REVISTA nº 6

Apostas coletivas para indeterminar o cinema negro

Um ensaio sobre a plataforma INDETERMINAÇÕES

Gabriel Araújo
06 Out 2022 14 Min
Apostas coletivas para indeterminar o cinema negro
Milton Gonçalves em A Rainha Diaba (1974), de Antonio Carlos da Fontoura

Este texto contou com a colaboração de Lorenna Rocha

A INDETERMINAÇÕES, plataforma de crítica e cinema negro brasileiro, nasce de um desejo compartilhado por nós, Lorenna Rocha e Gabriel Araújo, de investigar e lançar questões em torno da crítica cinematográfica e do cinema realizado por pessoas negras no Brasil.

Passados oito meses de plataforma (ela foi fundada em novembro de 2021), parece ser um bom momento para traçar e dividir com o público algumas ideias, vivências e questões que nos apareceram.

O texto que se segue é, portanto, uma reflexão, um ensaio, uma possível avaliação do que tem sido construído e compartilhado por essa iniciativa. Ainda, há a tentativa de traçar uma aproximação entre a breve história da plataforma e uma discussão possível sobre a memória atrelada às imagens e sons negros.

Esse esforço de conjugação se inicia com um exemplo: o curta Gênesis 22 (1999), realizado pelo cineasta Jeferson De enquanto ele ainda cursava cinema na Escola de Comunicações e Arte da USP.

O desejo pela contradição 

Diferentemente dos recentes filmes de Jeferson De, como M8 – Quando a morte socorre a vida (2019) e Doutor Gama (2021), Gênesis 22 abandona um estilo convencional e uma estética limpa para adotar a experimentação enquanto premissa.

No filme, João Acaiabe e seu filho, Carlos Acaiabe, deslocam a história bíblica de Abraão e Isaque para um ambiente e um tempo não identificados. A narrativa apresenta o personagem interpretado por João, que dirige aflito com seu filho desacordado no banco de trás do carro, enquanto a rádio ligada conta a história de Abraão, que deve matar seu primogênito, Isaque, a mando de Deus. Entre as imagens em primeiro plano de João, do aparelho de rádio e do volante, uma fala se repete entre a trilha sonora aguda: “What’s going on, my brother” / “o que está acontecendo, meu irmão?”.

Frame de Gênesis 22 (1999), de Jeferson De

Descrevo essa cena para pensarmos algumas ideias a partir do curta. Se, na bíblia, a sádica história busca representar o senso de justiça e clemência do Deus do Velho Testamento, no curta, uma espécie de desacordo reina. A narrativa experimental pode tanto remeter à injustiça da tarefa, simbolizada na expressão consternada de João, quanto emular a violência que assola corpos negros no país, como quando o protagonista aponta a arma para o peito do filho inconsciente.

Essa indefinição estará presente durante o decorrer do filme, que não opta por uma solução fácil nem mesmo quando termina. Pelo contrário, o curta assume uma narrativa e uma estética erráticas que colaboram para enxergá-lo enquanto “desobediente”, para usar um termo utilizado em texto do crítico Juliano Gomes para a Revista Cinética.

Essa desobediência, que posiciono aqui enquanto indefinição, se difere bastante da trajetória que Jeferson De adotará no futuro, enquanto cineasta, assim como se distancia das regras preconizadas pelo Dogma Feijoada. O documento, que o diretor assinará em 2000, estabelece alguns preceitos do que deveria ser o cinema negro, defendendo priorizar a produção de “filmes-urgentes”, que “privilegiam o negro comum” e estejam, de alguma maneira, “relacionados com a cultura negra brasileira”. No intuito de estabelecer um parâmetro comum de realização para filmes pretos, inspirado pelo Dogma 95 de Thomas Vinterberg e Lars von Trier, o Dogma Feijoada acaba por tentar domesticá-los. Segundo o documento, parece não haver espaço para a contradição dentro das narrativas negras. 

É importante ressaltar que, provavelmente, nem mesmo os filmes de Jeferson e dos demais signatários do Dogma seguiram seus preceitos à risca. A questão é que o documento acaba apontando dois caminhos: a criação de uma unidade em torno da ideia de cinema negro, o que facilitaria a defesa política de um movimento, e a consequente exclusão de filmes divergentes desse pressuposto.

No entanto, defendemos com a INDETERMINAÇÕES que é preciso reconhecer as obras e as trajetórias de cineastas e profissionais negros do audiovisual em sua multiplicidade. Para isso, é crucial deslocar as hierarquias da cadeia de produção de um filme para considerarmos a contribuição desses profissionais para além do cobiçado posto da direção. E uma das chaves para adentrar esse ambiente de disputa pode estar, justamente, no retorno a obras realizadas em diferentes momentos da história do cinema brasileiro.

Na ânsia de inscrever discursos no presente para alterá-lo, seja por meio das narrativas convencionais ou experimentais, seja comedida ou radicalmente, alguns espaços por onde o cinema negro brasileiro circula parecem adotar uma posição a-histórica em torno das obras, de seus produtores e das narrativas que as conformam. E como os ares da novidade acabam por afastar o esforço de construir uma memória, em nome da defesa de um movimento – o cinema negro –, a ideia de unidade pode soar mais interessante que a de indeterminação. 

INDETERMINAÇÕES: uma possível genealogia

Apesar de ter sido lançada em novembro de 2021, a história da INDETERMINAÇÕES – plataforma de crítica e cinema negro brasileiro começa quase um ano antes. Durante a pandemia, nós, Lorenna Rocha e Gabriel Araújo, amigos e colegas de trabalho, nos engajamos em tentar criar um seminário com mesas que possibilitassem discutir acerca do cinema negro no Brasil.

Mesmo com a proliferação de cursos, lives e rodas de conversa sobre filmes realizados por pessoas negras e demais questões relacionadas, nos parecia faltar (ou ser pouco comum) espaços de enfrentamento das ideias, onde as diferenças nos modos de pensar e perceber o cinema negro ficassem mais aparentes.

Entre 2020 e 2021, criamos dez mesas de debate para o nosso seminário. Em seguida, pedimos anuência a várias pesquisadoras(es), críticas(os) e artistas negras(os) para viabilizar nossa ação. Em meio a vários “nãos”, três encontros foram fundamentais para darmos o pontapé inicial de nossa trajetória: com Débora Pill, do Goethe-Institut São Paulo; Heitor Augusto e Fernanda Lomba, do Instituto Nicho54, e o BDMG Cultural. 

Além de passarmos a nos entender como uma plataforma, algo que não tínhamos pensado num primeiro momento, a relação estabelecida com o Instituto Nicho54 nos possibilitou estrear as atividades da INDETERMINAÇÕES com a Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual, no contexto da mostra Nicho Novembro 2021. Na ocasião, nos dedicamos às investigações do cinema negro e brasileiro a partir de seus marcos históricos, com grande interesse em lançar perguntas a certas narrativas que circundam o campo e em localizar coletivamente algumas reverberações disso no contexto contemporâneo. 

Em 2022, com o patrocínio do BDMG Cultural e o apoio cultural do Goethe-Institut São Paulo e da Embaixada dos Estados Unidos em Belo Horizonte, engatamos três projetos que dão continuidade ao programa defendido pela plataforma, em seu interesse pela pesquisa, formação, memória, publicação e preservação: o Mapeamento do Corpo Crítico Cinematográfico Negro Brasileiro, o seminário Práticas Críticas do Pensamento Negro e a publicação Trajetórias Críticas, onde 11 profissionais negras(os) da crítica de cinema refletiram sobre sua formação e suas contribuições no campo da crítica e do cinematográfico negro e brasileiro.

Crítica e memória

Algumas premissas estavam nas nossas ideias quando começamos a delinear o que seria a INDETERMINAÇÕES. O investimento crítico, que valorizasse a complexidade das ideias e se livrasse das limitações do constrangimento, era uma delas. Queríamos possibilitar um campo afetivo – no sentido do verbo, da ação, da disposição para o fazer algo – onde a conversa sobre o cinema realizado por e com pessoas negras pudesse se dar de forma livre e desimpedida. Um espaço em que o objetivo não seria supervalorizar nem depreciar obras, diretores e diretoras, mas lidar frontalmente tanto com as fragilidades quanto com as potencialidades das criações negras no cinema.

Afinal, essa mencionada ânsia pela “urgência” em torno das obras realizadas por pessoas negras também fez com que os discursos críticos sobre e a partir delas se tornasse mais acanhado, acarretando num consequente empobrecimento das análises produzidas. Exemplo recente pode ser dado com Medida Provisória (2020), longa de Lázaro Ramos que, na busca pela representação de uma visão positiva em torno da comunidade negra brasileira, acaba caindo em situações clichês e soluções narrativas fáceis para propor uma espécie de integracionismo pacifista enquanto modelo de resistência a ser empreendido.

Como o objetivo deste texto não é o de estender a complexa relação entre representação, representatividade e negrura, mas como essa discussão ainda pode ser válida para a conversa, recomendo o texto escrito por Mariana Queen Nwabasili sobre o assunto. Nele, a jornalista, crítica e pesquisadora nos lembra que a representação-representatividade não pode ser usada enquanto uma tábua de salvação, e que uma leitura mais atenta das obras exige articular outros elementos para além de constatar se um filme é “necessário” ou não.

Para além da crítica em si, a memória figurava enquanto outro forte ponto de interesse. Em nosso texto de apresentação, disponível no site do projeto, endereçamos algumas perguntas que ainda reverberam nossas vontades. Aqui, reitero pelo menos duas: “o que podemos encontrar quando investigamos a filmografia nacional brasileira, na busca dessas luminescências [negras]? Como montar e remontar genealogias acerca do cinema brasileiro hoje?”

Milton Gonçalves em A Rainha Diaba (1974), de Antonio Carlos da Fontoura

As questões apontam para uma das proposições do projeto: a de que pessoas negras colaboraram ativa, criativa e autoralmente para a construção do cinema brasileiro mesmo que não tenham, num primeiro momento, assinado sozinhas a direção de filmes. Ora, é impossível ignorar a carreira de Grande Otelo para essa história, assim como é contraproducente separar a figura do Antônio Pitanga, ator de mais de 50 filmes, do Antônio Pitanga, diretor de Na Boca do Mundo (1978). Não que não sejam importantes alguns momentos de virada, ou seja, quando Waldir Onofre lança As aventuras amorosas de um padeiro (1975), Zózimo Bulbul constrói Alma no Olho (1973) ou Adélia Sampaio é lembrada pelo seu Amor Maldito (1984), para citar três diferentes exemplos.

Sobre esse último, Lorenna Rocha é precisa quando questiona, no texto Carta a Juliano Gomes (ou por um cinema negro que se lance ao abismo), publicado na Verberenas: “Imagina se a gente descobre que teve um filme realizado por uma cineasta negra antes da Adélia? Os saberes, tecnologias e memórias pretos são queimados desde sempre, né? Nada, afinal, é uma certeza. Mas sempre há um indício que vibra e permanece. Se isso acontecer, vamos destronar a pioneira da vez?”

A história do cinema brasileiro pode ser confusa, fragmentada, díspar e totalmente, sim, desigual. Dar centralidade à contribuição das pessoas negras nessa história corresponde à nossa vontade de defender a agência de Ruth de Souza, Léa Garcia, Luiza Maranhão, Tony Tornado e Milton Gonçalves, entre tantos outros, como coautores das diversas produções que protagonizam. Pois um dos riscos de ignorar uma história tão rica e tão cheia de contradições é justamente o de esquecê-la. E o epistemicídio, como todos provavelmente sabemos, é causa e consequência do modo como o racismo opera no Brasil.

Para alterar o presente, coletividade

O objetivo central para a INDETERMINAÇÕES, desde a sua fundação, foi construir uma coletividade em torno de suas ações e iniciativas. Não é à toa o investimento em propostas que só conseguem ser desenvolvidas em conjunto. Chamar pessoas cujos pensamentos e elaborações teóricas nos instigam, seja para participação em conversas públicas, seja na escrita de textos em colaboração, é uma estratégia adotada para diversificar as vozes que constroem a plataforma. 

Tendo a concordar com o pesquisador e crítico teatral Guilherme Diniz quando, no texto Perspectivações, ele escreve que não se interessa pelo centro. E continua: “Quero fazer uma crítica engajada no movimento, no deslocamento, no trânsito, capaz de ser infixa, desconfiada de princípios unívocos. Leda Martins nos ensina que as culturas negras são culturas das encruzilhadas, lócus por excelência da dinâmica e da transformação”.

Essa aposta da plataforma reverbera na investigação de diferentes modos de entender o mundo, o cinema e as criações artísticas, numa tentativa de evidenciar posições distintas, ou mesmo contrastantes, com a finalidade de valorizar a polifonia que descreve o modo como compreendemos o cinema negro brasileiro.

Entre abril e maio de 2022, realizamos as quatro primeiras mesas do seminário Práticas Críticas do Pensamento Negro, a proposta que mobilizou os primeiros passos da plataforma no início do ano passado. Com a participação de oito diferentes profissionais que atuam na interseção entre a crítica, o ensino e a pesquisa, construímos quatro mesas: Crítica negra como método, Investigar as matérias dos cinemas negros, Dogma Feijoada e Manifesto do Recife – 20 anos depois e “Se precisamos nos ver, que seja em espelhos, não em telas de cinema”: uma conversa com Michael B. Gillespie, todas ainda disponíveis no canal da INDETERMINAÇÕES no YouTube.

Registro da terceira mesa do seminário Práticas Críticas do Pensamento Negro, Dogma Feijoada e Manifesto do Recife – 20 anos depois. O evento foi realizado de forma on-line em 12 de maio de 2022

Com a possibilidade das pessoas inscritas acessarem diretamente a reunião nas salas virtuais onde as conversas com as convidadas e os convidados ocorriam, acredito que conseguimos ensaiar um espaço onde as contribuições se davam de forma mais direta e propositiva. Também procuramos, quando possível, ensaiar diferentes possibilidades de métodos para a conversa, numa tentativa de se distanciar das exposições acadêmicas convencionais e permitir fluir aquelas ideias que surgissem no calor do momento e na agilidade da conversa. Nesse formato, as trocas sempre ultrapassavam o acordo pré-estabelecido de duas horas de duração para cada mesa, e continuariam não fosse a limitação da ordem da produção.

Coletivamente, aprendemos a construir um espaço de intervenção com o público cujas conversas reverberavam de uma mesa a outra. A realização das mesas, felizmente, tornou nítida a proposta da curadoria do evento, por meio da construção de conexões entre diferentes falas e argumentos – seja pela via da concordância, seja pela oposição.

Durante a terceira mesa do evento, por exemplo, que discutiu os impasses e as contribuições do Dogma Feijoada e do Manifesto do Recife (documento lançado em 2001 que exigia igualdade racial nos processos do audiovisual brasileiro), assistimos a uma profusão de pensamentos que conjugavam diferentes concepções e temporalidades em torno do cinema negro brasileiro. Com a participação do professor, crítico e pesquisador Bernardo Oliveira, do artista e dramaturgo Diego Araúja, e da crítica, pesquisadora e curadora Letícia Bispo, apostamos juntos na proposição de quais poderiam ter sido outras genealogias para a construção dessa história, retornando a personagens e momentos por vezes esquecidos na voracidade vinculada a uma ideia linear de evolução.

Momento especial foi também a mesa de encerramento, realizada com o pesquisador Michael B. Gillespie, até então professor de cinema na City College of New York. Gillespie escreveu Film Blackness: American Cinema and the idea of Black Film, um livro importante para que começássemos a desconfiar dessa proposta de cinema negro que se pretende universal, centrada nas ideias da “boa representação” e do “progresso racial”. Resumidamente, na obra – e ao contrário do que preconizou o Dogma Feijoada na virada do milênio –, Gillespie reivindica o filme preto enquanto uma proposição formal e artística que não deve estar limitada a um espelhamento da experiência negra no mundo. Para ele, a ideia de negrura no cinema está, portanto, muito vinculada a uma defesa da liberdade.

“Para deixar claro”, ele disse, durante sua participação na mesa, “o preto das pessoas pretas não é a mesma coisa do preto do filme preto”. E ele continua, ressaltando o papel da crítica frente à indefinição desses filmes: “acho que, em termos do que seria a possibilidade mais recompensadora do que o cinema pode nos oferecer, é no nível de interpretação criativa, de fabulação política, de um tipo de especulação crítica sobre o mundo [que saímos ganhando]”. 

Pra gente, indeterminar é também dar vazão a esse movimento, de modo a construir possibilidades de criação que se ancorem em perspectivas plurais de apreensão e análise. Só a partir dessa complexidade conseguiremos manipular as ferramentas necessárias para alcançar liberdade nos processos artísticos e teóricos, materiais ou imaginativos.

Afinal, como disse o próprio Bernardo Oliveira na mesa mencionada, “essa luta, que é política, é uma luta para que se possa realizar as coisas”. Criar, sem amarras.

Gabriel Araújo


é jornalista, crítico e curador de cinema. Cofundador da INDETERMINAÇÕES, plataforma de crítica e cinema negro brasileiro, e do Cineclube Mocambo.

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