as figuras de quem se aproximou estava aquele que pode ser considerado o maior crítico de arte de nossa história: Mário Pedrosa. Por ser um militante trotskista, passou anos no exílio, fugindo das perseguições políticas do Estado Novo; e seu retorno será determinante para a elaboração da arte (neo)concreta no Brasil.
Outra Figura importantíssima no processo de formação artística de Lygia Clark foi a escultora Zélia Salgado. Amiga de Burle, frequentemente assumia as aulas no ateliê do paisagista. Zélia foi uma das a encorajar Lygia a estudar arte em Paris — e representou uma ponte importante entre a mineira e proeminentes artistas europeus, como o francês Fernand Léger. O marido Aluízio apoiou a escolha da esposa, que levou os três filhos para a França, onde passaria os próximos dois anos de sua vida.
A obra de Lygia Clark, desde os primeiros anos, segue uma espécie de linha evolutiva. Nesse início, de temáticas tradicionais — o retrato, objetos caseiros, ambientes domésticos, paisagens ao ar livre, a arquitetura das coisas — vai em direção à uma arte abstrata, com forte inclinação à geometria das formas.
Já desde esse princípio demonstra preocupação com os aspectos estruturais de seus quadros — como cor, linha, espaço, ritmo e forma. E não deixa de ser curioso notar sua predileção por pintar cavaletes, já que a questão do suporte do quadro, será seu grande mote de exploração logo após retornar da França.
Lygia sempre foi geniosa, desde criança. Quando adulta, em cartas, confessou sentir-se na infância a “ovelha-negra” da família — o que, vale dizer, talvez não se aplicasse à toda família, já que sua irmã, Sônia, também cresceu artista e poeta. No colégio católico não era boa aluna: em suas próprias palavras era “agitada”, se aquietando apenas quando a deixavam desenhar. A imagem de boa filha, esposa, mãe e dona de casa parece nunca ter lhe vestido bem. A arte foi o escape perfeito para seu espírito inquieto.
Longe do projetado
Lygia Clark e Amílcar de Castro se aproximam por seguirem rumos artísticos como quem traça rota alternativa, escolhe o descaminho como destino. Quer dizer, ele e ela poderiam ter seguido suas vidas pelo caminho previsível. Os dois pertenciam à uma pequena burguesia, que tinha por tradição os filhos seguirem os caminhos dos pais, e as filhas, o caminho das mães. Lygia, poderia ter continuado como dona-de-casa, que cuida do marido e filhos, desfrutando dos privilégios de ser uma mulher jovem e membra da elite carioca gozando a prosperidade da década de 50. Amílcar, seguiria os passos do pai homônimo, advogando para particulares ou atuando como funcionário público de carreira.
Obviamente não foi o que aconteceu. Foram tomados por impulsos sensíveis, que reverberavam os tempos modernos que viviam. Buscaram na arte um lugar para viverem plenamente, com profundidade.
Após se formar no curso de Direito, Amílcar de Castro passou a exercer a profissão, mas logo se cansou. Viu que aquilo simplesmente não era para ele. Os ritmos, os ritos, a burocracia… todo aquele universo Direito lhe aborreceu de tal modo que ficou claro ser impossível seguir profissionalmente com aquilo. À medida que intensificava seu contato com a arte seu talento começou a transparecer. Participou das mostras organizadas por Guignard, ganhou prêmios com seus desenhos, e nunca mais parou.
A partir de 1948, além de desenho e pintura, o Instituto de Belas Artes de BH passou a ter aulas de escultura. O professor foi o austríaco Franz Weissmann, um dos muitos artistas europeus erradicados no Brasil em decorrência das tragédias que assolaram o Velho Mundo — em seu caso, as crises econômicas pós-Primeira Guerra. Amílcar de Castro começou ali o contato com essa expressão das artes plásticas que, alguns anos depois, lhe consagraria um lugar único na arte brasileira — e mundial.
Amílcar aprendeu primeiro escultura figurativa. As peças eram principalmente modelagem de figuras humanas em argila e gesso. A arte abstrata, em especial aquela que trabalha a forma geométrica — expressão que Amílcar se utilizou na maior parte de sua carreira — já estava em voga na Europa há pelo menos duas décadas, desde os anos 1920. O construtivismo — corrente artística em que a estrutura composicional (cores, formas, arranjos) ocupa elemento central, e cujo principal representante é o neerlandês Piet Mondrian —, adentraria de fato no Brasil apenas na década de 1950.