REVISTA nº 5

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As tramas de Zuzu Angel

Os projetos de costura – e de vida – de Zuzu Angel partiram do familiar e doméstico para ultrapassar fronteiras geográficas e culturais. Parte de sua história foi íntima e emocionalmente bordada em roupas que expunham sua mais profunda dor como mãe

Virginia Siqueira Starling
04 Jan 2022 9 Min
As tramas de Zuzu Angel
Zuzu, Liza Minnelli e Hildegard Angel na loja da Zuzu Angel, no Rio de Janeiro. Foto: Acervo Instituto Zuzu Angel

Certa vez, em 1967, Zuzu Angel comparou costura e arquitetura. Segundo ela, ambas compartilhavam uma necessidade crucial: planejamento. Da mesma maneira que não se ergue um prédio sem projeto, não se prepara uma coleção de moda – sequer uma peça de roupa – sem tecer planos. Mas a afirmação de Zuzu explora mais do que a importância de tirar medidas, selecionar tecidos e aplicar um bom senso de organização dentro do ateliê. Equiparar costura e arquitetura implica em levar a sério um ofício historicamente desempenhado por uma maioria feminina e sistematicamente menosprezado como atividade doméstica, supostamente distante dos ditos grandes debates da humanidade.

Tanto uma quanto a outra são, em essência, atividades de construção. A arquitetura consiste em conceber e projetar espaços para diversas vivências. Não muito longe desse conceito está a costura – aqui tratada como a criação de roupas. Arquitetar roupas significa dedicar cuidado, responsabilidade e método à nada corriqueira tarefa de vestir pessoas, traduzindo para o tecido – essa tela onde a imaginação modela silhuetas – diferentes expectativas e desejos relacionados a estilo e aparência. As semelhanças não acabam aí. A costura, como a arquitetura, carrega uma bagagem extensa de saberes e técnicas aperfeiçoadas ao longo dos séculos. À medida que as demandas mudam, ocorre um processo de adaptação para solucionar novos problemas, inovar com outros materiais e aperfeiçoar os resultados. Quem costura está na esteira de incontáveis praticantes de uma arte perfeitamente mundana e incrivelmente sofisticada, que contribui consistentemente para nos apresentarmos perante o mundo.

Retrato de Zuzu Angel por Ronaldo Câmara. Foto: Acervo Instituto Zuzu Angel

Zuzu Angel, que apenas um ano antes fizera seu primeiro desfile em um evento público de moda, sabia do que estava falando. Seu nome começava a circular pelos jornais, ficava mais conhecido do grande público carioca, e ela já deixava claro que tinha planos. Muitos planos.

Zuzu acreditava na costura como ofício, como caminho para fazer o que se gosta, do jeito que se gosta. Não copiaria ninguém e tampouco se sujeitaria ao que era esperado. Ainda em seu primeiro ateliê, na década de 1960, quando recebia as levas iniciais de clientes, divertia-se com as reações das senhoras cariocas diante das roupas em exposição. Elas entravam, viam as saias e vestidos prontos cujas propostas pouco se assemelhavam às de outros costureiros, e soltavam: “Bonitinho, Zuzu, mas esquisito”. Zuzu preferia o “esquisito”, visivelmente seu, ao que já existia aos montes.

Seu planejamento era ambicioso e impressionante. Para Zuzu, a costura e a confecção foram simultaneamente negócio, manifestação criativa, arma política e declaração cultural. Adorava definir a moda, um desdobramento do ofício de costurar, como “força viva de expressão e comunicação”.

Embora apenas dez anos tenham transcorrido desde o primeiro desfile registrado fora do ateliê até o assassinato da costureira pela ditadura militar, em 1976, a etiqueta Zuzu Angel teve muito a dizer. Zuzu disparava opiniões bem fundamentadas sobre tudo, especialmente quando o assunto era moda e costumes, e alinhavou tudo isso em suas roupas. Não dava ponto sem nó: em 1972, ao lançar sua sexta coleção internacional, montou a campanha em torno da ideia de que iria vestir a mulher “sem idade, sem medo, sem soutien”. Em consonância com as rebeldias de seu tempo, dilatava os significados de moda feminina para assegurar à mulher que explorava seu estilo próprio o fim das dependências a uma marca ou silhueta. Para se descobrir como agente da moda, ela não precisava nem mesmo de lingerie. Zuzu foi, também, a primeira expoente da moda brasileira a efetivamente comercializar suas coleções, com sucesso considerável, fora do país. Sob aplausos de clientes, compradores e especialistas, ela desfilou e vendeu sua visão de Brasil mundo afora.

Entre todos os pontos costurados por Zuzu, os mais reconhecidos datam de setembro de 1971. Foi então que montou seu inesquecível desfile-protesto, no qual bordados naïf de tanques, quepes, fuzis e anjos enlutados coloriram roupas brancas em uma denúncia sem precedentes das violências da ditadura militar brasileira, responsável pelo assassinato de seu filho Stuart Angel, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Contudo, essa não era a primeira manifestação de cunho político da costureira. Sua ação política emergia a cada vez que apontava publicamente as diferenças de visibilidade e oportunidade para costureiros homens e mulheres no mercado brasileiro, ou sempre que contrapunha as tendências impostas da indústria com sua defesa veemente da liberdade na moda. Podia não perceber, mas politizava sua moda desde o princípio. A forma como lidou com a tragédia de perder Stuart para a tortura confirmava a vocação de uma mulher cujo ofício era, definitivamente, costurar para comunicar.

ZUZU ANGEL AJUSTANDO VESTIDO DO DESFILE-PROTESTO POLÍTICO, EM 1971, EM NOVA YORK. FOTO: ACERVO INSTITUTO ZUZU ANGEL

Moda de raiz

A costura está nas raízes de Zuzu Angel desde, pelo menos, sua bisavó paterna, Júlia Honorata Benício. Com as irmãs, Júlia manejava linha e agulha para garantir o sustento do lar em Curvelo, Minas Gerais. Anos depois, uma das filhas de Júlia, Leopoldina, avó paterna de Zuzu, recorreu à máquina de costura, como inúmeras brasileiras espalhadas pelas décadas, para prover a família. Quando se viu viúva, transformou um cômodo da casa em que vivia com os filhos em sala de costura, onde fazia roupas sob encomenda para homens e mulheres. Entre os filhos de Leopoldina estava Eudóxia, mais conhecida como Tidoce, outra herdeira do ofício da matriarca. Tidoce, irmã do pai de Zuzu, era costureira de mão cheia e sua fama se espalhou para além da região de Curvelo – recebia encomendas também do Serro e de Diamantina, antes de se mudar para Belo Horizonte e dar continuidade ao seu trabalho.

As mãos de Zuzu eram de menina quando começaram a se habituar à potência de uma agulha para tecer jeitos de se mostrar ao mundo. Primeiro, costuravam roupinhas para suas bonecas; logo depois, mais ágeis, alteravam uniformes de escola e criavam vestidos para a própria Zuzu e suas amigas. Eram mãos que queriam corresponder à inventividade de uma mente apaixonada por cores – sandalinhas brancas ganhavam lãs coloridas, flores e borboletas, e chapéus se enchiam de fitas e enfeites. Tudo aquilo atestava as possibilidades de que uma prática vista como tipicamente feminina, doméstica e comum pudesse ser canal de expressão pessoal. A Zuzu adulta faria da costura um trabalho e, com mais de 40 anos, veria seu nome se tornar uma marca de sucesso, uma referência da moda brasileira que entraria para a história do país.

Se, na época de Zuzu, costurar era considerado “coisa de mulher”, um ofício passado de geração em geração, então ela se destaca como mais uma das mulheres a reivindicar um saber atrelado ao gênero como caminho de ação, reação e transformação de suas realidades.

Para ela, a moda foi um meio de se dedicar ao desejo de criar, de extrair de si ideias e projetos. Zuzu foi uma mestra em converter passarelas em palcos onde apresentava suas concepções de mundo, que, aliás, mesclavam talento para a subversão, a inquietação de uma verdadeira criadora e o desejo de oferecer ao país (quiçá ao planeta inteiro) algo novo. Ao mesmo tempo em que a marca Zuzu Angel urdia composições da estética e cultura brasileiras, entretecidas com interpretações modernas do feminino, ela também se enveredava pelo caminho oposto, descosturando preconceitos e normas.

O convencional definitivamente não estava entre as tendências que favorecia. Não fugia de confrontos, desde os aparentemente pequenos – Zuzu adorava contrariar os comprimentos de saia instituídos pelos bambambãs da moda, lançando coleções com minis, máxis e mídis, sem discriminação – até os grandes, como quando alfinetava a concorrência ao declarar que ela própria era a moda brasileira. De quebra, reinventou o desfile como artifício de protesto contra o governo militar.

Ninguém jamais fizera coisa parecida. O desfile de setembro de 1971 é tão incontornável para a história da moda – brasileira e mundial – porque declarou, em alto e bom tom, que a moda pode, sim, ser abertamente política. A censura imposta pelo governo, no entanto, impediu que a imprensa brasileira tratasse a coleção de Zuzu como mais do que uma revoada de passarinhos ou uma explosão de brasilidade. Uma matéria em O Jornal, por exemplo, descreveu a apresentação como a “alegre moda que expressa … a beleza natural do Brasil”. Não houve um pio sequer sobre a acusação explícita das torturas perpetradas pela ditadura, das quais Stuart era mais uma vítima. Os militares estavam de olho. E assim permaneceram por cinco anos, mantendo Zuzu sob estreita vigilância. Sabiam quando ela viajava aos Estados Unidos a trabalho, ou para se encontrar com políticos americanos e exigir que pressionassem o Brasil a dar um fim nos abusos dos direitos humanos. Colocavam agentes em frente à butique de Zuzu no Leblon; grampeavam o telefone de sua casa; faziam ameaças nada veladas à sua segurança.

Até que, em abril de 1976, essas ameaças foram cumpridas. A repressão silenciou a costureira e mãe que confrontava a ditadura dentro e fora do país em uma madrugada de quarta-feira, na saída do então túnel Dois Irmãos – posteriormente rebatizado Zuzu Angel, em sua homenagem – que conecta os bairros Gávea e São Conrado, no Rio de Janeiro. O carro de Zuzu, um Karmann-Ghia azul, foi jogado para fora da pista por agentes do governo em um acidente forjado, que por anos ficou como mais um crime não confessado. Em 2019, porém, uma das filhas de Zuzu, Hildegard Angel, conseguiu que retificassem a certidão de óbito. Sua morte, mais de quatro décadas depois, foi oficialmente declarada como “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.

Zuzu Angel e filhos: Hildegard, Ana Cristina e Stuart Angel. Foto: Acervo Instituto Zuzu Angel

Os projetos de costura – e de vida – de Zuzu Angel partiram do familiar e doméstico para ultrapassar fronteiras geográficas e culturais. Parte de sua história foi íntima e emocionalmente bordada em roupas que expunham sua mais profunda dor como mãe. O anjo que voou pela primeira vez no desfile-protesto comove gerações de brasileiros e perpetua seu legado para além de um único ponto no tempo. Mas esse legado contém tantas tramas e texturas quanto as coleções de moda e os planos como mulher de negócios. Seus bordados, ideias e imaginação – costurada em realidade nos tecidos – continuam a transmitir o recado que Zuzu queria dar: sua moda nascia, em suas próprias palavras, “dentro do peito”, vinda de uma mulher assumidamente brasileira e sem receios de romper com o que quer que fosse para se lançar como autêntica pioneira.

Virginia Siqueira Starling

 

é jornalista e tradutora. Escreve textos como freelancer e prepara uma biografia de Zuzu Angel para a editora Todavia.

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