Manzo: nosso território sagrado que cuida de nós
Depoimento de Makota Kidoialê sobre a relação íntima da comunidade quilombola com seu território e sua luta para preservar seus modos de vida
Makota Kidoialê em conversa com Ceci Nery Batista e Paula Lobato
A Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango, localizada em Belo Horizonte, foi fundada na década de 1970 por sua mãe Mametu Muiandê. O Manzo mantém várias relações com a cidade, com a religiosidade, com a política, com a educação… Mas a sociedade tem muita dificuldade para compreender sua cultura, que é comparada a um modelo padrão do país. A cultura faz parte de seu modo de vida, e vem da própria natureza e do meio ambiente, sustentando suas tradições. Por isso, para falar do Manzo, é fundamental falar do território para além de seu limite geográfico.
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Minha avó constituiu sua família no Morro das Queimadas, em Ouro Preto, onde tinha o ofício de engomadeira e passadeira, engomando muito bem as fardas que recebia da polícia local. Na década de 50, com a formação do primeiro batalhão em Belo Horizonte, ela recebe uma proposta para trabalhar aqui, no mesmo ofício. Chegando na cidade, sem oferta de moradia, ela vai morar no bairro Paraíso, em uma casa cedida por pessoas que também vieram com ela.
Cerca de quatro anos depois de se mudarem para Belo Horizonte, minha mãe começa a ter problemas de saúde, parando constantemente no hospital. Um dia, uma enfermeira, que era espírita, fala para minha avó: “olha, não parece ser possível resolver o problema da Efigênia aqui. Ela está parecendo incorporada. Eu oriento a senhora a levá-la ao centro de umbanda”. Chegando ao centro de umbanda, minha mãe manifesta um Preto Velho, que é o Pai Benedito. A partir de então, ela começa a desenvolver a sua mediunidade e a trabalhar sua espiritualidade, e o Pai Benedito vira uma referência de entidade que cuidava da saúde, que benzia e cuidava da harmonia da família.
Um dia, o patrão da minha avó pediu para o Pai Benedito benzer sua esposa, que estava muito doente. O Pai Benedito benzeu, fez alguns remédios, ensinou a ele como fazer também, e sua esposa foi curada. Ficando muito grato, o patrão deseja retribuir o Preto Velho, mas ele não aceita esse valor. O patrão da minha avó então convence minha mãe de que ela poderia receber esse dinheiro e comprar uma casa para si. Nessa época, o bairro São Lucas era uma vila com casas muito baratas, e como o dinheiro não era muito, minha mãe compra uma casa lá. Pai Benedito diz para ela que ali não era o lugar, e que ele iria mostrar para ela onde era. Minha mãe devolve a casa, desfaz o negócio e recebe o dinheiro de volta.
Passando um dia pelo bairro Santa Efigênia, minha mãe sente alguma coisa que indica para ela que ali era o lugar onde ela deveria ficar e criar seus filhos. Lá tinha uma nascente e também um bambuzal, o que relacionava a terra com as tradições de matriz do Terreiro. Como o dinheiro não dava para comprar toda a terra, minha mãe negociou com o dono, pagando uma entrada e parcelando o restante para que pudesse pagar em promissórias. Eles fazem um contrato de compra e venda, e minha mãe assina, só que ela guarda esse contrato na gaveta e não leva para o cartório, entendendo que esse documento já garantia a propriedade do terreno. Com o tempo, minha mãe adoece, para de fazer os atendimentos, e começa a atrasar as promissórias. Ela lavava roupa para fora e passava, como a minha avó, e na maior parte dos dias atendia as pessoas que vinham buscar acolhimento espiritual. Nessa época, nós passamos muita necessidade.
Minha avó viu que a minha mãe estava adoecida e com as prestações atrasadas a ponto de quase perder o terreno, então entrou em contato com a Associação São Vicente de Paula, que ajudava minha avó a pagar seu aluguel. Se a minha mãe deixasse a minha avó morar com ela em seu terreno, a Associação poderia passar a pagar suas promissórias. A gente sempre conversava muito com Pai Benedito, e ele então diz que ali seria sua senzala, um lugar de acolhimento onde todos que chegassem deveriam ter comida e cama para dormir. Assim começa o Quilombo: minha avó vem morar com a minha mãe, os outros filhos da minha avó, que já tinham filhos, vêm também, e sua casa acaba virando uma comunidade, onde todo mundo vivenciava e praticava as mesmas tradições.
O Preto Velho da minha mãe passa a ser o orientador de como nós íamos nos organizar enquanto coletivo e de como a gente deveria manter, ali dentro, o princípio de cuidar um do outro e também do território. A gente tinha uma nascente, uma grande vegetação e uma terra muito mais extensa do que é hoje. E também podia buscar na Mata da Baleia uma variedade de ervas, de árvores e de terras – riqueza que dialoga e mantém as práticas do Terreiro.
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Como o bairro era todo formado por filhos de policiais, quando veio a fase de frequentar a escola, fomos muito excluídos. Nós éramos vistos como um grupo de pessoas estranhas, que frequentavam a escola porque a mãe, a avó ou alguém da família era empregado de alguma dessas famílias. E a gente era muito diferente, não tínhamos material escolar, uniforme… Tudo era muito dividido, e os alunos abusavam da gente. Não respeitavam. Quando um de nós não aceitava aquilo e revidava, muitas vezes as nossas mães ou avós eram chamadas na escola, causando um grande constrangimento para elas. Assim, a gente tentava resolver as coisas do nosso jeito.
Muito do que me incomodava na escola era a forma como os materiais nos eram oferecidos. Enquanto a gente aprendia no terreiro sobre a história do Povo Africano, na escola ensinavam a história dos escravos, que eram a gente. E quando um de nós questionava, eles diziam: “Essa é a história do Brasil, você quer mudar?”.
A gente sabia que não era verdade, porque conhecíamos perfeitamente a nossa história. Eu comecei a me incomodar com aquilo, queria que as pessoas entendessem a nossa história, uma história que não estava escrita, mas estava dentro do meu quilombo, da minha comunidade, da minha senzala. Quando falavam de senzala na escola, muitas vezes diziam que eram lugares sujos onde os negros dormiam. Eu questionava, porque nasci dentro da senzala e não entendia a senzala como aquilo que eles estavam falando. As coisas que a escola nos passava não batiam com a minha realidade.
Sempre que a gente chegava da aula, minha mãe estava incorporada. Não tinha um dia que ela não estava atendendo alguém. Ninguém contava as coisas que aconteciam na escola, porque a gente não queria que ela fosse lá passar vergonha, nem que minha avó perdesse o emprego. Mas lá em casa, a gente aprendia o contrário da escola, começando pela nossa importância. Cada um de nós era muito importante dentro do terreiro, e tinha também uma função. Começamos a dar muito mais valor para o aprendizado do terreiro do que para o da escola.
Quando estava na quarta série, eu decidi que não ia estudar mais, que aprenderia de outra forma. Falei com meus irmãos e eles acharam a ideia maravilhosa. Eles perguntaram: “Nós não vamos pra aula, mas pra onde a gente vai?”. E aí a gente entendeu que seria para a nascente, se esconder onde a água do córrego nascia. Na hora da escola, a gente subia a Serra do Curral e passava o dia inteiro lá em cima.
Pai Benedito já sabia que a gente não estava indo para a escola. No final do ano, a minha avó, que era lavadeira da diretora da escola, foi lá buscar as nossas notas e voltou desesperada, querendo gritar, xingar, aterrorizar! Para a diretora, tinha sido um alívio a gente ter saído, então ela também não tocou no assunto com a minha avó. Ela disse: “Eles pararam de vir na escola, pensei que você sabia. Esses meninos não têm futuro não”. Quando minha avó descobriu, ficou desesperada. Chegando em casa, o Pai Benedito chama a gente para sentar – era assim, qualquer um que errasse recebia seu conselho – e ele fala: “Vocês não querem ser doutor?”. E a gente responde que não, porque a construção de ser doutor envolvia deixar de ser a gente mesmo. Envolvia esquecer ou não falar do Pai Benedito, não falar dos Orixás, não falar de nada que a gente gostava muito e se identificava. Pai Benedito então falou que tudo que a escola estava ensinando a gente aprenderia com a natureza, porque a natureza também ensina. Passamos a ir todos os dias para a Serra, e assim a gente aprendeu a se relacionar com esse saber orgânico.
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O Manzo tinha duas frentes, a frente para o bairro e a frente para a Serra, ou a frente para as águas e a frente para a mata. A frente para o córrego era o lugar de encontrar todo mundo que vinha da Serra para lavar roupa nas pedras, e o outro lado era a Mata da Baleia, onde se buscava folhas, ervas e remédios. Para fazer trabalhos e rituais, a gente ia para a Mata da Baleia, e para lavar roupa ou fugir da escola, a gente ia para a Serra.
Hoje eu sei que, na verdade, tudo é Serra. Mas a gente não chamava assim, a Serra nos protegia, e por isso nunca enxergamos um limite para ela. Nós fomos educados ouvindo as cantigas de Terreiro, que diziam até onde a gente podia ir. A gente cantava assim: “Lá em cima daquela serra, tem uma pedra que é de Katendê, debaixo dela, mora uma onça, a água dela é pra nóis beber”. E a gente nunca ia lá. Primeiro porque a pedra era sagrada, era de Katendê, e depois porque debaixo daquela pedra tinha uma onça que nos servia a água, e se a onça parasse de servir a água, a gente morria. Fomos criados ouvindo essas histórias… A gente cantava: “Lá vem vovô descendo a Serra com sua sacola, com seu rosário, com seu patuá, ele vem de Angola”. A maior parte das nossas cantigas dialoga muito com a Serra. Entendemos que a Serra é de onde saem os deuses, os Orixás, e que lá é o lugar mais próximo para falar com Deus. Essas cantigas eram nossa brincadeira, e assim a gente foi aprendendo brincando.
A gente também tem uma relação afetiva com o córrego e com a nascente. Hoje a gente ouve falar que o córrego se chama Cardoso, mas a gente nunca deu nome a ele. A gente sempre entendia como primeira água, segunda água e terceira água, que eram demarcadas pelos poços. Na terceira água, nós tomávamos banhos, nós buscávamos água para fazer comida, eram as águas para a manutenção do coletivo. Na segunda água, a gente buscava as ervas de cura. As ervas mais raras nasciam naquele lugar, que não era muito acessível, e ficava bem preservado. E na primeira água, a nascente, a gente buscava a manutenção do sagrado. Ali era onde nascia toda força que nutria a manutenção da energia, da seiva que nutre a nossa fé. Hoje nós não conseguimos mais chegar até ela, então precisamos acessar outras águas.
Na primeira água tinha também uma coisa que não tinha aqui embaixo, três tipos de argila. Isso para nós tem um fundamento, porque é muito raro encontrar uma nascente onde tem os três tons de argila. A gente aprendeu que aquela era uma nascente que curava doenças e então a gente preservava, e, só em um caso de muita necessidade, a gente ia lá buscar. Tinha uma argila branca, uma argila meio avermelhada e uma argila amarela. Essa argila nos remete à Zumba, que na cultura Iorubá é conhecida como Nanã, a senhora que moldou o homem e a mulher, o ser humano. É dela que veio a primeira matéria humana. E essa argila a gente usava não apenas no assentamento dos elementos sagrados, mas também para tratamentos. Não tinha vacina para tudo, então a argila era um grande material natural que nos protegia de várias doenças.
Então a gente nos cuidava, nos alimentava, mas também se relacionava com nossa ancestralidade de forma mais direta naquela nascente. Sem água a gente não tem vida e nem ancestralidade. A água é o elemento mais rico e necessário para nossa manutenção enquanto pessoas, e também para a manutenção de nossa religiosidade. É a água que nos faz existir, que nos faz ser. A água é a seiva da terra, e é da água que nós somos gerados. A nossa relação com a água é a mesma relação do nosso corpo com o sangue. Ela é o ponto fundamental que me liga à minha ancestralidade, à minha maternidade.
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Fomos recentemente para o Festival de Cinema de Ouro Preto, para minha mãe apresentar um filme que seu neto produziu. Chegando lá, achei estranho estarmos em um bairro da cidade onde ela nasceu, e de onde eu conhecia só a história do povo preto, e ver só gente branca. Aí eu falei: “Uai, cadê os pretos aqui de Ouro Preto? Tem preto aqui?”. Uma professora, acho que é a Cassandra, nos convidou para, no dia seguinte, conhecer outras partes da cidade. Ela nos levou ao bairro do Veloso, à gruta Du Veloso. Lá, conhecemos o Du e ele nos contou a história da região. Começamos a reconhecer essa história imediatamente: até os desenhos no chão, de círculo e capoeira, eram muito similares aos nossos. Eu disse: “Nossa, Du, esse lugar aqui está lembrando muito a nossa casa”.
Quando a gente contou para o meu tio essa história, ele falou: “Eu não estou acreditando que você esteve lá onde mamãe nasceu e vocês não lembraram!”. Mas ninguém tinha contado isso pra gente. Ele começa então a nos contar as histórias de como era a família. Nós sabíamos, a partir da minha avó, quem a gente era e de onde a gente veio, mas meu tio trouxe essa história com nomes, sobrenomes e lugares. Minha avó nasceu na Vila do Veloso, em Ouro Preto, sua família era toda de lá. Enquanto morava próximo à mina do Veloso, ela trabalhou como mineradora, extraindo ali ouro. Nós aprendemos que a escravidão vem do processo de mineração mas, pelo contrário, foi a mineração o principal provocador do crime que foi a escravidão.
Minha avó dizia que, quando chegavam, os negros eram levados para trabalhar nas minas até esgotar a possibilidade de extração. Quando já não tinha mais nada, os proprietários abandonavam suas minas, mas como o conhecimento era dos negros, eles sabiam extrair mais. Assim, a família da minha avó permaneceu nessa mina desativada, e o terreno ficou como terreno de sua família. O conhecimento de extração de ouro foi passado para minha avó por seus pais. Minerando farelo de ouro eles conseguiram comprar sua própria terra, mas não havia uma lei para garantir esse tipo de negociação, então eles não conseguiram o título dessas terras…
Além de saber extrair ouro, minha avó sabia também extrair aquelas pedras que são próprias das minas de Ouro Preto, que na época também começaram a ter valor, e com isso eles alcançaram uma qualidade de vida muito boa. Meu tio conta que o pai da minha avó foi um dos que fundou a primeira escola pública de Ouro Preto. Minha avó teve uma boa educação e minha mãe estudou até a terceira série em um colégio de freiras.
Em Ouro Preto está essa outra parte de nós. Chegando em Belo Horizonte, o Pai Benedito começa uma outra história para a gente, de resgate e retomada da nossa identidade. O Preto Velho nos lembra o que é plantar, o que é colher, como plantar, como lidar com a terra, como entender o meio ambiente e como nos relacionar com ele, sem danificar. Pai Benedito nos ensinou que se a gente não tiver terra a gente não tem equilíbrio, e assim nós começamos a tecer uma outra relação com o território.
A escola nos ensina a importância do território enquanto propriedade, enquanto riqueza, mas não enquanto espaço de acolhimento e de cuidado. Eu lembro que quando estudava ciências, a gente aprendia muito mais sobre o corpo humano do que sobre o território. Aqui é o contrário, nosso modo de nos conectar com a terra, ou nos territoriar, é diferente. Primeiro você tem que entender o território, para depois compreender a sua formação e o seu desenvolvimento a partir do envolvimento com esse território.
A terra não é percebida enquanto propriedade, e sim enquanto pertencimento. Talvez por isso os quilombos hoje vivem um enorme conflito: a ausência do direito de regularização dos nossos territórios. Não colocamos cercas e nem muros em nossas casas. Na maioria das vezes o terreno chega até a água e termina lá. A gente não precisa derrubar árvores, a gente não precisa canalizar ou asfaltar nascentes, nem o córrego. Na verdade, é a natureza que nos recebe. Como se nós fôssemos propriedade da natureza, e não o território uma propriedade de terra para nós. Esse território nos dá a condição de nos mantermos unidos, e isso o torna sagrado. Então, para nós, nosso território é sagrado porque cuida de nós, e a gente se organiza dentro do espaço que ele nos concede.
Combinando a ausência da regularização da terra e o desenvolvimento urbano, perdemos nossa independência econômica e a sustentabilidade de manutenção de todo o coletivo – afinal, somos um quilombo urbano. Antes mesmo da mineração, o Manzo sofreu uma violência provocada pela gestão do município de Belo Horizonte que até hoje nos causa conflitos de compreensão e pertencimento identitário com o território. Essa violência nos nos tirou o acesso direto à mata e à nascente – nós não conseguimos mais acessar nenhuma das duas. E também nos obrigou a migrar para um outro município com o nosso sagrado, justamente por causa da descaracterização ambiental. Quando a mineração vem, a gente questiona essa violação repetida dos nossos direitos.
Quando a gente fala em reparação, muitas pessoas não querem, de fato, reconhecer a violência que deixaram para nós enquanto herdeiros de todo um território, o continente africano, invadido simplesmente para comércio. Essa violência com a população quilombola, com a população negra, acontece a partir da invasão de África, do desmatamento dos territórios africanos a partir da colonização, e isso migra para o Brasil e é reproduzido com os povos indígenas.
Ser quilombola é afirmar que somos uma continuidade de África. E para valorizar e reconhecer os quilombos, é necessário saber da história e, mais importante, reconstruir essa história e saber onde de fato começou essa violência. E assim, começar a corrigir minimamente os erros.
Nós estamos o tempo todo tendo que chamar a mata de volta, para que a gente possa ressignificar mais uma vez o nosso território enquanto um território sagrado. E esse é realmente um desafio, já que também precisamos sair do nosso território e nos colocar nos espaços de discussão política constantemente, para poder dizer que nós existimos e que nós não somos só o passado: nós somos um passado, um presente e queremos o nosso futuro.