REVISTA nº 6

Nos voltejos da memória

Em Pirapora, Clube Literário Tamboril transforma biblioteca comunitária em espaço de preservação da cultura e das tradições do povo barranqueiro 

Bárbara Lima
06 Out 2022 7 Min
Nos voltejos da memória
Semente de baru. O Espaço de Memória Tamboril é um museu de alma ribeirinha e sertaneja. Foto: Bicho Carranca

Localizada na margem direita do Médio São Francisco, Pirapora é conhecida como a cidade que marca o ponto inicial de navegação pelas águas do rio que abastece boa parte da região leste do Brasil. Construída em meio à paisagem natural, com vegetações do Cerrado, a cidade também é lugar de exploração de minérios e de interligação das malhas ferroviárias do Rio de Janeiro à Belém do Pará. Nesse lugar em que o fluxo fluvial perene do São Francisco permite a conexão entre a natureza e o urbano, Pirapora é um tramado de riquezas culturais e sociais que acompanha a sua história, desde o estabelecimento dos primeiros habitantes da região, com os povos indígenas Cariri. Na origem Tupi, Pirapora significa “o lugar onde o peixe salta”, uma região propícia para a pesca, o banho de rio e para o abastecimento aquífero da população. 

A abundância de movimentos culturais, com festivais de poesia, dança e arte, e a fundação de coletivos que resgatam as tradições regionais, como o Movimento Seresteiro de Pirapora e o conhecido Grupo de Danças Zabelê, realçam a história de uma região que não representa apenas a passagem de barcos pelos portos fluviais e dos trens pelas ferrovias, mas a construção da memória de uma comunidade, de uma cultura barranqueira tecida pelos povos que vivem nas margens do rio. Entretanto, mesmo com uma história rica em saberes, crenças e cultura, ainda são escassos os museus e lugares de memória na cidade: até pouco tempo, por exemplo, não existia uma Biblioteca Pública e acervos com os patrimônios materiais e imateriais da população.

Com o propósito de incentivar a construção de um espaço de preservação patrimonial, em 2014, pessoas apaixonadas pela cultura barranqueira-sertaneja e pela literatura reuniram-se para discutir as possibilidades de construção de um espaço engajado com a comunidade. Foi a partir de então que surgiu o Clube Literário Tamboril, proporcionando o acesso aos livros e à leitura, criando uma Biblioteca Comunitária no centro da cidade e instalando pontos de leitura nos espaços da rua por diferentes bairros, nos sindicatos e associações, com bancas, barracas e as gelotecas – geladeiras doadas que servem como estantes de livros. Além de Pirapora, o projeto cruzou o rio e instalou estandes de leitura na vizinha Buritizeiro, no Instituto Opará e na APAE do município. O intuito do clube é incentivar a gestão desses espaços pela própria comunidade, com doações de obras literárias, organização dos espaços físicos e promoção de eventos culturais. Assim, os laços comunitários são intensificados pela comunicação, convivência e criatividade nas produções artístico-culturais.

Gabriel Barbosa tem 19 anos, e é exemplo dessa participação mais ativa com a leitura:

“Eu sempre gostei de ler, mas nunca tive muitos livros em casa, e não tinha dinheiro para comprar, então o Clube Literário Tamboril mudou muito a minha relação com os livros. Me ajudou bastante porque comecei a conhecer novas leituras pela biblioteca, e a conviver com outras pessoas”.

Hoje, a Associação Clube Literário Tamboril tem trabalhado em um projeto de elaboração de um Espaço de Memória dentro da Biblioteca Comunitária. Jean Matheus Peixoto é produtor cultural em Pirapora, coordenador da biblioteca, e atua como um dos organizadores na construção deste espaço. Ele conta que o desejo de reunir símbolos, objetos e representações do povo barranqueiro existe desde a criação da Associação, pela crença de que a história de um povo está representada não somente pela literatura escrita, mas também pelos seus costumes e tradições orais. “A gente entende a biblioteca como um lugar vivo, aberto à diversidade e propício para a fruição cultural, a formação, a informação e o desenvolvimento pessoal dos leitores e demais usuários dos serviços disponibilizados. Mas, dentro de uma perspectiva ainda maior, a gente atribui à biblioteca a função de salvaguarda do patrimônio imaterial, num sentido amplo, não restrito à literatura”, afirma.

Espaço de Memória Tamboril, um local de memória coletiva do povo barranqueiro em Pirapora e Buritizeiro. Foto: Divulgação

Caminhos da memória pela construção de afetos

“O Espaço de Memória Tamboril é uma forma de materializarmos nossa crença de que outros conhecimentos e expressões cabem nesse ambiente da biblioteca”, afirma Jean. A memória é o lugar de pertença de uma comunidade e da identidade cultural de um povo, um lugar vivo e em transformação residido pelas lembranças e tradições de um passado em ressonância com o momento presente e os projetos de composição de futuros. Costumes, crenças, saberes, o modo como aprendemos a nos comunicar, os nossos sensos de pertencimento com um território são constituídos pela memória coletiva. Para as cidades de Pirapora e Buritizeiro, a presença da comunidade compartilhando as suas memórias, vivências e conhecimentos ancestrais permite a preservação cultural e o reconhecimento dos saberes inscritos nas práticas cotidianas como pertencentes a uma história, possibilitando o acesso ampliado às riquezas da comunidade barranqueira. 

No incentivo à composição desse espaço de preservação construído pela própria comunidade, os coordenadores e voluntários vêm realizando oficinas sobre a importância política de uma educação patrimonial de bens imateriais e de consciência sobre os direitos à cultura e à memória. Dessa forma, por um trabalho de engajamento participativo da comunidade barranqueira, Jean assegura: “O nosso propósito é sensibilizar e convidar as pessoas a construírem com a gente um museu na primeira pessoa do plural. São os próprios moradores que nos indicam quais objetos e memórias expor”.

As memórias afetivas fazem parte da construção do acervo, como os relatos de imigrantes sobre a diáspora de povos nordestinos à região sudeste do país, no início do século XX, que subiram as margens do rio São Francisco em busca de condições melhores de vida. Também são compartilhados os saberes curandeiros, com as ervas regionais, o saber pescar, tocar berrante, todos símbolos da comunidade ribeirinha.

Espaço abriga itens sobre memória, patrimônio e afeto da comunidade. Foto: Divulgação

De acordo com Jean, as entrevistas realizadas até o momento com os moradores das cidades mostra que o Velho Chico é sempre o ponto de partida dessas memórias. “O rio São Francisco é o elemento preponderante sobre a pesca, as embarcações, a navegação, a cultura, as festas, o trabalho, a culinária, a religiosidade, e também sobre as tragédias ligadas a secas”. Assim, a memória das pessoas atrelada ao rio permite a preservação da história e cultura local complementar à transmissão de conhecimento pela letra escrita, revelando os saberes impressos nas experiências cotidianas e na tradição da oralidade, no gesto de contar histórias e nas performances do corpo durante danças e ritos. 

Conhecer o passado para imaginar futuros

Com a integração do Espaço de Memória à biblioteca, pessoas moradoras dos municípios de Pirapora e Buritizeiro, estudantes, artistas, pesquisadores, além de visitantes e turistas, poderão ter acesso ao amplo acervo com a história e cultura local. Nesse processo, o patrimônio plural do museu sobre a cultura barranqueira acaba contribuindo também para os outros projetos culturais-artísticos da biblioteca, como a oficina de escrita criativa, os saraus e as rodas de conversa.

Contação de histórias, oficinas e brincadeiras com as crianças. Foto: Divulgação

Os planos futuros estão na composição do museu não apenas como um lugar imóvel, mas reconhecido enquanto linguagem viva, um lugar de referência para os moradores e de fruição da cultura. Gabriel ilustra: “O Espaço de Memória é muito interessante. Eu sou jovem e tem muita questão com a cultura e a história da cidade que eu não conhecia. A criação desse espaço vai ajudar muito jovens que não têm acesso a uma educação sobre a importância da memória, que às vezes não sabem nada sobre as próprias raízes, sobre os seus antepassados e os povos que já habitaram a cidade”.

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Bárbara Lima


é jornalista, analista de comunicação e pesquisadora. Atualmente é mestranda em Comunicação Social pela UFMG.

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