REVISTA nº 10

Oralidades transcriadas: processos de comunicação intermundos

A partir de trabalhos colaborativos com intelectuais indígenas e quilombolas, a professora Luciana de Oliveira vem experimentando a desconstrução dos meios de comunicação enquanto veículos coloniais e os transformando em formas inventivas de compartilhamento entre mundos

Luciana de Oliveira, Felipe Carnevalli, Paula Lobato
31 Jul 2023 21 Min
Oralidades transcriadas: processos de comunicação intermundos
Foto: Luciana de Oliveira/Acervo Pessoal

Uma conversa entre Luciana de Oliveira, Felipe Carnevalli e Paula Lobato

Quando nos deparamos com o volume impresso do livro Ñe’ẽ Tee Rekove: Palavra verdadeira viva, ficamos impressionados com a densidade dos cantos guarani kaiowá reunidos nas cerca de 700 páginas. É um projeto editorial que desafia os parâmetros que muitas editoras vêm seguindo, balizados por orçamento, disponibilidade de produtos e viabilidade comercial. O livro, que compila um conjunto bilíngue de cantos guarani kaiowá, parte de um esforço maior de um grupo de pesquisadores que, em parceria com lideranças indígenas, busca preservar e divulgar as formas de conhecimento envolvidas nos modos de vida e nas lutas dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul. 

De volume similar e igual importância, os livros Eu tenho a África dentro de mim e Pedrina de Lourdes Santos: Meu rosário, minha guia – todos publicados pelo Selo PPGCOM/UFMG e disponíveis para download – são também resultado de uma parceria de longa data entre a universidade e as comunidades baseadas nos saberes tradicionais. Produzidos a partir de conhecimentos calcados na oralidade, os livros compreendem 60 anos de história de Pedrina, capitã da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês de Oliveira, que se misturam com a própria história coletiva dos povos trazidos da África para o Brasil no período colonial. Ao longo de suas páginas, fazem emergir, a partir da voz de Pedrina, múltiplas vivências, ensinamentos e narrativas ligadas às relações profundas que os povos de Reinado têm com a ancestralidade.  

Envolvida na organização desses dois projetos – e de outros igualmente importantes –, a  professora e pesquisadora do Departamento de Comunicação Social Luciana de Oliveira tem uma longa trajetória de contato e produção coletiva com mestras e mestres dos saberes tradicionais. 

Além de coordenar o grupo de pesquisa Corisco:  Coletivo de Estudos, Pesquisas Etnográficas e Ação Comunicacional em Contextos de Risco, Luciana é uma das professoras que organizam o Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, que promove a inserção de mestres populares, indígenas e quilombolas como professores e pesquisadores na Universidade. Entre outras, vem desenvolvendo uma longa parceria com os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, onde realiza atividades de pesquisa etnográfica e de extensão universitária relacionadas ao projeto Imagem Canto Palavra. Nesta conversa para a Revista BDMG Cultural, Luciana nos contou sobre sua trajetória de dentro para fora da academia e sobre essas alianças, que, mais do que parcerias de trabalho, são também de vida.

  • Seu trabalho na universidade pública e no ensino de comunicação social hoje passa muito pelo contato com povos indígenas, quilombolas e outros mestres e mestras dos saberes tradicionais. Como foi sua trajetória acadêmica e como se deu a aproximação com esses povos?

Minha trajetória na universidade não é uma trajetória de especialista. Aliás, eu não gosto desse lugar da especialização que por vezes se forja dentro da universidade. Eu me formei em Publicidade, fiz mestrado em Antropologia e doutorado em Sociologia e Política, o que, de certa forma, sinaliza uma busca pessoal. Quando eu fazia Publicidade e estava no meio do curso, quis desistir porque não me via nesse lugar de trabalhar para a reprodução do capital. Eu me identificava muito mais com uma vertente crítica da publicidade e com as matérias de humanidades do que propriamente com a parte mais técnica, envolvendo o mercado de comunicação.

Eu queria desistir do curso, mas um professor meu – o único professor negro que tive na graduação – me aconselhou a fazer mestrado. Nessa época, final dos anos 1990 e início dos 2000, o mestrado não era uma coisa acessível, mas segui o conselho dele e entrei para a Antropologia. O curso era muito marcado pela antropologia como uma mediação incontornável com outros mundos que não fossem o mundo moderno colonial, o que me interessou muito. Ali, fiz cursos muito bons, tive professores ótimos, mas nunca tive contato, de fato, com intelectuais indígenas e quilombolas, e nem fui encorajada a isso. 

Foto: Acervo Pessoal

Quando fui para a Sociologia, no doutorado, fiz uma pesquisa mais histórica, pensando que a figura do “outro”, para mim, eram as elites brasileiras, às quais eu não pertenço, e seu encantamento naquele momento por investimentos nas áreas cultural, ambiental e artística. Essa construção foi muito interessante para estabelecer minha entrada na universidade pública. Eu já atuava como docente na universidade privada, sonhando em transformá-la em alguma coisa interessante, mas havia um certo cerceamento da nossa liberdade de pensamento e ação. Foi somente em 2010, com minha entrada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que encontrei um ambiente de liberdade de pensamento. 

Em 2012, eu fui convidada pelo meu colega César Guimarães para participar de uma ação de extensão da universidade, o Festival de Inverno da UFMG, um festival de arte e cultura muito antigo e que foi um grande divisor de águas na minha vida toda, tanto profissional quanto pessoal. Quando nos reunimos na equipe de curadoria e de comunicação para pensar o que tínhamos de vanguarda cultural no Brasil para levar para o festival, as coisas mais pulsantes eram as resistências indígenas, quilombolas, afrodescendentes, populares. Eram nesses lugares que estavam brotando as coisas mais maravilhosas, não só pensamentos, mas ações e novas formulações estéticas que, obviamente, são também políticas, e que na época já estavam transformando a cena cultural brasileira. Em um dos poucos respiros democráticos que o Brasil teve, entre 1985 e 2016, tivemos a possibilidade de ver o protagonismo de intelectuais e artistas que não vinham das elites, mas de lugares que nunca tiveram chance de se mostrar devido a uma cultura política extremamente autoritária na história do nosso país. Essas pessoas apareceram muitas vezes na cena cultural, mas ainda trazidas pela mão de outras pessoas que não elas mesmas. 

Meu encontro com essas pessoas incríveis se deu nesse momento. Durante o festival, eu ouvi o cineasta Valmir Cabreira falar sobre as violências sofridas pelos Guarani Kaiowá e comecei a pensar que, apesar disso fazer parte da história do Brasil, eu, que me considerava alguém com um certo nível de informação, nunca havia ouvido falar dessas questões. Isso me afetou de tal modo que, dois meses depois, resolvi viajar para o território guarani kaiowá, onde assisti ao Aty Guasu, uma grande assembleia que esse povo costuma realizar. Eu nunca havia visto nada igual em termos de política, cosmopolítica, arte, existência, resistência. Era profundamente avassaladora a maneira como aquelas pessoas se organizavam e lutavam pelos seus direitos, ao mesmo tempo em que produziam a vida, a existência, as famílias, a afirmação pelos cantos, por certas práticas cotidianas. Foi nesse momento que me senti convocada, e decidi fazer alguma coisa com eles. 

Desde então, iniciamos muitos processos de aproximação, de forma cuidadosa e com muito respeito. Após três edições do Festival de Inverno das quais eu participei, entre 2012 e 2014, começamos na UFMG a experiência do Encontro de Saberes, que é, hoje, a nossa Formação Transversal em Saberes Tradicionais, que conta com mais de 100 mestres e mestras, assistentes e intelectuais indígenas, quilombolas, afrodescendentes e populares que passaram pela universidade nas diversas disciplinas propostas. Tudo isso tudo gerou muitas possibilidades de aproximação e de alianças, especialmente com a Capitã Pedrina de Lourdes Santos, capitã da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês de Oliveira, e também com os Guarani Kaiowá, com quem já tenho onze anos de trabalho.

  • Nesses anos todos trabalhando com a Capitã Pedrina e os Guarani Kaiowá, como você aliou os saberes tradicionais com o ensino da comunicação, uma ciência tão arraigadamente moderna e colonial? 

Essa contradição sobre a comunicação sempre me fez pensar na sua constituição teórica e metodológica como disciplina, no tipo de problema que ela inventa e nas pessoas que fazem parte desse campo, que são, em sua maioria, da elite branca. Sempre foi um problema, portanto, construir alianças entre mundos tão distantes – o dos povos originários e tradicionais e o da comunicação na academia. Não estou dizendo que não se pode ter conversas se as pessoas são de mundos diferentes, pelo contrário! Para mim, quanto mais diferentes são os mundos, mais desafiador é o processo de comunicação e a construção das alianças, e mais interessante também. Esse desafio sempre foi importante para mim, porque acho que, enquanto coletivo, o que nos falta são exatamente as pontes, as formas de aproximação.

Apesar da comunicação ser um campo ainda muito colonizador, coisas interessantes têm acontecido nesses processos recentes de tomada do protagonismo político por povos indígenas, comunidades quilombolas, coletivos afrodescendentes e outros grupos minorizados. Cada vez mais, em seu processo de autorrepresentação, eles têm tomado para si as formas midiáticas, as tecnologias, as próprias formas de comunicação para fazer parte das lutas.

Embora sejam tradições e modos de vida totalmente calcados na oralidade, eles tomaram a escrita, se apropriaram do cinema e de diversas formas artísticas e comunicacionais como modo de uma afirmação de si. Isso também foi uma porta para eu entender esse lugar de estar na comunicação e, ao mesmo tempo, estar nessas frentes de aproximação e de construção de pontes. Na verdade, foram os próprios coletivos indígenas e quilombolas e o modo como eles vinham operando a comunicação nos seus mundos que me ensinaram como eu poderia somar de alguma forma. 

Para mim, o mais interessante é que o fazer comum desses povos não se restringe às agências humanas. O modo de vida dessas pessoas – e a forma como elas se apropriam dos meios de comunicação – tem um alcance ético, estético, político e social que é tão elástico que vai abrangendo também as agências não humanas: as plantas, os rios, os deuses, as deusas, as entidades, os espíritos. É uma composição realmente comunitária muito alargada, e isso me interessa como fenômeno comunicacional, embora essa seja uma discussão ainda muito incipiente em nosso campo. Obviamente, para que isso se alargue, vamos precisar dos intelectuais indígenas e quilombolas, porque estamos realmente diante de outras epistemes, de outras formas de produção, de validação do conhecimento, da verdade, e isso é bem desafiador dentro do cenário acadêmico, que ainda segue extremamente moderno e colonial.

  • É instigante pensar os meios de comunicação como veículos de compartilhamento entre mundos, o que, de fato, ainda está por ser pensado e experimentado. Dentro dos seus experimentos nessa construção de pontes, como você diz, você tem se dedicado principalmente à produção de livros. Quais são as implicações de transformar um livro de uma ferramenta colonial que excluiu esses povos para um lugar possível de encontro entre mundos?

Essa história de construir escrita com pessoas que não são da escrita é algo muito desafiador. Na verdade, se eu pudesse escolher o tipo de mundo em que deveríamos viver, eu preferiria que a universidade acolhesse a oralidade plena como uma das suas formas de produção, reprodução e pesquisa. Para dar um exemplo aqui, eu tenho um trabalho de produção de cinema com os Guarani Kaiowá. A primeira oficina que fizemos com eles tinha um bruto de 70 horas, que, com muito trabalho coletivo, transformamos em dois filmes, um de 52 minutos e um curta de 15 minutos. Foi impressionante perceber que, dois anos depois da oficina, quando os filmes ficaram prontos, os jovens e as jovens indígenas que participaram das filmagens lembravam detalhes de tudo o que foi filmado, de como foi filmado e de como a imagem ficou. É incrível esse tipo de habilidade que a memória longa gera. Nós, que crescemos sob a cultura ocidental, onde a memória está muito associada à escrita, ficamos realmente surpresos quando vemos o mecanismo da memória longa atuando.

Foto: Acervo Pessoal

Sustentar uma reza longa no território guarani kaiowá (uma reza que dura do final da tarde de um dia até o início da manhã do dia seguinte), por exemplo, é impressionante, porque a reza é toda baseada na memória. Acho, então, que o tipo de acomodação mais interessante entre os mundos seria a oralidade plena, que ela tivesse um reconhecimento como forma legítima do saber, porque houve todo um trabalho filosófico de banimento da oralidade e de deslegitimação dela em relação à escrita: os conhecimentos baseados na escrita ficaram no topo da hierarquia e os conhecimentos baseados na oralidade foram historicamente subalternizados.

Infelizmente, nós não vivemos no mundo em que gostaríamos. Então, acho que esse trabalho de ocupar o campo da escrita com os conhecimentos tradicionais é algo intermediário, porém muito importante. É um jeito de constituir essa luta de poder acadêmico, de poder de conhecimento, uma forma de não deixar a escrita encapsular as formas de conhecimento que vêm da oralidade. Na aliança com os Guarani Kaiowá, por exemplo, eu pensava que os livros não poderiam ser como aqueles formados no regime de conhecimento moderno colonial, mas deveriam ser “kaiowarizados”. O livro da Capitã Pedrina também deveria ser “pedrinizado”. 

Para construir esse caminho, eu acredito que existem duas questões relevantes. A primeira é a técnica da oralidade transcrita, uma coisa que o antropólogo José Jorge de Carvalho tematizou e que a professora Renata Marquez, da UFMG, está tratando com a noção de oralidade impressa. Eu aposto muito na oralidade transcrita, mas também acredito na “oralidade transcriada”, porque sempre há uma tradução nesse processo. A oralidade transcrita não é simplesmente transcrever o que a pessoa falou. Nesse processo, há camadas de sentidos que vão sendo construídas e que operam deslocamentos. Sempre temos que fazer escolhas: vamos manter igual ao que a pessoa falou e afirmar o “pretoguês”, por exemplo, no caso da Capitã Pedrina? Afirmar a oralidade, manter todas as partículas que fazem parte da oralidade? Ou seria melhor fazer algo mais próximo das normas cultas da língua portuguesa? São escolhas que precisam ser feitas, sobretudo em conjunto. Eu acho que as respostas não se dão apenas para quem está envolvido dentro do processo editorial, que normalmente tem uma formação moderna colonial. É muito importante que as formas do próprio modo de vida tradicional estabeleçam os critérios de relevância e as escolhas que são feitas nesses processos, que são muitas. 

  • Esses desafios que você menciona têm muito a ver com algumas de suas reflexões, nas quais você afirma que a materialidade resultante do trabalho diz muito sobre a forma do saber produzida nessa relação entre mundos. Como, então, o trabalho em aliança com essas comunidades influencia a forma da produção conjunta de vocês? 

Em relação à produção de livros, a forma tem muito a ver com o design, uma dimensão muito importante nesses processos de tradução ou transcriação. O design ajuda a completar algumas lacunas que a performance da oralidade transcrita deixa, entre eles o corpo, os afetos, as emoções, a cadência dos cantos e até os silêncios.

No caso do livro com os Kaiowá [Ñe’ẽ Tee Rekove: Palavra verdadeira viva], também produzimos um site, que hoje é o site da Associação do Guaiviry, essa retomada de um território originário deles. Esse site é associado a várias coisas do livro: o primeiro capítulo, onde a reza longa está transcrita, está vinculado a uma página do site onde existe o áudio dessa reza. Ou seja, se o leitor quiser ficar próximo da oralidade, fazer uma leitura entre a escrita e a oralidade, ele também tem essa possibilidade com a junção multimídia. Isso, para mim, é pensar design em favor dos modos de conhecimento desses povos. 

Outra questão muito importante foram os desenhos que ilustram os cantos. Junto ao processo de transcrição dos cantos que estão no livro, houve uma oficina de desenhos que foi muito importante, pois não estávamos apenas traduzindo textos, mas também imagens, cosmopoéticas e cosmopolíticas que nós, da universidade, não detínhamos. Muitos desses lugares cosmológicos, essas aldeias dos parentes da terra lá de cima, nós não éramos capazes de alcançar, e o desenho abria esse caminho. Nós escutávamos um canto e quem estava na oficina de desenho representava esse canto. Isso, inclusive, ajudava na tradução dos textos, pois é complicado traduzir de forma fiel uma coisa cuja imagem mental você não conhece. 

  • Adentrando com mais detalhes os projetos dos livros com os Guarani Kaiowá e com a Capitã Pedrina, você pode nos contar como se deu o processo de pensamento gráfico em cada um deles? O livro dos Guarani, por exemplo, foi publicado em dois idiomas (português e guarani), o que gerou um livro bastante grande em termos de orçamento. Essa é uma decisão ousada de design, mas, ao mesmo tempo, nos pareceu uma decisão incontornável para os próprios indígenas. Como essas questões apareceram em cada projeto? 

Quando estamos pesquisando sobre alguma coisa, também estamos pesquisando como apresentar ou como trazer ao mundo as perguntas que essa pesquisa gera. Isso é essencial, porque sabemos que as ideias têm uma relação reflexiva com o mundo e elas também constroem o mundo.

O cuidado com a palavra é fundamental nas comunidades tradicionais, porque tudo o que é dito tem muito poder. Como, então, nesses processos de feitura de livros, construir um berço para essas palavras? Como acolhê-las com amor e dar a elas todo o respeito que merecem?

Fotos: Acervo Pessoal

Eu presenciei várias lideranças guarani kaiowá levantando nosso livro e dizendo: “Agora nós temos a nossa bíblia!” Esse livro é uma espécie de livro sagrado, que traz conhecimentos milenares, e por isso é uma grande responsabilidade, para nós, articular essa palavra que inventa mundos e que, ao existir, provoca uma série de consequências pragmáticas. 

O livro que realizamos com eles foi um livro caro, possível graças a um financiamento, feito com a prioridade de chegar nas escolas Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Tínhamos um material imenso para compor o livro, com entrevistas de lideranças que duraram cinco horas. A reza longa, por exemplo, tinha oito horas de transcrição. Foi traduzida literalmente, verso por verso. Em alguns momentos, o mesmo verso da reza se repete por diversas páginas seguidas, como na oralidade, e resolvemos deixar desse modo para que o leitor tenha a ideia da intensidade que é o canto. Se fosse um livro feito segundo o nosso pensamento – como existem vários outros livros muito legais publicados também com excertos do conhecimento Guarani e Kaiowá –, a reza longa com certeza seria condensada de alguma forma. Mas para os nossos companheiros Guarani, a intensidade e o tempo da reza precisavam ser respeitados na forma escrita, tanto do ponto de vista do conteúdo quanto do design. 

Em relação ao design, inclusive, nós tínhamos algumas imagens lindas da casa de reza. Um dia, manipulando um desses livros com orelhas, eu percebi que, se deixarmos o livro em pé, ele lembrava o formato da casa de reza. Logo pensei: “Qual o melhor lugar do mundo para acolher essas palavras sagradas senão a própria casa de reza?” E daí veio a ideia da capa do livro ter a mesma textura das fibras vegetais da casa de reza guarani. 

A equipe de design foi muito sensível às questões que os indígenas apresentavam. Primeiro, eles propuseram ideias que não deram certo, que ainda estavam distantes. As conversas que seguiram foram bem interessantes, pois não feriram a criatividade deles, pelo contrário. Aos poucos, foram entendendo as necessidades dos indígenas e isso foi se transformando em uma tipologia de livro, com o texto não justificado, as letras maiores, as imagens entrando em lugares determinados pelos próprios Guarani.  

Fotos: Acervo Pessoal

Já no livro da Capitã Pedrina, ela mesma conversou diretamente com a equipe de design. Foi uma reunião de briefing de cinco horas. Acho que esse pessoal nunca viu uma reunião de briefing tão longa na vida! Foi muito interessante o modo como ela orientou as questões de design no livro, muitas vezes sem falar de design. Ela começou a reunião contando três histórias: a do trabalho dela com as crianças no Reinadinho, a de um ritual que tinha acontecido em Juatuba, no qual uma entidade se manifestou, e, por último, um ponto sobre a festa de Oliveira. Foi maravilhoso, pois quem trabalha com criação e design nunca espera uma reunião sobre projeto gráfico sendo alimentada por narrativas cheia de seres, poesia, criatividade e inventividade. Além de ajudar a construir a organização dos capítulos, Pedrina também sugeriu conteúdos imagéticos que guiaram a construção do projeto gráfico. Solicitou que as páginas fossem permeadas por motivos e grafismos africanos, além de desenhos de árvores e ervas utilizadas no Candomblé e nos processos de cura realizados no Reinado. Pediu também trechos em caligrafia manual, aproximando o leitor de sua subjetividade.   

Outra questão que a mestra Pedrina nos ensinou é que, para esses povos, o tempo é outro. Fazer livros com essas pessoas pressupõe outra temporalidade, com intervalos grandes de amadurecimento e contemplação. Havia momentos em que a Pedrina nos dizia: “Agora vamos parar, porque as entidades estão dizendo que é para pararmos”. Isso muitas vezes nos tira de um lugar de comodidade e controle, mas nos leva a pensar de formas mais inventivas. Essa guiança do mundo espiritual nos trabalhos acaba se tornando muito presente, e transforma a materialidade dos próprios livros. Tudo é orientado a partir de conversações que os autores e organizadores estabelecem com os parentes, com os ancestrais, com os seres sagrados que habitam a terra lá de cima. É de uma força que não dá para explicar.   

  • Algo interessante de pensarmos também é que, integrando esses diferentes projetos, a sua posição se altera em cada um deles, a partir do contexto ou de quem está trabalhando com você. Como você se enxerga nessa movimentação, nessa posição de flexibilidade que as alianças demandam? E o que você aprende com a desestabilização desse lugar hermético que temos de referência em nossa prática profissional moderna?

No caso dos Guarani Kaiowá, por exemplo, eles entendem que estão nos usando para alcançar seus objetivos. Essa recolocação é muito importante. O Genito Gomes e a John Nara Gomes, lideranças e cineastas kaiowá, uma vez nos disseram: “A gente queria fazer cinema há muito tempo. Fizemos tudo do ponto de vista das nossas rezas, até que chegou alguém que nós usamos para conseguir os recursos para poder fazer os filmes. É a mesma coisa para os livros”. Eu acho que eles estão certos de nos pensarem como instrumentos, até porque essas alianças que tecemos têm muito valor, tanto para eles quanto para nós. 

Esse caminho que se apresentou para mim eu encaro como uma missão. Eu realmente tenho um amor por essa prática, que não tem nada a ver com certos parâmetros da produtividade acadêmica. E eu tenho muito orgulho de ter aprendido a falar guarani antes mesmo de aprender a falar inglês, e de ter escolhido fazer meu pós-doutorado na aldeia. A primeira vez que eu cheguei na aldeia, fui recebida pelas crianças com cantos kotyhu, e acho que eu me senti tão em casa que me pareceu natural fazer parte daquela partilha. 

Meu desejo é que todo mundo pudesse ver e sentir as belezas e o aconchego que existe nesses mundos, esses afetos, essa resistência. Se você pensar, a própria resistência linguística dos Guarani Kaiowá é um negócio impressionante. Mesmo Com todo um entorno de fazendas e campos de soja dizendo para eles não falarem a própria língua, as lideranças mais velhas se recusam a falar português, porque precisam manter a sua língua a mais pura possível para fazer a comunicação com os antepassados e com os seres sagrados da criação do mundo. 

Foto: Acervo Pessoal

Fazer esse tipo de trabalho tem muitos ganhos e nós aprendemos muito humanamente, inclusive com os desafios. Estar na aldeia coloca desafios imensos a quem mora na cidade. É a mesma coisa que os indígenas sentem quando vêm para a cidade e são desafiados a viver nesse modo de vida urbano. Os desafios são inúmeros, mas acho que é muito interessante borrar essas fronteiras como forma de multiplicar os possíveis, de multiplicar possibilidades da nossa própria existência, da coabitação entre os mundos. Eu tenho trabalhado um pouco com essa ideia de comunicação intermundos, mas para mim ela não é um conceito, justamente porque o que essa ideia sugere é a experiência. E é importante, de alguma maneira, nós falarmos dessa experiência como possibilidade. Se não, corremos o risco de ficar como eu fiquei no mestrado, estudando antropologia, achando incríveis todas aquelas coisas escritas sobre os Tikuna ou os Araweté, mas sem entender que eles estão aqui, vivos, cuidando para que essa incrível base filosófica e epistêmica esteja viva também. 

Pensando justamente na universidade, é essencial não nos encastelarmos, travando conhecimento com outros mundos só através da leitura dos livros, por meio somente do que foi contado por outra pessoa. Nós precisamos nos aproximar, experimentar, criar outras possibilidades de diálogo. Existem muitas aberturas nos nossos mundos, como políticas de ação afirmativa ou formações interculturais para professores atuarem em escolas indígenas, e esses processos são incríveis, porque a coabitação entre esses tantos mundos vai se tornando também mais cotidiana. No fim das contas, precisamos ter mais artistas periféricos, mais intelectuais quilombolas e mais estudantes indígenas, porque as proximidades vão se tornando mais efetivas e as distâncias, felizmente, vão sendo contornadas.

Luciana de Oliveira


é pesquisadora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Além de coordenar o grupo de pesquisa
Corisco: Coletivo de Estudos, Pesquisas Etnográficas e Ação Comunicacional em Contextos de Risco, é uma das professoras que organizam o Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, que promove a inserção de mestres populares, indígenas e quilombolas como professores e pesquisadores na Universidade. Entre outras, vem desenvolvendo uma longa parceria com os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, onde realiza atividades de pesquisa etnográfica e de extensão universitária relacionadas ao projeto Imagem Canto Palavra.

Felipe Carnevalli

 

é arquiteto, designer e editor de PISEAGRAMA. É mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e em Ciências Sociais pela EHESS (Paris, França).

Paula Lobato


é arquiteta, designer e editora. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, onde também se formou. Integra a equipe do BDMG Cultural desde 2021.

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