As mulheres do soul dançam muito
Percursos, percalços e encontros do Movimento Soul em Belo Horizonte nas lembranças afetivas de quatro apaixonadas pelos bailes black da capital
Em 2019, no final da graduação do curso de Design, assisti parte do filme Ôrí (1989), de Raquel Gerber, em uma aula do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG ministrada pelos professores César Guimarães e Pedro Aspahan. Fui me familiarizando nas poucas cenas vistas: tratavam-se de imagens da Chic Show no final dos anos 1970, um dos bailes mais importantes e celebrados da cultura black music em São Paulo. Lembrei das memórias compartilhadas por familiares e amigos próximos sobre suas idas e vindas dos bailes black em Osasco, região metropolitana de São Paulo, na mesma época. Foi quando percebi ser possível falar, dentro da universidade, das histórias que nos atravessam, e, então, comecei a desenvolver um projeto com a temática soul que se tornaria meu trabalho de conclusão de curso.O texto foi elaborado em conjunto com Lady Valéria, Maria Célia, Preta e Sueli Black, quatro mulheres atuantes nos bailes black da Grande BH desde as décadas de 1970 e 1980. Entrei em contato com elas ao perceber o expressivo envolvimento que mantinham com o soul que se dava nas ruas, nas casas de show, em organizações de eventos, por meio de suas redes sociais e em outros projetos já publicados, como o catálogo Expressões Culturais Afrobrasileiras em BH e o documentário BH Soul: a cultura black de Belo Horizonte.
Lady Valéria, nascida em Sete Lagoas, está presente nos bailes desde a adolescência e, junto de seu marido Lord Tuca, organiza o evento Comunidade do Soul. Maria Célia, nascida em Belo Horizonte, vem dançando nos bailes desde os 15 anos de idade e, hoje, é considerada uma das precursoras do movimento na capital. Preta, nascida em Teófilo Otoni, foi se tornando referência no meio do soul e sente uma identificação profunda com essas “músicas da alma” e o que elas representam. Já Sueli Black, nascida em Pirapora, é apaixonada pela black soul music desde seus 14 anos, e foi integrante do grupo Black Chic Panther, disputando concursos de dança fora de Minas Gerais. Hoje organiza, junto de seu marido Waldir Black, o Movimento Black Minas.
Por muito tempo, os direitos ao lazer e à socialização das mulheres foram comumente contornados por “protocolos sociais” voltados à preservação de uma “moral feminina” expressa em comportamento, vestimenta e trabalho doméstico. À elas foram relegadas as funções de cuidado e de responsabilidade para com o outro dentro e fora de casa. Assim, para que pudessem ter acesso a seus prazeres individuais e coletivos era necessária muita negociação; e se assim o quisessem, sair de casa somente seria permitido caso fossem acompanhadas por algum homem — já que os corpos das mulheres, sobretudo negras, nas ruas seriam facilmente enquadrados em algum julgamento moralista.
“Não era fácil ir aos bailes. Meu pai me repreendia por eu querer sempre sair para dançar e, por isso, comecei a sair escondido dele. Pulava até o muro de casa. Mas, sempre que eu chegava das festas em casa, apanhava muito.” (Sueli Black)
“Lembro-me de, nessa época, meu pai se tornar um grande amigo, que sabia me orientar e me proteger. Ele dizia que eu poderia me sentir livre para namorar, mas que era importante eu saber impor os meus limites ao outro: ‘Pode namorar, mas não deixem bulir com seu corpo’.” (Maria Célia)
“Se eu e minha prima fôssemos com nossos primos para o União Síria, por exemplo, mal podíamos olhar para os lados; se chegasse algum rapaz por perto para conversar, depois já iam nos fazer um interrogatório para saber quem era o cara. Nós duas éramos praticamente aldeadas. Ficar de mão dada com menino de 15 anos? Nem pensar! Paquerinha? Nem pensar! ‘Olha, não vá com essa roupa não!’ Mas os caras podiam dançar com as meninas tranquilamente. Quer dizer, tem todo um sumário de etiqueta feminina. A masculina está aí às pampas, à vontade. Mas quando eu chegava nos bailes e me deparava com mulheres com o cabelo black dançando na pista igual aos carinhas, eu ficava louca! É bonito demais!” (Lady Valéria)
Na maioria das narrativas históricas e oficializadas do Movimento Soul em Belo Horizonte, assim como no eixo Rio-São Paulo, ainda é relativamente pequena a participação das mulheres, seja contando histórias, performando ou ocupando os espaços para o encontro coletivo. A pouca presença de suas vozes reflete no compartilhamento quase monolítico e homogêneo do movimento em nosso imaginário, consolidando uma memória coletiva essencialmente masculina — representada nos palcos, na música, nas equipes de som, na dança e no engajamento sociopolítico.
“Muitas pessoas desconfiam ou acham estranho a mulher do soul dançar. Bom, as mulheres do soul dançam muito e até montaram um grupo de dança nos anos 1980; já nos anos 2000, chegaram a se unir para se afirmarem ‘Damas do Soul’. Mas a nossa realidade é um pouco diferente da realidade do homem: além do trabalho, nós arrumamos a casa, cuidamos dos nossos filhos, aprontamos a comida e, no final dessa jornada dupla, a gente ainda precisava pegar um ônibus num ponto longe da nossa casa para chegar nos bailes. Por isso tudo, era comum o marido sair para dançar e a esposa não. Isso deve ter acontecido com 90% das mulheres que passaram pelos bailes, como foi o meu caso. Hoje percebo que a maioria das mulheres que estão no soul atualmente retornaram ao movimento depois de muito tempo.” (Lady Valéria)
Apesar dos obstáculos colocados por essa narrativa histórica, falar do Movimento Soul na cidade de Belo Horizonte é tratar de uma manifestação cultural que se encontra em atividade desde o final dos anos 1960. A presença desse estilo na capital mineira é reverenciada por grupos de soul de outras capitais do Brasil, que destacam algumas características particulares das performances individuais e coletivas observadas em seus bailes.
“Em Belo Horizonte, acredito que não buscamos a coreografia em si, mas uma expressão corporal individual que tende ao soul pesado. Mas não só. Talvez seja um soul mais regional, até mais restrito. Sinto que o mineiro não gosta de se divulgar muito — apesar de, modéstia à parte, dançarmos muito bem e sermos fanáticos pelo movimento. Bom, são outras formas de seguir com o soul.” (Maria Célia)
“Minas tem uma vivência muito forte da ancestralidade congadeira e das rodas de capoeira. Isso está impresso em alguns dançarinos de black, nas suas formas de se comunicar e movimentar o corpo. A gente vê essa mistura acontecendo entre os mineiros.” (Lady Valéria)
O soul adentra a capital mineira a partir da Rádio Cultura AM, com o radialista Geraldão. Na época, era comum que as rádios passassem pela vistoria do Estado Ditatorial, mas o envolvimento do público jovem impulsionou uma relativa flexibilização, que levou as rádios a incluirem programações musicais e uma comunicação que dialogassem com as juventudes. A entrada do novo estilo musical afro-estadunidense nas mídias da cidade logo causou identificação de alguns jovens, provocando rápida ascensão do soul nas comunicações de massa. Em depoimento à professora e pesquisadora Rita da Conceição Ribeiro, o radialista Geraldão afirma que o soul “deu uma sacudida tão grande na periferia de Belo Horizonte porque […] atingia exatamente uma faixa pobre que não tinha acesso às tardes do Minas Tênis Clube e era uma música de qualidade e uma cidade também muito racista”.
“Os bailes eram o lazer noturno das pessoas. Não lembro de outras opções além disso. Geralmente, quem costumava ficar em bar era quem tinha um hábito maior de beber; quem não tinha, queria sair para curtir outras coisas que, no caso, era dançar. Combinávamos de ir a um baile no final de semana e depois a gente acabava indo a mais de um baile na mesma noite.” (Lady Valéria)
Por conta disso, esse mesmo público jovem e de periferia começou a se mobilizar para organizar e promover encontros coletivos em suas próprias casas, com o intuito de ouvir e apreciar a música e se divertir. Pequenos grupos se articulavam para montar os aparelhos de som, planejar os espaços, divulgar os eventos pelos arredores dos bairros próximos e receber os convidados em suas casas. No início, as festas aconteciam durante o programa Ritmos da Noite, apresentado por Geraldão na Rádio Cultura AM, geralmente na faixa das 22 horas, garantindo a trilha sonora soul dos encontros caseiros.
“Lembro de começarmos a fazer alguns encontros específicos para curtir a música soul. A Hora Dançante era o nome dessas festas ‘caseiras’, e o som do James Brown foi tomando conta de tudo! A gente ouvia as músicas das rádios e, pouco tempo depois, fomos conseguindo os compactos e LPs de soul em vinil. Esse tipo de festinha foi se popularizando em vários bairros da cidade. Os Beatles ainda faziam sucesso, mas foi o Brown mesmo que nos cativou para as pistas de dança. A gente foi experimentando tudo e o soul virou a nossa paixão.” (Maria Célia)
Com o tempo, os encontros foram se expandindo para salões da região do Centro e entorno (como é o caso do bairro Barro Preto), comportando um público maior. Era comum que as pessoas se encontrassem em pontos estratégicos da cidade para chegarem em grupo às casas de show (dois pontos de encontro, por exemplo, eram a Feira Hippie, na época localizada na Praça da Liberdade, e a Galeria do Ouvidor, no Centro). Assim, foram surgindo diversos bailes, como o Máscara Negra, União Síria, Bailes do Tremedal, Clube Asteka, Orion, Esparta, Italiano, Clube Recreativo, Clube de Dama, Alto dos Pinheiros, Comercial, Quadra do Barreiro, Soft, Anatômico, Cabana, Clube da Amizade, Fina Flor, Flash Dance, entre outros. Dentre esses, o Máscara Negra foi um dos mais expressivos, e talvez o de maior alvo policial.
“O soul não se limitava apenas aos espaços fechados dos salões. Lembro-me de, entre 1986 e 1988, acontecer o BH Canta e Dança, um evento na rua em que os melhores dançarinos da noite eram escolhidos para entrar na Noite do Ritmo, ou seja, a festa começava na rua e continuava dentro do salão. Era um evento super importante que todo mundo queria participar; os clubes de dança se apresentavam e precisavam sempre marcar presença no evento para ser notado. Tinha soul, hip-hop, funk, balé. E não era só a gente de Belo Horizonte que participava.” (Lady Valéria)
Os elementos e imagens essencialmente ligados às culturas de matriz africana ou afro-americana costumavam ser lidos como “afronta” ao poder instituído no estado mineiro. Geralmente, a polícia fazia vistorias nas casas de show em meio às festas, frequentemente violentando os presentes nos bailes.
“‘Homi para um lado e puta para o outro!’ Tratavam a gente como se fosse um lixo, um ninguém. Chutavam, davam cacetada, revistavam todo mundo, e sempre levavam nossos garfos (o ouriçador que usamos para deixar o cabelo redondinho). Nos pediam a carteira assinada — na época, a gente não tinha identidade e, mesmo parte de nós trabalhando desde os 10, 12 anos, não tínhamos o registro formal do nosso serviço — e, se não mostrasse, a gente ia preso por vadiagem.” (Preta)
“Certa vez, a polícia entrou em um baile do bairro Pompeia e saiu cortando o cabelo de todo mundo. Cortaram um pouco do meu black também… Depois disso, precisei deixar ele baixinho, e antes ele estava tão grande! Redondinho. Não havia a possibilidade de denunciar qualquer ação policial porque, certamente, seríamos perseguidos. Costumavam acabar com o baile em uma semana; mas na outra, o baile já estava de volta como antes e a gente dançando do mesmo jeito.” (Maria Célia)
Os bailes black foram e continuam sendo epicentros do engajamento individual e coletivo das forças e exaltações das culturas afro. São espaços estimulados a uma ocupação que se dá no intuito de promover o encontro social, o lazer, a festa, o divertimento, os afetos, os prazeres e a presença, onde também se reverencia personalidades negras importantes na luta antirracista e se subverte a lógica capitalista do corpo negro subserviente. Os territórios black também podem ser percebidos como reproduções ou recriações de manifestações ancestrais de matriz africana, uma vez que produzem e preservam conhecimentos e saberes.
“Nas nossas danças, tudo tem roda! Seja samba, hip-hop ou mesmo o soul. Eu acho que a roda é um espaço de oportunidade para se mostrar ao outro. Em roda de capoeira, quando te chamam é para gingar, quando você vai em roda de hip-hop é para duelar, na roda de samba você tem a visibilidade do todo. E no soul o que mais tem é roda! Tem horas que a gente até briga de tantas rodas que fazem nos encontros. Mas é nessa roda que qualquer pessoa entra e já vai dançando. A roda é grande. Antigamente, a mulherada era mais tímida na dança, mas, hoje, se abrem uma roda, com certeza estaremos lá no meio dela também.” (Lady Valéria)
“Sabia que a gente fazia política sem saber? Quando a polícia reprimia, a gente se reunia! A gente se reunia na União Síria pra falar sobre o assunto, ver o que a gente ia fazer… Sempre tinha alguma pessoa na frente que tomava uma posição. Só que a gente não tinha o conhecimento de causa, porque a gente queria curtir. Mas a partir do momento que você quer curtir, é uma reivindicação, entendeu? É uma questão de direito de ir e vir, e que naquela época a gente já era discriminado, principalmente pela polícia.” (Cadeado, no documentário BH Soul: a cultura black de Belo Horizonte).
“Os dançarinos de soul music colaboravam e muito para o Movimento Negro por causa do próprio penteado de cabelo, a nossa postura diferenciada… Isso levava a uma reflexão. Então a gente aproveitava as nossas apresentações, e sempre entregava os panfletinhos do movimento inserindo ali a questão da consciência negra.” (Celso Moretti, no documentário BH Soul: a cultura black de Belo Horizonte).
Falar das vivências do soul brasileiro não é apenas recordar de um passado remoto que por vezes foi exotizado pela mídia, mas é também propor um despertar de memórias sobre como esses diversos passados permanecem em nosso presente, ainda que em condições de ameaça à sua existência enquanto tradições populares no país, que lutam pela permanência do encontro coletivo.
“Nós não reparamos que somos repletos de ensinamentos, referências e influências indígenas e do povo preto africano — se diz que esse lugar chamado Brasil foi descoberto por portugueses, mas, na verdade, essa terra é de quem aqui já morava e de quem aqui foi obrigado a viver. Hoje carregamos essa história marcada no samba, no pagode e no próprio soul — que são ritmos negros; e por mais que o soul não tenha nascido no Brasil, aqui ele também representa a nossa essência afro-brasileira.” (Preta)
“Quando eu chegava no baile, era tudo tão mágico que a minha dor sumia! Naquele momento eu não sentia nada e voltava a perceber a dor quando o evento acabava e eu precisava voltar para casa. A música acalma a nossa alma, é impressionante. O soul transforma a gente.” (Sueli Black).
“O soul é um combustível que me renova e me dá forças para aguentar o baque da semana. Não viver isso tudo nas ruas e nos bailes é como tirar minha a alma e a minha vitalidade.” (Maria Célia)
“Para mim, a dança é algo que me faz esquecer… A dança faz a gente se distrair o tempo todo. É um momento em que só me concentro em mim e na música de fundo. Não sei explicar bem, mas sei que é algo que está dentro de mim há muito tempo.” (Preta)
Especula-se que o Movimento Soul em Belo Horizonte foi perdendo espaço em meados dos anos 1980, quando os bailes black não sustentavam mais a constante repressão policial, desmotivando o público a continuar frequentando as casas de show. Além disso, nessa mesma época, o sucesso da música soul no Brasil e nos Estados Unidos já começava a dar lugar a um novo estilo musical que se destacava na indústria fonográfica de forma exponencial: a disco music – um processo de branqueamento ou “whitização”, como define Rita da Conceição Ribeiro.
Com essa perda de espaço algumas pessoas ligadas aos bailes e ao soul da capital mineira procuraram alternativas e estratégias para manter o movimento vivo. O Baile da Saudade mantém o Movimento Soul ativo na cidade desde os anos 1980, e ainda incentivou o surgimento de novos grupos de soul a partir dos anos 2000: Quarteirão do Soul, Comunidade do Soul, Movimento Black Minas, Movimento Soul BH, dentre tantos outros.
“Mesmo com os blacks envelhecendo, não perdemos o pique da dança. Nossa alma, nossa vontade e energia continuam as mesmas de quando jovens. Ultimamente eu venho achando que danço até melhor hoje do que antes. O pessoal do black parece ter uma memória corporal muito boa e um espírito muito jovem.” (Maria Célia)
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Este texto é uma adaptação do Trabalho de Conclusão de Curso “Histórias do Movimento Soul de Belo Horizonte”, orientado pela professora Renata Marquez e apresentado em 2022 no curso de Design da Universidade Federal de Minas Gerais.