REVISTA nº 5

Tecer, criar, transformar

Projeto Remexe impulsiona o consumo sustentável no Aglomerado da Serra e estimula outros olhares sobre a beleza e a moda de favela, além de gerar empregos para mulheres e jovens periféricos

Francielle de Souza
04 Jan 2022 9 Min
Tecer, criar, transformar
Modelos vestem máscara da Remexe Favelinha, cooperativa de moda sustentável. Foto: Pedro Vilela

Vestindo uma camiseta feita inteiramente de tecido telado e arrematado com gola branca, o artista Kdu dos Anjos explica quais são e o que fazem os vários núcleos que compõem o projeto Lá da Favelinha, centro cultural atuante no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, desde 2015. Dentre as ações mencionadas pelo fundador e gestor da organização, está a cooperativa de moda sustentável Remexe, responsável pela peça escolhida pelo artista para a conversa que tivemos em uma manhã de terça-feira pós-feriado. “A blusa que estou usando hoje foi feita a partir de tecidos que vieram para a gente, por exemplo. Se chega muita ‘telinha’ como essa, fazemos uma coleção com esse tema. Se acabou a ‘telinha’, a gente espera para ver o que vai chegar. Vamos criando de acordo com o que está disponível, com o que recebemos”, comenta Kdu. O material utilizado na confecção, composto geralmente por roupas usadas, é doado (tanto pessoas físicas quanto grandes marcas, como C&A e Patogê) e transformado em peças originais, que dão forma a coleções com estética própria e desafiam padrões de consumo exagerados na indústria da moda.

Editorial da cooperativa Remexe Favelinha. Coleção Garota Hacker. Foto: Divulgação

O princípio de reaproveitar e ressignificar vestes já existentes de forma criativa, processo também conhecido como upcycling, constitui a filosofia do Remexe desde a sua criação, em 2017. A metodologia norteadora veio de uma oficina oferecida aos moradores do Aglomerado da Serra pelo Sebrae-MG. Nela, os participantes foram instigados a customizar roupas a partir de resíduos têxteis. “A gente não criou o Remexe do zero. Nosso arquiteto, Fernando Maculan, realizava um desafio fashion com o Sebrae Minas que juntava estilistas, produtores de moda, costureiras e designers durante três dias para criar qualquer coisa com esse mote de roupa feita com o que já existia”. A ação deu origem ao Favelinha Fashion Week, uma subversão dos famosos desfiles de moda que busca apresentar os trabalhos têxteis produzidos no Lá da Favelinha sem se preocupar com os rígidos padrões estéticos do universo fashion, convidando pessoas de diferentes idades, corpos e aparências para subirem à passarela.

Após o término da oficina e da primeira edição do Favelinha Fashion Week, Kdu decidiu dar sequência ao projeto e comprar três máquinas de costura, mesmo sem dinheiro para pagar. “Depois do desafio, as pessoas foram saindo, ninguém queria continuar, acharam que era só aquilo mesmo. Mas a Carla, que hoje é nossa costureira-chefe, só falava nisso, nem dormia direito, estava muito ansiosa. Vi que era uma oportunidade muito boa, senti uma paz para investir nisso”.

Miliane Rodrigues no ateliê da Remexe Favelinha. Foto: Pedro Vilela

Além da adesão de participantes da oficina, as perspectivas de quitar a dívida logo tranquilizaram o gestor do Lá da Favelinha: “Fiz algumas contas e percebi que se a gente vendesse seis blusas, eu conseguiria pagar as máquinas de costura. Eu tinha uns dez mil seguidores no Instagram na época. Não era possível que a gente não iria vender seis peças por mês”, conta. Deu certo. Não apenas conquistaram a quantia necessária como realizaram uma série de lançamentos desde então. Com apenas três anos de existência, a cooperativa acumula mais de uma dúzia de coleções, como a Formação de Quadrilha, que traz o tema das festas de São João com um toque de favela; Revogue, uma espécie de chamado a um outro olhar sobre as roupas e sobre a periferia; Aglomerado de Ferro, que critica a mineração e a destruição da natureza; É Curva, inspirada na arquitetura das comunidades; Garota Hacker, coleção toda feita de jeans e em parceria com projetos sobre tecnologia e impacto social; além de Joias de Família, cujo tema é a relação de afeto entre moradores. A consistência da iniciativa fez com que a marca expandisse fronteiras: o Remexe já esteve na Inglaterra e na França, levando a outros continentes a moda pensada e produzida na maior favela de Minas Gerais.

Alinhavando moda, arte e ação político-social

O conceito das coleções da cooperativa nasce de forma coletiva. Kdu conta que, em geral, adota o brainstorming como dinâmica de construção e integração no Lá da Favelinha. A chuva de ideias ou “o toró de palpites”, como ele nomeia a técnica, permite uma participação menos hierárquica e mais inclusiva. As costureiras da marca, Miliane Rodrigues e Carla de Lá, por exemplo, não ficam restritas ao trabalho manual. Elas assinam as peças, dão nome às coleções, têm liberdade para criar. A estrutura horizontal do projeto é, para o artista, uma forma de subverter a lógica do capital na qual o estilista é quase sempre uma pessoa branca, com formação universitária, enquanto a costureira é, em geral, uma mulher negra, mãe e periférica. Milli passou de um posto a outro quando deixou o antigo emprego para se dedicar ao trabalho remunerado na cooperativa: “Eu comecei a bordar, fui doméstica, cuidadora de idosos e depois fui trabalhar em um ateliê de alta costura. Minha filha já trabalhava com o Kdu e a Carla. Nesse meio tempo, meu filho faleceu. A partir daí, eu comecei a me envolver mais com o Lá da Favelinha e me tornei costureira do projeto. Hoje, o Remexe é como um casamento para mim”, conta.

Produção de máscaras no ateliê da Remexe, na sede do projeto Lá da Favelinha. Foto: Pedro Vilela

Por outro lado, foi justamente a soma da dedicação e do vínculo empregatício existente entre as costureiras e a marca o que se tornou motivo de preocupação durante o início da pandemia de Covid-19. Interromper a produção significava também cessar a fonte de renda dessas mulheres. “Ficamos um tempinho parados e achamos que não tinha mais o que fazer”, relembra Milli. Contudo, o cenário caótico tornou-se solução. Antes mesmo da recomendação de uso de máscaras faciais para prevenção do coronavírus tornar-se obrigatória, a cooperativa começou a produzi-las e distribuí-las pelas comunidades. Logo a ação foi parar nas mídias sociais e, por meio de um fotógrafo que se interessou pelo trabalho, alcançou veículos internacionais como The New York Times, El País e The Guardian, além de aparecer em uma live organizada pela cantora estadunidense Lady Gaga.

Máscaras da Remexe na página do New York Times. Foto: Reprodução

Toda a visibilidade gerada pela fotografia revolucionou a comunidade. Logo nos primeiros meses da pandemia, o rapper belo-horizontino Djonga realizou uma live em prol do Lá da Favelinha. Cem mil reais foram arrecadados na ocasião. Com o dinheiro e o apoio de outras lideranças do Aglomerado da Serra, construíram uma cozinha com o intuito de produzir e distribuir marmitas para idosos, população em situação de rua ou aqueles que estivessem com dificuldades financeiras causadas pela pandemia. Vendo a movimentação, o Instituto Unibanco ofereceu mais auxílio para ampliar a Frente Humanitária que ali começou a se formar. Uma quantia de mais de 5 milhões de reais foi injetada no movimento, de modo a custear duas mil marmitas por dia e seis mil cestas básicas por mês, além da confecção de 60 mil máscaras durante um período de três meses. Isso tanto ajudou a combater a fome quanto gerou renda para as comunidades, uma vez que cerca de 300 pessoas foram empregadas, direta ou indiretamente, para atender as demandas da ação.

“Nós trabalhamos demais nesse período. Eu brincava com a Carla que se me perguntassem ‘o que você sabe fazer?’, eu responderia: ‘máscara, só máscara’. Eu só via máscaras na minha frente”, brinca Miliane Rodrigues.

Costurar o invisível

Embora o impacto material do Remexe no Aglomerado seja, hoje, muito importante para a comunidade, o principal legado da cooperativa é subjetivo e está refletido na autoestima das pessoas que participam do projeto. Bruno Ulhôa, modelo da coleção Joias de Família, ilustra: “A gente nem imagina que pode ser modelo de alguma coisa. A gente pensa: ‘Eu, modelo? Nunca’. Então, é uma experiência nova, inusitada. O Remexe mostra que você pode se sentir bonito. Do seu jeito, com a sua forma de ser. Isto é muito gratificante: poder abrir essa nova porta, esse novo jeito de me ver”. O desvelar de possibilidades por meio da moda e da arte têxtil é, por essência, o ponto forte da marca: “A gente vê muita força nessa representatividade porque começamos a colocar gente de verdade para desfilar. Pessoas que não se enxergavam bonitas puderam despertar suas belezas, belezas não-eurocêntricas”, afirma Kdu dos Anjos.

Editorial da Remexe Favelinha. Coleção Revogue. Foto: Divulgação

O modelo João Marcos Gomes também é exemplo dessa transformação.

“Eu tinha uma autoestima muito baixa e, quando comecei a modelar para o Remexe, passei a acreditar mais no meu potencial. Isso me ajudou muito a olhar para dentro de mim, saber quem eu sou, de onde vim, quais são minhas raízes”.

Para além disso, Bruno destaca que não se trata de desfilar simplesmente para uma grife de moda, mas para uma iniciativa que transforma a vida das famílias que vivem nas favelas, ao mesmo tempo em que mantém o compromisso ambiental. “A gente tem que focar nisso agora. O que pudermos fazer para reverter ou mudar esses processos de agressão ao meio ambiente, aos animais, temos que fazer”. Não é por acaso, aliás, que o lema da marca é “Remexe é ética, mais do que etiqueta”, uma frase que, de partida, deixa clara a proposta sustentável e revolucionária do projeto.

Entretanto, Kdu tem consciência de que, para o sucesso dessa empreitada, é preciso estar em diálogo com o global, mas sempre com os pés no chão, com um agir localizado:

“A gente sabe que não tá salvando o mundo. A moda não vai parar de poluir. O que fazemos é um grãozinho de areia na beira do oceano da poluição, mas estamos fazendo nossa parte”.

Kdu dos Anjos, fundador e gestor da Remexe e do projeto Lá da Favelinha. Foto: Pablo Bernardo

É importante pontuar, além disso, que a experiência do Remexe mostra como o anseio por um mundo com menos desperdício está estreitamente conectado à diminuição das desigualdades. Segundo Kdu, “as pessoas que compram as roupas, em geral, estão ligadas a causas sociais, sejam ambientais, de raça, de gênero ou LGBTQIA+. Muitas vezes, são essas pessoas que se interessam pelo que a gente faz. Tem esse tipo de conexão”. Ao final, como o gestor do Lá da Favelinha ressalta, a rede de ideias e corpos envolvidos no Remexe demonstra que o importante é ser subversivo, seja na passarela ou fora dela.

Francielle de Souza

 

é jornalista, mestra em Comunicação e pesquisadora. Foi editora de textos pelo Jornal A Sirene entre 2018 e 2019. Atualmente, é doutoranda em Comunicação pela UFMG.

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