REVISTA nº 4

Jogar e aprender com as águas

O coletivo Às Margens utiliza o lúdico para convidar as pessoas a refletirem sobre suas relações com os espaços em que vivem e as águas que ali circulam

Igor Lage
06 Mai 2021 13 Min
Jogar e aprender com as águas
Jogo ‘Imagina Rio’, criado em oficinas do ProJovem na Vila Maria, em Belo Horizonte. Foto: Estúdio Grampo

Vamos nos imaginar sentados em roda. No meio de nós, um tabuleiro com caminhos divididos em uma série de blocos, que chamaremos de casas, por onde movimentamos nossos peões, cada um de uma cor. Um por vez, jogamos os dados, andamos pelas casas e cumprimos as instruções escritas em pequenos cartões, que podem trazer surpresas agradáveis, que nos fazem avançar, ou frustrantes, que nos impõem desafios e desvantagens.

Parece familiar, certo? Afinal, os jogos de tabuleiro fazem parte da infância e da vida adulta de muitos de nós, em todo o globo e há muito tempo, existindo em infinitas variações desde as civilizações mais antigas até os dias de hoje. Tanto que, em um livro importante para o campo de estudos sobre jogos, Homo Ludens, o pesquisador holandês Jonah Huizinga defende que o jogo é um aspecto tão fundamental para vida humana quanto o raciocínio (como em homo sapiens) e a fabricação de objetos (homo faber). Por isso, podemos pensar suas dimensões no âmbito da cultura, da linguagem, da arte, da guerra e do conhecimento, entre outros.

É justamente essa relação entre o jogar e o conhecer que constitui um dos fluxos que move o trabalho do coletivo Às Margens, de Belo Horizonte. Conversamos com as integrantes Aline Franceschini e Isabela Izidoro, “duas arquitetas e urbanistas que se descobriram educadoras e ilustradoras”, na definição delas mesmas. Com as demais integrantes do coletivo, elas atuam desenvolvendo jogos originais, oficinas, expedições e materiais gráficos que buscam estimular reflexões sobre nossos modos de viver e a relação com os territórios que habitamos ou visitamos. E, nesses trabalhos e reflexões, geralmente há uma protagonista: as águas.

AS ARQUITETAS E URBANISTAS ALINE FRANCESCHINI E ISABELA IZIDORO, DO COLETIVO ÀS MARGENS. ALINE MERGULHA NA CACHOEIRA SANTA BÁRBARA, NA CHAPADA DOS VEADEIROS (GO). ISABELA SE SENTA ÀS MARGENS DE AFLUENTE DO RIO CIPÓ (MG). FOTOS: GÉSSICA HAGE E ARQUIVO PESSOAL

“Para nós, o jogo funciona enquanto possibilidade de discutir questões relacionadas ao dia a dia dos lugares. É o jogo como espaço de troca, capaz de acolher pessoas de faixas etárias diferentes, de traduzir conceitos difíceis e técnicos para um lugar mais lúdico. Construir aprendizado pelo lúdico”, explica Aline.

O “Imagina rio” é um bom exemplo de como o jogo pode propor investigações entre uma comunidade e suas águas. Criado durante oficinas do ProJovem na Vila Maria, região Nordeste de Belo Horizonte, em 2017, é um jogo de tabuleiro nos moldes do descrito na abertura do texto. A pesquisa e processo de criação se desenvolveram a partir de expedições pela região e encontros com moradores do bairro, todas com o mote de conhecer melhor os cursos d’água que passam na região, suas histórias e o modo como afetam a vida dos moradores. No final, os adolescentes participantes ganharam um kit do “Imagina rio” para poderem compartilhar com suas famílias e amigos as descobertas das atividades.

“Já usamos os jogos em muitos contextos, como atividades no ambiente universitário, oficinas com fazedores de pão e reuniões de condomínio com pessoas que foram removidas de lugares próximos a beiras de rio”, conta Isabela. “Em geral, já existe uma relação dos participantes com a água. O que a gente busca é convidá-los a repensar essa relação, refletir sobre outras relações possíveis. É um trabalho de longo prazo, o desenvolvimento de uma consciência sócio-espacial não se dá de um dia para o outro. Mas o jogo ajuda a colocar esse assunto na roda, a nos fazer pensar sobre”. 

Despertar o interesse

Desde muito cedo, aprendemos que a água é um elemento absolutamente essencial para toda a vida no planeta, mas nem sempre nos atentamos para as águas ao nosso redor. Belo Horizonte, como tantas outras cidades, tem negligenciado o cuidado com os rios, lagos, córregos e outras manifestações hídricas que existem nos territórios que a compõem, de modo que, na visão do coletivo, a relação de boa parte da população com essas águas acaba se enfraquecendo, tornando-se algo distante.

“Muitas vezes, o nosso pensamento fica centrado em uma ideia de ‘uso racional das águas’, de como economizar, de cada gota conta. E aí não se discute a questão do uso das águas no agronegócio, na indústria, na mineração etc. A gente acredita que é preciso reavaliar isso e pensar o cuidado das águas de uma forma sistêmica”, defende Isabela. “Isso significa também falar das terras que estão em volta das águas e das pessoas que estão ali. Não existe uma natureza ‘ideal’, desvinculada dos humanos. Se algum lugar tem água cuidada, é porque tem gente cuidando dessa água, pessoas que possuem um modo de vida que conversa com esse cuidado”.

O nascimento do coletivo Às Margens está ligado a essa percepção. Aline e Isabela se conheceram na Escola de Arquitetura da UFMG, e começaram a investigar maneiras de abordar a relação das águas com os territórios e a população em seu trabalho de conclusão de curso. Um dos primeiros passos foi se atentar para a relação que elas próprias mantinham com as águas ao seu redor.

Aline lembra que, a princípio, esse contato parecia mesmo distante: há algum curso d’água que passa perto da minha casa? Existe algum rio passando por debaixo dessas avenidas por onde transito? De onde vem a água que abastece nossas casas? “Começamos a conversar com quem sabia mais, com quem poderia nos ensinar. Buscamos conhecer pessoas que cuidam das águas”, conta. “Nesse processo, fomos entendendo como a questão das águas é sistêmica e relacional. É difícil falar em recuperar os fundos de vale, os rios maiores, por exemplo, sem cuidar das nascentes e entender o trabalho que acontece lá em cima”.

Um momento importante nesse despertar de interesse sobre a relação entre pessoas e águas que circulam pela cidade foi uma travessia guiada pelo Micrópolis em companhia do geógrafo Alessandro Borsagli, autor do livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira”. Durante o trajeto, vários jovens que participavam da atividade pareciam dispersos e desinteressados, até chegarem ao Rio Arrudas. Nesse contato, tudo mudou. Os adolescentes começaram a perguntar por que o rio se encontrava naquele estado, por que estava tão degradado e triste. “Depois desse dia, não consegui mais parar de pensar nisso”, afirma Isabela. “A situação das águas, o caminho delas, as ameaças que sofrem… Isso muitas vezes não faz parte do nosso pensamento no dia a dia. Percebemos que, para se importar, é preciso ter contato”.

E assim, em 2015, Às Margens começou com Aline, Isabela e algumas outras companheiras. De lá para cá, outras pessoas passaram a integrar a equipe e o coletivo tem criado parcerias com organizações, atores da sociedade civil e do poder público. O projeto desenvolveu uma série de atividades buscando não só levar esse interesse pelas águas para o público, mas também ouvir e aprender o que as pessoas inseridas nos territórios visitados têm a dizer sobre suas relações com os percursos de água que estão ao seu redor.

“Cada vez mais, entendemos que nosso trabalho envolve criar um espaço em que os envolvidos aprendem e constroem o conhecimento juntos. Pensamos nossos jogos e as demais atividades não com o intuito de ensinar as coisas, mas de incentivar uma autoaprendizagem, que parte das experiências próprias e do que faz sentido para cada um”, resume Isabela.

O jogo como convite

Ainda que o trabalho pedagógico desenvolvido pelo Às Margens envolva diversas atividades, sempre pensadas de acordo com as demandas de cada ocasião, os jogos vêm se firmando, desde o início, como a principal ferramenta pedagógica do projeto. Entre jogos de tabuleiro, jogos de cartas, jogos da memória e outros (conheça todos no site), a ideia de mobilizar a partir do lúdico atrai Aline e Isabela pelas possibilidades de promover um engajamento mais horizontal e participativo. É por isso que elas enxergam seus jogos como “convites para conversa”.

CRIANÇA BRINCA COM O JOGO CAÇADORAS DAS ÁGUAS, EM BELO HORIZONTE (MG). FOTOS: LUCCA MEZZACAPPA

Na maioria das vezes, essa conversa aparece como elemento central antes mesmo da concepção do jogo em si. O processo de criação tem início com um trabalho de pesquisa realizado em conjunto com as pessoas participantes, no qual o “estar em campo” – o caminhar pela comunidade, o reconhecimento físico do território e o contato corpóreo e/ou visual com as águas – aparece logo como um primeiro convite. A partir de rodas de conversa e outras atividades que estimulem o diálogo e a troca, as questões sobre a relação com as águas que mais tocaram os participantes são mapeadas e debatidas. Algumas vezes, a transposição dessas reflexões para uma materialidade de jogo acontece em grupo, inclusive as ilustrações, definição da mecânica e regras do jogo, escrita das cartas etc. Outras, cabe ao Às Margens terminar a criação do jogo, que depois é distribuído e jogado com as pessoas.

“O jogo é divertido, ele convida as pessoas para o debate. A gente poderia fazer uma palestra, por exemplo, mas talvez as pessoas iriam contribuir menos com suas experiências. No jogo, todo mundo joga. Ele derruba barreiras hierárquicas, de profissão, sociais. Grupos que não costumam se encontrar, em uma mesa de jogo, podem estar juntos. O jogo coloca do idoso ao jovem para conversar, e todo mundo sob as mesmas regras”, explica Isabela.

“Quando estamos jogando, conseguimos deixar para trás alguns preconceitos, coisas que tomamos como certas”, completa Aline. Um aspecto que interessa ao coletivo é essa possibilidade de sair por um instante da realidade e se colocar no lugar do outro. Há jogos em que você assume o papel de um personagem – um pescador que deseja que o rio seja mais limpo, por exemplo – e isso possibilita que as águas de uma comunidade sejam observadas de outras perspectivas, que não as já internalizadas, abrindo caminho para relações mais empáticas.

“No momento em que jogam, as pessoas têm mais acolhimento para construir novos sentidos de mundo. Ao suspender algumas relações já dadas, ele abre espaço para negociações. Sentimos que, muitas vezes, as questões das águas e da relação com o território chegam para os moradores como tentativas de convencimento. O jogo pode propor outras formas de reflexão, criando um ambiente de acolhimento. Ele pode traduzir conceitos que são difíceis e técnicos. Enfim, ele ajuda a colocar os assuntos na roda de uma maneira convidativa”, argumenta Aline.

OFICINA DO JOGO CAÇADORAS DAS ÁGUAS, NO CCBB, EM BELO HORIZONTE (MG). FOTO: LUCCA MEZZACAPPA

Nesse sentido, por colocar restrições ao estar junto, a pandemia tem apresentado novos desafios ao coletivo. Mas como o adaptar e o reinventar também fazem parte do jogar, elas vão experimentando novos formatos com os públicos. 

No ano passado, em uma etapa do programa educativo BDMG Cultural 2020, ofertaram a oficina virtual “Jogos de outros mundos: criação de jogos educativos sobre natureza e vizinhanças possíveis”, para educadoras de diferentes experiências e áreas de atuação. A partir da troca entre as participantes, desenvolveram todas, em conjunto, um jogo de tabuleiro sobre como a noção de progresso pode transformar nossas paisagens em um monte de avenidas para carros, aço e concreto, espaços sem vida pulsante, desatentos à natureza, à comunhão e ao brincar. O resultado ganhou o nome de Motirõ, no qual se joga a história da Bicharada, uma banda formada por animais do cerrado brasileiro que parte em uma viagem até um festival de música contra as queimadas, passando por diferentes vizinhanças, naturezas, biomas.

JOGO DE CARTAS, DESENVOLVIDO PELO COLETIVO EM PARCERIA COM O JA.CA E O PROGRAMA CCBB EDUCATIVO ARTE E EDUCAÇÃO, QUE ABORDA RELAÇÕES DE TROCA. FOTO: ESTÚDIO GRAMPO

Ensinamentos das pessoas, ensinamento das águas

Para Aline e Isabela, experiências como a do Motirõ mostram como a construção coletiva do jogo pode ser um caminho potente para a troca de saberes e para uma mobilização mais sensível e efetiva. “Cada vez mais, buscamos elaborar nossos projetos pensando nas possibilidades de as pessoas trazerem suas vivências, histórias, lembranças. Nosso objetivo é fazer o jogo se relacionar mais com o cotidiano de quem está jogando”, conta Isabela.

Essa percepção é fruto de um processo de aprendizagem contínuo, que ganha novos contornos a cada novo projeto realizado. “Acho que, no início, a gente queria muito transmitir conhecimento. Aí percebemos que, quando nós duas tentamos trazer muita coisa do que aprendemos na pesquisa para dentro do jogo, sobra menos espaço para as histórias dos demais jogadores aparecerem. E o jogo serve justamente para abrir um espaço de conversa, até de dissenso, um espaço de troca mesmo”, reflete Aline.

E essas trocas, certamente, não se dão somente no momento do jogo. Uma percepção comum às duas arquitetas e educadoras é a imensa possibilidade de aprendizagem no contato vivo com os territórios e com os cuidadores das águas, com as pessoas que cuidam das nascentes, córregos, riachos e outros cursos que formam a hidrografia de um determinado local. Porém, muitas vezes esse potencial é abreviado por uma prática de ensino que não leva tanto em consideração os saberes locais.

“Nesses lugares que cuidam de suas águas, há uma janela enorme de aprendizagem nos territórios que as escolas muitas vezes ignoram. Parece que há uma tentativa de homogeneizar as culturas e desconsiderar os saberes dos lugares”, opina Isabela. Ela ressalva que, certamente, não são todas as escolas que demonstram esse desinteresse, mas que é algo que elas puderam perceber em alguns territórios onde atuaram, e também um comentário recorrente entre os cuidadores das águas.

“A escola pode ser um lugar de reprodução de lógicas dominantes, mas também de criação de redes e de socialização. Por isso, é importante pensar a autoaprendizagem e a autoprodução do espaço. Pode ser uma ferramenta pedagógica para a luta pelos espaços, para caminhar rumo à autonomia na gestão dos territórios. E o jogo é uma ferramenta que pode ajudar a construir essa autoaprendizagem”.

Para Aline, a sabedoria dessas pessoas que se relacionam cotidianamente com as águas é fundamental para percebermos que essas águas não estão distantes de nós, e que não devemos pensar em uma separação tão severa entre humanos e natureza. “Conhecer essas pessoas, ver o trabalho delas, chegar perto dessas águas, esse é um primeiro passo para refletir sobre as relações possíveis com os nossos espaços e os seres que os co-habitam. São pessoas que estão ali há um tempão lutando contra um sistema que quer esconder as nascentes. Aprendemos muito com elas. Perto da água, tudo é muito fértil, em todos os aspectos. Ali, as relações se constroem. São espaços de aprendizado, que podem ser também espaços de acolhimentos de saberes, espaços de troca”.

Igor Lage

 

Igor Lage é jornalista, pesquisador e professor. Doutor e mestre em Comunicação pela UFMG.

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