REVISTA nº 5

As tramas como expressão de identidades

A designer têxtil Ana Vaz explora as possibilidades do tecer e do que pode ser tecido, e leva a importância da criação autoral para projetos sociais no interior de MG

Igor Lage
04 Jan 2022 13 Min
As tramas como expressão de identidades
Instalação Do algodão à trama (2017). Galpão das tecedeiras de Tocoiós (MG). Foto: Rinaldo Martunucci

Talvez a primeira imagem que venha à nossa mente quando falamos em “tecer” seja, quase sempre, relacionada a algum material têxtil: tecidos, panos, linhas ou fios. Mas, na prática, também usamos a ideia de tecer para dizer de possibilidades da linguagem, especialmente quando nos referimos ao ato de contar histórias. Elaborar uma trama significa, nesses casos, reunir os elementos de uma história e entrelaçá-los, tecê-los de um modo que a narrativa diga o que pretendemos e envolva a pessoa que a ouve ou a lê. Não é por acaso que termos como “enredo” ou “novela” também nos remetem a esses horizontes das histórias e dos tecidos.

Retrato de Ana Vaz. Foto: João Bertholini

Para a designer têxtil Ana Vaz, trabalhar com as tramas quer dizer pensar nesses dois lugares. Em um primeiro momento, pensar nas possibilidades dos tecidos e de outros materiais dos mais diversos, nas formas e produtos que podem ser criados a partir deles. Em outro, nas histórias por trás dessas criações e das pessoas que as realizam.

Em seus mais de 20 anos de trabalho com as tramas, Ana sempre buscou explorar o que era possível com as técnicas têxteis – o crochê e o tricô são as suas especialidades – e com os materiais, inclusive desafiando o que pode ou não ser um material tecível. Os resultados dessas experimentações apareceram em forma de acessórios, roupas (Ana já trabalhou com estilistas como Alexandre Herchcovitch e Ronaldo Fraga), peças decorativas e de mobília, painéis, peças de arte, instalações, entre outros.

“As tramas podem estar nas roupas, nos objetos, nas instalações, em vários lugares. As tramas são livres”.

Nesta entrevista, Ana fala sobre seu trabalho autoral e sobre as vivências e aprendizados com grupos de bordadeiras e outras artistas manuais em comunidades no interior de Minas Gerais. Nesses projetos, ela reforça a potência de criar algo próprio, algo que vem de dentro e que expresse a realidade em seu entorno, mostrando como as tramas materiais também podem conter as nossas próprias histórias, nossas tramas individuais e coletivas.

  • Gostaria que nos contasse um pouco da sua história e da sua relação com o universo têxtil.

Desde criança, sempre tive interesse em trabalhos manuais com tramas. Meu pai era alfaiate e, na minha cidade, eu via muitas pessoas trabalhando com isso. É algo que sempre gostei, mas que ficou adormecido em mim por um tempo. Não sonhava que as tramas seriam minha profissão.

Me formei em Comunicação e trabalhei com publicidade, mas aquilo não me satisfazia. Dentro de mim, não estava feliz. Então, uma prima me convidou para elaborar acessórios com ela. Lembro que ela me disse: “Vamos tentar, não temos compromisso de dar certo”. E, com isso na cabeça, fomos até a Galeria do Ouvidor [em Belo Horizonte] e compramos os primeiros materiais. Desde o início, procurei não buscar referência nenhuma em revistas especializadas, cursos e coisas do tipo. Para mim, sempre foi importante fazer intuitivamente.

Comecei com brincos, colares e outros acessórios, com tramas bem miúdas. Depois, redescobri a agulha de crochê, algo que também vinha da infância. Apliquei essa técnica nas peças e me apaixonei. Estava decidida: era isso que queria fazer para a vida.

  • E quando você começou a experimentar com outras tramas?

Paralelamente às demandas de trabalho que foram surgindo, eu sempre desenvolvi minha criação autoral, então eu pude experimentar nesses dois lugares. Desde o início, eu tenho um interesse por usar os materiais de forma não convencional. Por isso, busco construir as tramas a partir dos materiais que me chamam a atenção. Como criar algo novo partindo de técnicas tradicionais, como o crochê e o tricô?

Nas minhas pesquisas, já experimentei com arame, câmara de pneu, palha, tecido, cobre, fio elétrico, fio rústico de seda, acetato. Até fio de ouro eu já teci. Tem períodos que me encanto por determinado material e sigo experimentando nele. Tento perceber o que o material me convida a fazer.

COLEÇÃO MOLAS (2018). TRICOT MANUAL EM ARAME DE COBRE. FOTO: CACÁ BRATKE
  • De detalhes em roupas a instalações de arte, os resultados do seu trabalho aparecem em diferentes formatos, diferentes produtos. Como é o processo criativo para chegar até esse ponto de entrega? E como funciona o trânsito entre os muitos caminhos possíveis para chegar lá?

Para mim, o prazer está no processo de realizar a transformação do material. Me relaciono muito com isso. Queimo, asso, emendo, corto… É tentar transformar em algo tecível aquilo que, a princípio, não é feito para ser tecido. Trazer para minha construção, com as técnicas do tricô e do crochê, aquilo que o material permitiu que eu fizesse.

A minha relação é com a trama e com o material. A forma que isso vai ganhar, se vai virar fruteira, luminária, um brinco pequeno ou um painel de 42m², isso acontece organicamente. Não tenho uma linguagem pré-definida, minha linguagem é me expressar na trama e na pesquisa do material.

Não tenho um processo criativo ou um método de trabalho prontos. Se é um trabalho demandado, a pessoa me conta a história, me passa um briefing, e daí eu faço a pesquisa. Em meu trabalho autoral, geralmente faço o inverso: parto de um material e me pergunto o que eu posso fazer com ele, a que ele me inspira, em que ele está querendo se transformar. Por isso digo de manter essa relação com o material. É o processo de entender o que ele quer e, a partir disso, experimentar.

  • Em todo o Brasil e América Latina, existem várias técnicas têxteis, com diferentes finalidades. Ou seja, existe toda uma tradição e uma história de anos em torno dessas práticas. Como, na sua visão, essa tradição está presente hoje?

A tradição é sempre muito presente. No interior do Brasil, por exemplo, quanto menor a cidade, mais pessoas você encontra com expertise para criar peças feitas a mão. Algumas vivem disso, outras não. Muitas criam só para uso cotidiano. E, geralmente, é um saber que se aprende de avó para neta, de mãe para filha. O bonito é você entender o valor disso.

Hoje, mais do que nunca, existe uma oferta grande de produtos que pode desvalorizar esses trabalhos manuais. Por isso, acho importante o artista pensar: “O que eu posso fazer que ainda não foi feito? Onde está o meu prazer, o meu desafio?” Quando você se coloca para fazer uma trama, você está em uma construção da sua criatividade, da sua intuição, da sua natureza. Quando você deixa fluir um processo criativo, você está se curando, crescendo, evoluindo, se colocando no mundo. Quando você simplesmente copia algo, você se desconecta da sua natureza. Na cópia, você não está presente. O trabalho manual, em geral, é um viés de expressão, um caminho para você estar no mundo. Quando feito assim, um trabalho nunca é igual ao outro.

ESCULTURA LIMO. HOMENAGEM A BURLE MARX (PROJETO MESTRES DO BRASIL). FOTOS: Ana Colla
  • Por falar em pequenas cidades, você também atua como consultora em projetos sociais relacionados a práticas têxteis no interior de Minas Gerais. Pode nos falar desse trabalho? Qual a sua relação com essas pessoas que, de uma outra maneira, também vivem de tecer coisas?

Eu tenho uma identificação grande com essas pessoas que carregam um saber ancestral, trazido de sua própria cultura, que também não frequentaram cursos, que não aprenderam fora de suas referências de vida. Fico muito feliz quando o meu olhar encontra o delas.

O que busco destacar nesses projetos é a força de produzir um trabalho autoral. Estimular que as artesãs reconheçam e valorizem o que já sabem fazer, o conhecimento que já existe dentro delas e no entorno, na vila, na natureza, na comunidade, e como podemos representar isso no trabalho. Eu estimulo que elas não façam, por exemplo, um bordado copiado da revista, mas um bordado que seja delas, que mostre onde elas estão.

Esse mergulho na identidade, em algo que está dentro de nós, é um processo que pode ser muito curativo. Quando elas veem o resultado desse trabalho, se sentem mais fortes, mais representadas, mais felizes. E, além disso, ainda gera renda. Eu sou apaixonada por essas experiências.

  • Com quais coletivos você trabalha atualmente?

Estou desenvolvendo uma coleção com a Arca [Associação dos Artesãos de Santa Cruz da Chapada do Norte, na região do Jequitinhonha] que esperamos lançar neste ano de 2022. Esse grupo é especialista na produção de cadeiras e bancos feitos com troncos recolhidos de árvores que caem naturalmente. Trabalham com um couro puro, sem nenhum tratamento de produto químico, apenas curtido no sol e esticado para fazer tampos e outras superfícies. São peças muito bonitas, mas algumas são bem pesadas, o que dificulta a comercialização, encarece o envio, às vezes não cabe no carro do visitante… Pensando nisso, estamos adaptando essas técnicas para criar algo que possa ir para a parede, que possa ser pendurado, como quadros de palha de milho e couro, por exemplo.

Outra coleção que estamos preparando é a das Mulheres da Ponte, na comunidade de Curralinho, em Diamantina. Neste trabalho, queremos resgatar o conhecimento que as bordadeiras possuem da sua própria região, especialmente as técnicas de tingimento a partir de plantas e da terra. Estamos empregando essa tinta da terra, que costuma ser usada na pintura das casas, para pintar os tecidos que receberão os bordados inspirados nos saberes ancestrais do grupo sobre a flora local.

Ana Vaz com as Bordadeiras do Curtume, no Vale do Jequitinhonha. Foto: Ruy Teixeira para Casa Vogue

E tem também o trabalho com as Bordadeiras do Curtume, que já está indo para a segunda coleção, com muito sucesso. Na primeira, escolhemos como tema cenas que fazem parte da vida dessas mulheres, pensando justamente na proposta de lançar luz em uma faceta autoral do grupo, de criar um trabalho que as represente. Quando estávamos levantando ideias sobre quais histórias contar, uma bordadeira pediu para o filho desenhar cenas do cotidiano da comunidade. E o Diogo tem um desenho lindo, que não é copiado de lugar nenhum. Então, decidimos bordar os panos com os desenhos do Diogo retratando cenas da história dessas pessoas e desse lugar. O trabalho durou um ano e resultou nos Estandartes do Curtume.

  • A questão identitária, que você já havia comentado no seu trabalho autoral, parece ser o ponto central nas coleções desenvolvidas com esses grupos também. Como as artesãs recebem essas propostas e o que lhe contam do processo?

Vou contar mais uma história que aconteceu durante a primeira coleção das Bordadeiras do Curtume. Pouco tempo depois de terminarmos a confecção de todos os bordados, sofremos um assalto à mão armada. Levaram o carro e a coleção inteira, que estava dentro dele. Um ano de esforço, trabalhando sem receber, todo o investimento e as doações de materiais… Profundamente abaladas com o que tinha acontecido, reunimos as bordadeiras e explicamos a situação. Me lembro direitinho do que a Dona Nilza, uma das líderes do grupo, falou: “Graças a Deus, vocês estão bem. Isso é o mais importante. Vamos recomeçar do zero e bordar mais lindo do que o que a gente tinha bordado”.

Aquilo foi muito emocionante… Essas pessoas são muito fortes, são uma inspiração. E foi o que fizemos: arregaçamos as mangas e bordamos tudo de novo. Decidimos que esse esforço seria a nossa bandeira, e por isso criamos os estandartes, como os que vemos em festas, como uma forma de erguermos nossa bandeira e seguir adiante.

Então, voltando à pergunta, há uma questão de identidade coletiva e de identidade individual muito forte. A minha parte é sugerir, orientar, garantir uma coerência estética entre formas, cores, cartela de linhas etc. Mas a interpretação é delas. E a questão da identidade individual surge aí, porque, pelos detalhes, você consegue saber quem bordou aquela peça. Nenhuma bordadeira faz ponto igual, e nenhum ponto fica igual ao outro. O objetivo é justamente trabalhar essa liberdade, incentivá-las a se expressarem.

Todo projeto que desenvolvemos nasce sempre de uma demanda daquele grupo específico, e conta com o apoio de diversas organizações parceiras, com destaque para a Tingui. Os resultados têm sido muito positivos. No Curtume, com essa primeira coleção, as bordadeiras conseguiram aumentar a renda familiar, água encanada, cuidar melhor dos filhos, ter mais qualidade de vida. Elas viajam juntas, se organizam, são um grupo muito unido. Hoje, mais bordadeiras jovens querem se tornar aprendizes, é algo que movimenta a comunidade como um todo.

  • Além de manter e atualizar uma tradição, os resultados desses trabalhos também podem ajudar a combater um preconceito e uma desvalorização desse tipo de atividade têxtil?

Creio que sim. O ofício manual, de modo geral, é muito desvalorizado. Na minha casa mesmo, eu não fui incentivada a investir nisso quando criança. Meu pai trabalhou como alfaiate, mas eu não aprendi com ele. É muito comum que as famílias neguem o caminho da artesania, quase sempre com a melhor das intenções, no desejo de que os filhos não passem por algum perrengue ou levem uma vida difícil. E os jovens também negam essa possibilidade, muitas vezes por ver as dificuldades que o pai ou a mãe enfrentaram trabalhando com isso.

Mas de onde vem essa desvalorização? Talvez pelo fato de o trabalho manual ser associado à simplicidade, à falta de tecnologia e sofisticação. Ou ao fato de não ser ensinado na escola, não fazer parte da educação “formal” na maioria dos casos.

INSTALAÇÃO DE QUE NOS SERVEM AS HISTÓRIAS (2014). FOTOS: JOÃO VIEGAS

Ainda tem a questão de que, historicamente, alguns trabalhos manuais eram muito relegados às mulheres por serem “menores”. Aquela ideia de que o homem trabalha de fato, enquanto a mulher cuida das coisas “menos importantes”, como costurar. São reverberações que ainda encontramos na cultura, tanto que a maioria dos projetos que mencionamos é formada por grupos apenas de mulheres.

Eu acredito que um caminho para mudar essa compreensão está em olhar para as histórias que estão por trás daquele trabalho ou produto. Qualquer peça feita à mão carrega a história de quem a fabricou.

Por isso que diferentes artistas têxteis podem usar o mesmo material, a mesma agulha e seguir a mesma ideia que, ainda assim, os resultados saem diferentes. É como uma impressão digital, nenhuma é igual. Você não costura hoje como costurou ontem. E isso tem valor demais! Por isso, eu acho que, sempre que possível, vale a pena contar a história desses trabalhos, pois é algo que ajuda a despertar as pessoas para esse valor.

Igor Lage

 

Igor Lage é jornalista, pesquisador e professor. Doutor e mestre em Comunicação pela UFMG.

Leia também