REVISTA nº 10

Kilombo é a cidade, o museu são as pessoas que vivem nela

Propostas experimentais para repensar a museologia ocidental a partir de práticas, costumes e valores das culturas africanas e diaspóricas

Vitú de Souza
31 Jul 2023 14 Min
Kilombo é a cidade, o museu são as pessoas que vivem nela
Festa de Seu Luciano Vagueiro - N'zo KiaKutuima Mujilo - Maio 2023. Acervo NAGÔGRAFIA

Este texto parte de uma pesquisa que busca produzir um glossário que experimenta as justaposições de conceitos praticados na Museologia em (con)dissonância com as visões negras de mundo, esmiuçando as possíveis divergências que essas leituras possam acarretar – contudo, fazendo-as assim mesmo. Tais proposições e associações livres partem da releitura e tradução de conceitos europeus criados para designar e fetichizar as práticas culturais não ocidentais, em específico as africanas. A proposta é que o glossário seja um gesto de “contrafetiche”, capaz de experimentar maneiras de devolver às práticas tradicionais de preservação de memórias os nomes e termos mais próximos de suas realidades e ações. Assim, seria possível evidenciar nas Museologias Sociais, Negras e Kilombolistas as terminologias e conceitos-chaves para serem apropriados por Museus Negros, Casas de Tradição, Terreiros, Barracões e Reinados, atuando em possíveis novas abordagens para antigas ferramentas museológicas. A seguir, apresento alguns fundamentos dessa proposição.

Pontos (para as trocas) de memória

Ọmọlú pè olóre
a àwúre ẹ kú àbọ̀
Que Omolu (filho de Deus) faça seu trabalho
para nos dar a boa sorte (e memória)

Cantiga do Orixá Omolú da Nação Ketu-Nagô,
transcrita pelo Pai Altair T’ògún 
[+]Altair Bento de Oliveira foi um sacerdote de Ogum que traduziu os Cantos do Yorubá, registrando todo o Xirê de Ketu durante duas décadas. Teve sua passagem para o mundo espiritual em 2012. Seu livro mais popular, Cantando para os Orixás, é uma obra infelizmente pouco difundida, com poucos exemplares disponíveis ao público amplo. [-]

Para muitas culturas africanas, tanto no continente quanto em diáspora, é comum observar ambientes de memória [+]Conceito cunhado por Pierre Nora para categorizar espaços de materialidade que transmutam afetos dos seus indivíduos-herdeiros. [-] nos quais, por uma função social ou cultural (e, em específico, religiosa), as memórias de uma comunidade são experienciadas por seus membros de forma progressiva. Nesses ambientes de engajamento, tutoria e formação identitária, os integrantes são formados para que se tornem herdeiros e zeladores de uma cultura viva, preservando tradições milenares. Para muitos desses grupos, a memória é, para além de uma responsabilidade social, uma dádiva concebida pelas divindades que cultuam e um dogma a ser reverenciado por meio dos objetos. 

Dinorá de Xangô consagrando Massuelen Cristina na Igreja da Soledade. Acervo NAGÔGRAFIA

O Terreiro, o Barracão, a Casa de Tradição, o Assentamento, o Kilombo e o Território são espacialidades negras que abrigam as diversas culturas africanas aqui no Brasil, cada qual com missões e valores próprios, de distintas tipologias e usuários. Por essência, ambientes de memória preservam Gbájọ (testemunhos) físicos da passagem do tempo e da interação de uma comunidade. Assim, podemos associá-los ao fundamento da existência de espaços formais de preservação de memória, como museus, arquivos e bibliotecas.

Untèla n’kingu miankulu (mia kanda) kidi yazaga miampa
Princípios antigos, para se compreender os novos

Sentença proverbial registrada pelo pesquisador
Tiganá Santana em sua tese de doutoramento

Possuindo, em suas estruturas, múltiplas dimensões e matrizes culturais, essas espacialidades negras são geralmente ambientes de cultos e memórias agregadas que, apesar das especificidades, permitem comparações e associações. Para isso, é importante distinguir as experiências individuais das vivências comuns nesses ambientes negros, onde ocorrem experiências, idiomas e afrografias [+]Termo proposto por Leda Maria Martins para sinalizar os caracteres e a comunicação interpessoal diaspórica africana, com seus grupos e indivíduos, numa experiência corpo-fala, designando os idiomas verbais e não verbais associados às experiências negras de mundo. [-] singulares.

É claro que um Terreiro é diferente de um Kilombo, todavia, em ambos os espaços, encontramos relações próximas de interpretação e trato ao passado, manifestadas, por exemplo, na reverência ao que foi anteriormente experienciado e que, através do corpo e da performance, pode ser apreciado novamente. Estão, dessa forma, tão próximos um do outro quanto dos espaços formais de memória. A questão é que, nas estruturas desses espaços formais, é possivel perceber enunciados inaugurais que são oriundos das corporações e territórios negros. Isto é, um museu, mesmo sem admitir, se inspira nos métodos de sobrevivência cultural que as diversas tradições negras estabeleceram durante todo o processo diaspórico.

Alguns impedimentos

Mu kanda, babo longa ye longwa
Na comunidade, todos ensinam e são ensinados

Mário Chagas, Rafael Zamorano e Sarah Benchetrit, organizadores do livro A Democratização da Memória: A função social dos museus ibero-americanos, publicado em 2008 pelo Museu Nacional (RJ), propõem a seguinte leitura dessas instituições: “No mundo contemporâneo, os museus da Ibero-América, de algum modo, são convocados para lidar […] com heranças e tradições dos grupos que dominaram os processos de construção simbólica das nações e as constituíram enquanto comunidades imaginadas”. Isso significa que tais instituições nos demandam absorver fontes e reverenciar a história-memória desses grupos dominantes que subjugaram nosso território, de modo que o acesso a essa memória torna-se desproporcional, enquanto o incentivo à continuidade e preservação das memórias das comunidades não hegemônicas segue constantemente inviabilizado.

Cientes dos impedimentos de acesso de pessoas negras, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, entre outras, os museus que tratam a hegemonia como uma facilidade, uma questão estrutural, ainda se mobilizam pouco para incluir esses grupos. Como sintetiza Nila Rodrigues Barbosa, em seu livro Museus e Etnicidade: O negro no pensamento museal: “Sendo os museus um dos elementos construtores e importantes na consolidação da comunidade imaginada nas mentalidades sociais, a eles é atribuído pelo Estado a criação de referenciais sobre o negro escravizado que se findam na escravidão, negando-lhes o estatuto de atores sociais em plena ação na história e na cultura nacional. Ao compasso desta não posição social do negro, os referenciais com base na edificação da identidade europeia para o Brasil, são erigidos de forma sistemática nos processos museais”.

Configura-se, assim, uma nefasta política de desmemorização e banalização conjectural da cultura, que impede sua democratização, valor base da prática museal no Brasil. Por outro lado, os museus negros, lugares de referência na educação e cultura afrodiaspória, são estruturas fragilizadas, que não desfrutam do privilégio da seguridade frente às mudanças sociais causadas por ataques de grupos dominantes. E quando um Território é impedido de educar seus herdeiros, a tradição corre o risco de não perpetuar sua existência. 

Boi da Manta do Reinado da Guarda de Moçambique do Treze de Maio – Carnaval de Belo Horizonte. Acervo NAGÔGRAFIA

Um triste exemplo é a Guarda de Marujos Nossa Senhora do Rosário de Roça Grande, em Sabará (MG). Fundada formalmente em 2002 pelo Capitão Paulo Roberto de Oliveira, a guarda surge de uma descendência da Guarda de Marujo de Nossa Senhora Aparecida de General Carneiro, irmã da Guarda de Marujo de Santo Expedito e São Sebastião, descendentes da Guarda do Rosário de Ravena. As procissões de ambas as guardas remontam aos anos anteriores à aparição de Santo Antônio de Pádua no Rio das Velhas, em 1676. Culto responsável por construir a igreja e inaugurar as festividades no dia 13 de maio. A Marujada de Roça Grande atualmente está sediada em um imóvel cedido pela arquidiocese de Belo Horizonte,  e se mantém viva na pessoa da Rainha Perpétua Maria Cristina, mesmo sem herdeiros diretos. A Marujada precisou se refazer após os desdobramentos da crise sanitária da Covid-19, evidenciando a vulnerabilidade urgente que ancora os abismos de paridade entre os Museus Formais e as Casas de Tradições. A tradição não deixou de ser viva, porém não pôde ser vivida por seus membros, em majoritário, homens e mulheres negras que precisam enfrentar diversos obstáculos sociais para individualmente se manterem vivos.

MBONGO A KANDA KA MBONGO AKU – Não são seus os bens dessa comunidade

Essa gunga é de papai, essa gunga é de vovó,
Quando eu chego no Rosário essa gunga é uma só 

Toada de Rosário interpretada pela Rainha Isabel Casimira,
Belinha, da Guarda de Moçambique do Treze de Maio

A associação desta antiga sentença proverbial do idioma africano Quimbundo – aqui emprestada como subtítulo – com esta Toada de Rosário, ambas remanescentes das tradições Bantus, oriundas do antigo território Ngola-kongo, evidencia a forma como alguns valores foram se transmutando e sendo preservados em mais de 500 anos de diluição. A manutenção de conhecimentos dessas comunidades se aproxima de uma prática essencial para os museus: a educação museal. Esse conjunto de valores, conceitos, saberes e práticas têm como fim a facilitação da relação entre os visitantes das instituições e os bens culturais em exposição. Ainda que a democratização do acesso aos museus esteja no cerne da educação museal, nos deparamos com uma realidade em que uma grande parte da população se encontra impossibilitada de fruir desses espaços, revelando a incongruência da atuação dessas instituições.

Arthur, Laíra, Luciana e Rita e Mãe Ana de Iroko – Festa de Caboclo, Nzo Kabila – Outubro de 2021. Acervo NAGÔGRAFIA

Em sentido contrário, quando analisamos a atuação das Irmandades dos Rosários e das tradições Bantu, encontramos um exemplo de oposição às práticas museais tradicionais: ao evidenciar a não propriedade individual de seus objetos, essas comunidades educam e alfabetizam as pessoas para o uso consciente da memória para sua preservação, uma vez que ninguém deve ser proprietário de um bem comum, assim como não deve ser impedido de ter acesso a eles por sua origem.

Rede de Museologia Kilombola

A palavra “quilombo” é originária do Quimbundo e significa “sociedade formada por jovens guerreiros que pertenciam a grupos étnicos desenraizados de suas comunidades”. Assim, um Kilombo é um modelo imaginado de sociedade inclusiva e participativa, organizada pela confluência de pessoas de outras comunidades que se agrupam em  um território a ser protegido e apreciado.

Nesses territórios kilombolas estão contidos os testemunhos-museália [+]O termo “objeto de museu” é, por vezes, substituído pelo neologismo “museália” (pouco utilizado), construído a partir do latim, com plural neutro: as musealia. [-] fundamentais para as suas configurações. Assim, os quilombolas – ou seja, as pessoas negras cientes das necessidades de proteção dos seus Kilombos (territórios) – carregam como princípio a proteção às materialidades, algo que é, inclusive, anterior aos processos burgueses que inauguram a Museologia e a Patrimonialização. Como afirmam André Desvallées e François Mairesse, em Conceitos-chave de Museologia: “Antes de o museu ser definido como tal, no século XVIII, segundo um conceito emprestado da Antiguidade grega e a sua ressurgência durante o Renascimento ocidental, existia em quase todas as civilizações certo número de lugares, de instituições e de estabelecimentos que se aproximavam mais ou menos diretamente daquilo que englobamos atualmente com esse vocábulo”.

A casa dos pretos

Os Kilombos, hoje, protegem majoritariamente as mesmas materialidades para as quais foram configurados enquanto abrigo: os corpos negros. Como as dimensões políticas e filosóficas de ser negro no Brasil seguem passíveis de violência e extermínio, sem os corpos negros, não há construto negro, não há arte, não há dança, não há arquitetura e não há Kilombo. Assim, para além de um exemplo mais próximo de proteção à materialidade, os Kilombos inauguram também um exemplo mais consistente de proteção de suas memórias, inclusive mais efetivo que muitos museus e que a própria Museologia. 

Nesse ensejo, negros aquilombados de Cachoeira (BA), Alcântara (MA) e Belo Horizonte (MG) se organizaram em uma frente de defesa e preservação das materialidades negras, sob a alcunha Rede de Museologia Kilombola, que, em sua redundância, afirma duplamente o compromisso de agir contra o epistemicídio cognitivo praticado em todo o território nacional por mais de 400 anos. Com esse gesto, a rede propõe um novo mito de criação dos Museus, que ultrapassa as concepções greco-romanas de “Casa das Musas” para alcançar um processo anterior em África, defendendo, assim, a preservação da memória na “Casa dos Pretos”. 

Sambadeiras do Samba da Dona Dalva. Cachoeira – Recôncavo da Bahia, 04 de julho de 2023. Foto: Vitú de Souza

N’zo, do Quimbundo Njo e do Umbundo Onjo, “casa”, é um termo atualmente atribuído ao uso religioso, sendo o centro de organização política dentro das religiões que formam o Candomblé das Nações Ngola-Kongo. São as casas onde essas culturas ainda podem cultivar suas práticas, podendo existir diversos N’zos dentro de um Kilombo, uma vez que, mesmo com conflitos ideológicos ou disputas processuais comuns à diáspora, partilham de um sentimento de unidade e perpetuação. Um desses indícios é o uso da língua, sobretudo nas cantigas, rezas e vocábulo vernacular diário de cada um desses N’zos, caracterizando costumes próprios, ensinados e assimilados imediatamente aos visitantes dessas comunidades. Essa prática se assemelha ao modelo de visita ao espaço musealizado, com o qual estamos tão acostumados a ver, por exemplo, em salas de exposições, sítios arqueológicos e bibliotecas. Assim, podemos esboçar uma correlação de funções entre a Mãe Criadeira, presente no candomblé de Angola, e um educador de museu.

NÍLATÍ TÓJU ÌRÁNTÌ – Devemos cuidar da (imagem da nossa) memória

Nesse sentido, se podemos associar os N’zos às salas de exposição e ao educativo de um museu propriamente dito, um Ilê poderia ser compreendido como um processo mais técnico e menos intuitivo. Dentro da cultura Iorubá, o sufixo -ilè flexiona o que está mais perto da terra e, em junção a outros termos, designa territórios e espaços físicos, assentamentos, monumentos e casas de santo, bem como as divisões dos espaços dentro desses territórios. 

No contexto do Brasil diaspórico e dos Candomblés Ketu-Nagô, Ilê significa “casa”. Com essa associação, podemos pensá-lo como objeto-território-vivo, que possui um arcabouço de técnicas e métodos de transposição de memória visual. Para cada espaço em um Ilê, existe um culto, uma divindade, uma cor e distintos elementos gráficos associados, que, em consonância, compõem a memória e a imagem dessas casas de santo. A cumeeira só existe pela oposição à pedra central do terreiro. As pinturas nas paredes dos terreiros representam os Orixás regentes dos lados do barracão, e geralmente seguem a fisionomia dos sacerdotes iniciados em tais divindades, que são os patronos desses terreiros. 

Festa de Seu Luciano Vagueiro – N’zo KiaKutuima Mujilo, maio de 2023. Acervo NAGÔGRAFIA

Outro elemento facilmente reconhecível em um Ilê, justamente pela fachada de suas casas, é o uso dos Mariwos (folhas dos dendezeiros) de Iansã e de Ogum, que juntamente com as quartinhas brancas de água, estabelecem uma Geolocalização Nagô para que todos os membros da tradição consigam facilmente reconhecer os terreiros não só pelo uso religioso, mas como casa de acolhida e segurança para pessoas negras. 

Essa casa, esse terreiro, como queira nominar. É um grande útero,
onde cabe todos os seus filhos. E todos encontram aconchego, respeito, carinho.

Carmen Oliveira da Silva registrada
no álbum Obatalá – uma Homenagem à Mãe Carmen

Outro exemplo interessante é como a historiografia dessas casas possui um forte apelo social. O Ilê Axé Iyá Nassô Oká é reconhecido até hoje, de forma afetiva, como “Casa Branca do Engenho Velho”. O mesmo ocorre no Ilê Axé Afonjá Oxeguirí, em Belo Horizonte, chamado por muitos membros da tradição de “Antigo Barracãozinho”. Essas práticas enaltecem características físicas desses espaços, permitindo que associemos as estruturas visuais dos Ilês, bem como suas nomenclaturas, a determinadas noções modernas de Museografia [+]O conjunto de técnicas desenvolvidas para preencher as funções museais, e particularmente aquilo que concerne à administração do museu, à conservação, à restauração, à segurança e à exposição. [-]

ÀKÒSÓRÍ

Guarde na memória 


Referências

A cosmologia africana dos Bantu-Kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil – Tiganá Santana (Tese de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 2019)

Conceitos-chave de museologia – André Desvallées e François Mairesse (eds.) (Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, Pinacoteca do Estado de São Paulo e Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo – 2013)

Dicionário yorubá português – José Beniste (Bertrand Brasil – 2020)

Entrevista do Capitão Paulo, Guarda de Marujos Nossa Senhora do Rosário de Roça Grande – Sabará/MG

Museus e etnicidade: o negro no pensamento museal – Nila Rodrigues Barbosa (Appris – 2018)

Sentenças proverbiais africanas – Tiganá Santana

 

Vitú de Souza

 

é graduando em Museologia pela UFMG. Membro da Articulação da Rede de Museologia Kilombola e do ICOM, onde propõe o recorte racial nos debates e pesquisas das Ciências do Patrimônio e da Informação. Integrante do grupo permanente do Inventário Participativo das Expressões AfroBrasileiras do Bairro Concórdia – Belo Horizonte. Fotógrafo, documentarista, realiza os registros das tradições e manifestações populares afrobrasileiras, em seu projeto Nagôgrafia o qual está inserido na Produtora OJÚ.ARTE. Como curador autônomo, realizou a curadoria da mostra “Terreiros: às margens do Velhas”, da artista Massuelen Cristina, realizada pelo BDMG Cultural em 2022.

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