Capa
Estamos no futuro, com Ana Pi
“Porque a gente está no futuro. E no futuro, nós falamos com as nossas próprias bocas. E no futuro, a roda é ainda maior. E no futuro, há espaço para coisas que a gente nem imaginou, que nem esse momento.”
“Você nunca veio aqui, como é que você conhecia?” perguntam os dançarinos de Abobo, bairro periférico de Abidjan, maior cidade da Costa do Marfim, à dançarina brasileira Ana Pi. Dançando gestos familiares a ela e a eles, ela responde: “Porque a gente está no futuro. E no futuro, nós falamos com as nossas próprias bocas. E no futuro, a roda é ainda maior. E no futuro, há espaço para coisas que a gente nem imaginou, que nem esse momento.”
Este momento de dança compartilhada é registrado no filme-documentário NoirBLUE: deslocamentos de uma dança, realizado por Ana Pi em 2018, fruto de sua viagem à África subsaariana para, como artista convidada, dançar. Já familiarizada com os rituais globais da arte contemporânea, transitando entre museus, festivais, residências e performances, o corpo de artista encontra, ali na África, a vizinhança de outras modalidades de corpo – corpos comunitários, corpos ancestrais, corpos vizinhos como se não houvesse um oceano entre eles. Uma multidão de existências e gestos transatlânticos presentes em uma sucessão de momentos dançados.
Em seus trabalhos, o corpo multitudinário coincide, num encaixe livre e solto, com o corpo da artista que dança, abrindo caminho para o urgente redesenho da forma artística, suas pedagogias e seus alcances cosmopolíticos. O que construíram esses gestos no passado? O que pode construir uma dança hoje? O que poderá a arte naquele still de futuro vivido?
Ana Pi dança, em território africano, a dança “que resistiu à invasão.” Ela descreve: “Dança de guerra, dança de fertilidade. Dança de cura. Eu coloco meu tripé. O tempo é de reza. Eu também levo meu véu azul e me coloco no espaço, junto, me integro. Esse véu me revela o que existe de mais escondido na história que me contaram. Eu só acredito vendo com meus próprios olhos. Eu só acredito sentindo com meus próprios poros.”
Ela nos guia, com sua voz em off, nessa experiência de futuro: “Quando o invisível se torna visível, o olho demora a acostumar”. Pois, para tal experiência, a famigerada linha da temporalidade moderna deve ser “implodida”. Passado, presente e futuro como instâncias estanques e lineares que compõem a ideia de progresso devem ser deslocadas, trançadas, rebobinadas.
Nesse filme-documentário, podemos perceber os três elementos que atravessam praticamente todas as criações de Ana Pi, estabelecendo entre si relações sempre renovadas: corpo, imagem e palavra. “Eu coloco meu tripé”. Entretanto, artista do videodançar, ela não se limita ao corpo e à imagem; por meio de textos narrados, ao mesmo tempo espontâneos e densos, afetivos e políticos, poéticos e pedagógicos, ela insere o terceiro elemento de sua trama artística, a palavra.
Palavra que não é menos corpo – pois é palavra que nasce, sobrevive e se reinventa na oralidade dançada, na dança narrada, uma espécie de oralidança, superposição de camadas que se inscreve, como linguagem própria, nas performances das oralituras discutidas por Leda Martins.
Dança que cartografa o entorno, que confronta o suposto mundo comum tal qual delimitado pelo cubo branco (branco ao quadrado) da arte. “Eu gritei: acarajé! E me perguntaram: você fala ioruba?” O corpo que dança reconhece um cheiro familiar na feira da rua africana e preenche sua videodança com seu diário de viagem. Dança que pesquisa, pesquisa que dança: “Dançando eu respondo.” Dança falante que paira em câmera lenta na paisagem interativa, permeada por encontros de si e com outres, mas também por cheiros, cores, sons e saberes.
Dança que rebobina a expedição colonial. A tríade criativa corpo, imagem e palavra nos ensina outras linhas do tempo, vetores de futuro lançados no passado. “Eu desfaço as voltas de força feitas na árvore do esquecimento”, dança Ana Pi trançando seu lenço azul enquanto percorre as nove cidades africanas em sua viagem de retorno, viagem de uma temporalidade que conecta em vez de ultrapassar; de um ritmo que se repete em vez de inovar; de uma palavra que viaja para não se perder.
“É importante saber que o que estou vivendo agora é o futuro que alguém sonhou para mim, há muito tempo atrás”, narra Ana ainda no filme-documentário NoirBLUE. “Sei que agora também estou sonhando com as pessoas que virão depois de mim. Além de azul e preto, as pessoas vão ver todas as cores, todas as formas, sentir todos os cheiros, provar todos os sabores. Acho que isso é liberdade, poder ir para um lado ou para o outro da ponte, e é por isso que eu peço a bênção também a essas pessoas mais novas que virão depois de mim.”
Ana Pi nasceu em Belo Horizonte em 1986, estudou no Palácio das Artes, formou-se em Dança pela Universidade Federal da Bahia e estudou no Centre Chorégraphique National de Montpellier, na França, país que escolheu para viver. É dançarina “extemporânea”, coreógrafa, performer, educadora, artista da imagem e pesquisadora de danças de rua, danças periféricas. Seu foco de pesquisa reside, justamente, fora do âmbito das instituições hegemônicas de ensino e circulação de conhecimento. Um vasto e valioso fora que ela – com muites outres – desloca, dançando, para o centro. Além da discussão temporal que questiona a história, ao juntar-se à paisagem urbana, Ana Pi descreve: “Me coloco no espaço, junto, me integro”, elaborando sua discussão espacial e descolonizando a noção vigente de periferia. “Os soundsystems pioneiros estão nas ruas”, escreve em Ceci n’est pas une performance.
Ceci n’est pas une performance, trabalho feito em 2017 em parceria com Lá da Favelinha, Centro Cultural do Aglomerado da Serra, Belo Horizonte, e com Lugar Comum, grupo de pesquisa da UFBA, demarca novas escalas cartográficas para a “dança de guerra”. A partir de uma pesquisa de danças feitas “nas ruas das periferias das grandes cidades do mundo”, ela relembra fatos históricos oficiais e dança respostas às violências globais: ao apartheid, riots, racismo, desmatamento, homofobia, misoginia e solidão digital correspondem respectivamente danças de recusa: pantsula, krump, hip hop, tecnobrega, voguing, booty shake, dubstep.
“É imprescindível reconhecer o lugar das zonas periféricas como primeiro lugar de invenção dessas formas”, ela escreve. O filme Nós somos o centro, feito ainda em 2017, com as mesmas parcerias, começa com uma imagem aérea de Belo Horizonte e o mapa histórico da fundação da cidade em 1897, a partir do desenho da Avenida do Contorno, seu centro planejado. Sobre esses documentos colocados sob suspeita, é grafada a frase que dá nome ao trabalho: “Nós somos o centro”. Em seguida, aterrissando no Aglomerado da Serra, uma comunidade com 7 vilas e 45 mil habitantes, Ana Pi fala em coro: “Nós estamos além; Nós estamos conectadas; Nós somos uma invenção; Nossa história comum é o link Brasil, Haiti, U.S.A., Jamaica, Colômbia, Martinique, México, Paraguai, Canadá; Nós viemos de fora; Nós inventamos o fora; A história, nós escrevemos juntas, conectadas em tempo real.”
Nós somos o centro, não à toa, termina com uma cena de duas crianças dançando, mirando aqueles “que virão depois de mim.” Podemos notar que, no espaço comunitário Lá da Favelinha, Ana Pi compartilha pesquisa, afeto e arte. O ciclo temporal se manifesta; a roda cresce. Até mesmo, ou sobretudo, nas condições pandêmicas de isolamento social: na virada de 2020 para 2021 ela produziu, com dançarinos do Lá da Favelinha, o filme RACE, convocando corpo, imagem e palavra desde um palco francês. A partir da crise planetária tornada mais-do-que-evidente com a experiência de sufocamento causada pelo vírus, RACE – corrida, raça, força, resistência, corre diário? – é diálogo presencial com o pianista Christophe Chassol e diálogo virtual com os artistas Dudu Sorriso, Jhones Vogue, Vitinho do Passinho, Tiphany Gomes, Negona Dance e Samy Oliveira, do Aglomerado da Serra.
Dançando, ela pergunta: “Os seres que protegem o ar globalmente desde o pulmão da terra nos dizem que é pra dançar. Você escuta? Pra suspender o céu, você escuta? A respiração de tudo, de todos os seres. Você escuta a respiração de todos os seres?”
Ana Pi, em várias fotos e vídeos, aparece rodeada de crianças, “dança de fertilidade.” A dança é entendida como ciência de lutar, como modo de transmitir conhecimento e de proliferar futuros. O corpo pedagogo da dançarina aparece quando ainda na UFBA, em 2009, em sua monografia Videodançar: um verbo possível. No seu projeto fundante de educação pela dança, Ana Pi convoca comunidades, visita a diáspora e brinca com as crianças, entre workshops, oficinas, seminários, a guerra e a festa, a luta e a dança – como nos ensina também Antônio Bispo dos Santos sobre a capoeira ou o Jucá.
A infância que construiu futuros de dançarina é reverenciada no vídeo Vós, precioso como uma relíquia de família. Em Vós, no cenário doméstico de dois quintais periféricos feitos centrais, Ana se põe a dançar conversando com suas avós, Alexina da Conceição Oliveira e Terezinha dos Reis Moura, filmadas como espectadoras em suas cadeiras e seus quintais. Um diálogo de corpos, histórias e afeto se desenvolve com grafias diversas: sonoras, imagéticas, discursivas. Uma vez mais, a paisagem também interage e pulsa. O que pode um quintal? Lugar pleno de ensinamentos, plantas, pagodes e churrascos, gestos de pertencimento, formas de aprendizagem outras. Por isso Ana Pi dança para suas avós, reunindo passado e futuro, dança de afeto ao mesmo tempo doméstica e pública. Estamos, com ela, no futuro.
Reparamos que as fotos de família e os registros de workshops ao redor do mundo são guardadas com igual estatuto em seu portfólio. Como modulagens de aprendizado que se cruzam, a carga de gestos ancestrais é desenhada nos movimentos de criação. “É na encruzilhada de saberes que se praticam os ebós epistêmicos”, nos lembra o historiador Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino.
Em alguns dos trabalhos de Ana Pi, são explícitos os diálogos com sua mãe, Maria Aparecida Moura, professora da Escola de Ciência da Informação e à frente da Universidade dos Direitos Humanos, criada este ano na UFMG. Ou com seu pai, Júlio César de Oliveira, ex-carteiro e sindicalista nos Correios, artista plástico autodidata e militante do Movimento Negro Unificado que se encontra desaparecido desde 4 de março de 2018, em Belo Horizonte.
Ana Pi dança com a narração em off da mãe, Cida Moura, em Coroa, performance realizada na Galeria Vermelho em 2018. Em O banquete, performance de 2019 realizada no Videobrasil, Ana convida Mylia Mary, sua tia paterna, para cozinharem juntas. Convida também, para compor o trio performático culinário, a professora de filosofia Maria Fernanda Novo. A intimidade em torno da cozinha, performatizando os modos de fazer como formas de estar no mundo e entre mundos, como formas de pensar, dançar, amar e nutrir, explicita que há muitos modos de produzir e transmitir conhecimento, tanto quanto há conhecimentos outros.
“Eles têm fatos, nós temos opiniões; eles têm conhecimento, nós temos experiências. Não estamos lidando aqui com coexistência pacífica de palavras, mas com uma violenta hierarquia que define quem pode falar”, escreve Grada Kilomba na palestra-performance de 2015 Decolonizing Knowledge.
Um ano depois, Ana Pi entra no estúdio do amigo Jideh High Elements para cantar parte do texto de Kilomba em Dub Lecture, diálogo musical sintonizando sua dança com outros circuitos, textos e vozes.
Ana Pi foi recentemente premiada com uma bolsa de pesquisa do MoMA no Programa Cisneros América Latina. Inspirada pelo filme Divine Horsemen: The Living Gods of Haiti, da cineasta e também coreógrafa Maya Deren, filmado no Haiti entre 1947 e 1951, Ana Pi propôs o projeto The Divine Cypher (A roda divina), buscando produzir uma palestra-performance a ser apresentada em Nova York sobre “a vida dos gestos” haitianos. Ampliando os passos de sua dança que cartografa a travessia de corpos por espaços e tempos, ela investiga como esses gestos se tornaram “contemporâneos ou mesmo extemporâneos”.