REVISTA nº 6

Um chamado ancestral 

Abraçando a tradição da família, o chefe de guarda Adriano Maximiano pesquisa a cultura do congado em Minas Gerais nas suas diversas manifestações

Vinicius Luiz
06 Out 2022 6 Min

O ano era 2003, Adriano Maximiano tinha 20 anos e trabalhava como técnico de processamento de dados e vivia na Favela do Pó, em São Paulo, quando recebeu uma ligação de um tio de Ilicínea, no sul de Minas, há 430 km dali. “Seu avô tem poucos dias de vida”, disse o tio. Adriano então pegou sua moto e percorreu a distância na maior velocidade possível até a cidadezinha mineira. Quando chegou, encontrou o avô com a saúde fragilizada, mas passado um tempo, o “seu” Geraldo Jacó se recuperou e viveu até 2007. Já a viagem de Adriano não teve volta. Ele decidiu ficar em Ilicínea e, aos poucos, foi assumindo a liderança de uma antiga tradição familiar e da cidade: das guardas de Congo e Moçambique.

Foto: Acervo pessoal

Ilicínea fica a 310 km da capital Belo Horizonte. Sua povoação começou no século XVIII com a notícia de que existiria um tesouro guardado por bandeirantes nas margens do rio Itaci. Na falta de tesouro, os habitantes aproveitaram a terra fértil para plantar café, que se tornou a principal fonte de renda da cidade, e onde escravizados fizeram florescer a tradição dos congados, reinados e moçambiques. Esses grupos celebram santos negros, como Nossa Senhora do Rosário, Santa Ifigênia e São Benedito, com manifestações nas ruas adornadas por cantos, instrumentos e roupas típicas. A festa ainda é marcada pela hierarquia, onde se vê capitães, reis e rainhas.

“Essa seria, para mim, a definição do que é o reinado: fé, devoção e humildade. Mas aí como se caracteriza, como se expressa essa fé é através da musicalidade, é através da dança, é através dos gestos”, diz Adriano. 

O avô dele, Geraldo Jacó, era um dos responsáveis por manter essa tradição, enquanto capitão de coroa da cidade. Tocou e dançou até falecer, aos 78 anos. Depois da morte, rondou o mistério na família. Quem levaria adiante o cargo? “No dia em que ele morreu, eu fui na casa dele e pedi para o meu tio uma lembrança”, conta Adriano. Mas o tio disse para ele esperar e voltar dali a 30 dias. “Quando fez 30 dias, ele falou assim: o que é seu tá atrás da porta do quarto do pai”. Ele ficou emocionado porque sabia o que estava atrás da porta: a farda, a bengala e o terço que representavam o cargo de capitão. “Eu queria algo pra guardar de lembrança, não uma responsabilidade”. 

Mas a responsabilidade veio. “Então, eu tive que estudar muito para entender, sabe?”. Uma das primeiras missões foi compreender porque os ternos registravam menos participantes. “Tem fotos das décadas de 50, 60 e 70 com as ruas lotadas de gente, mas quando meu avô ainda estava vivo, tivemos saídas com apenas 15 pessoas”. Adriano atribui essa mudança a dois fatores. O primeiro é que antigamente a maior parte dos moradores trabalhava na colheita de café e o período das festas ocorria na época de chuvas que antecediam o plantio, o que permitia que os trabalhadores tivessem mais folga. A outra explicação é que a tecnologia atrai mais os jovens que a tradição. “É muito mais difícil ele ficar atraído batendo tambor o dia inteiro debaixo do Sol do que ficar no celular”.

Adriano passou a trabalhar junto das escolas de Ilicínea para explicar o valor histórico e cultural dos congados e também para quebrar outra camada de resistência: o racismo religioso que afeta manifestações de matriz africana. “Temos sempre que reforçar que nossa tradição é afrodescendente, ou seja, ela nasceu da escravidão, ela nasceu dentro de uma senzala. Então eu também gosto de reforçar que ela é uma expressividade religiosa e musical daqueles que sangraram e conseguiram manter isso vivo para que a gente possa usufruir hoje”. Além das palestras, também foram ofertadas oficinas de música para crianças e adolescentes. “A gente ouve falar de congada na matéria de História, mas a gente não ouve na matéria de Artes. Eu consegui ter essa percepção e multiplicá-la, de que aquilo ali tem um viés artístico muito potente”. De acordo com Adriano, diferentemente de outras expressões artísticas, em que qualquer pessoa pode aprendê-las em cursos, tocar no reinado demanda uma ligação com a ancestralidade, o respeito àqueles que vieram antes. 

Ações como essas foram muito importantes para reaproximar a população dos congados, levando ao aumento da participação nas saídas. Em 2017, a prefeitura de Ilicínea declarou o Congo e o Moçambique como patrimônio imaterial da cidade. 

Sete cantos de Minas

Pensando na perspectiva artística do Congado, Adriano se lançou em uma empreitada tão desafiadora quanto assumir a posição do avô. Em 2021, foi um dos selecionados pelo LAB Cultural com o projeto “Reinados em 7 cantos de Minas conectados por seus cantos e rimas”. Com um grupo de quatro pessoas, percorreu 15 cidades mineiras, em mais de 75 horas de viagem para realizar o registro dos reinados de diferentes regiões do estado. Todo o processo foi registrado em um diário de viagem e, como produto final, foram realizados filmes de 15 minutos, que vão dar origem a um documentário e um livro. 

“No início, eu pensei em fazer em cidades num raio de 100 km de Ilicínea, mas depois fui pensando em expandir. Decidi ir no Norte de Minas, no Triângulo, no lado leste, na região da Zona da Mata, no Sul de Minas, no Jequitinhonha, na região Central… Quando coloquei no mapa, percebi que deu sete cantos”. 

Foto: Acervo pessoal

Os registros captaram semelhanças e diferenças nas manifestações ao redor do estado. “No Triângulo, eles criam versos muito para o lado da festividade. Quando a gente vem pro Sul de Minas, são versos muito mais de louvação. Quando a gente vai para a região central, é mais lamentação. No Norte, eles têm músicas que se você tirar do contexto não vai saber que é de Reinado”. Enquanto as diferenças foram encontradas no canto e no modo de tocar, as semelhanças estavam assentadas na devoção e fé pelos santos pretos.

Para além do registro artístico, também foram observadas demandas desses grupos para manter as tradições. “Isso me trouxe mais respeito no âmbito político, por saber as dores do pessoal do Norte de Minas, do Triângulo, e debater para achar soluções de políticas públicas para esse povo, sabe?”. Essa articulação resultou na escolha de Adriano para a cadeira de cultura afro-brasileira do Conselho Estadual de Política Cultural (Consec).

A partir de provocações levadas por Adriano, feitas com base em apontamentos de mestres da cultura de todo o estado, em 2021, foi criado o projeto Afromineiridades, do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG). A proposta é realizar uma série de eventos, debates e interações com lideranças políticas, intelectuais negros, comunidades quilombolas e povos de terreiro.

“Parece que não tem nada a ver, quando a gente fala assim. Mas eu consegui levar isso até o governo porque eu nasci numa família de congadeiros e porque meu avô deixou pra mim a liderança na cidade de Ilicínea em 2007. Se não fosse isso, eu não teria me engajado tanto na cultura e na política. Então tudo tem a ver com a nossa tradição”, analisa. Todo esse trabalho foi permeado por uma provocação da tutora do Lab Cultural, Dione Carlos: “Que tipo de ancestral você quer ser?”. O trabalho desenvolvido por Adriano até aqui já aponta para respostas. 

Vinicius Luiz

 

é jornalista e faz especialização em Comunicação Pública da Ciência na UFMG. Foi editor e apresentador na Rádio UFMG Educativa.

Leia também