REVISTA nº 11

Nós por nós, comunidade para comunidade

Conversa com DJ Edd e Cal sobre o grupo Verdade Seja Dita (VSD) e o festival Atitude e Consciência Norte (ACN), que em breve comemora 20 anos de existência

Francisco Rocha, Paula Lobato
30 Set 2023 25 Min
Nós por nós, comunidade para comunidade
DJ Edd e Cal com crianças no festival Atitude e Consciência Norte (ACN). Foto: DlabeW2

Encontramos o DJ Edd em sua casa, que também abriga seu estúdio musical, na Vila Biquinhas, em Belo Horizonte. Ele e Cal conversaram sobre o grupo Verdade Seja Dita, formado em 2004 com o objetivo de difundir a cultura hip-hop na Zona Norte de Belo Horizonte e também sobre o projeto cultural Atitude e Consciência Norte, cujo propósito é divulgar em Belo Horizonte os quatro pilares essenciais da cultura hip-hop: o rap, o DJ, a breakdance e a escrita do grafite.

  • Edd, como começou a sua relação com o hip-hop e como surgiu o VSD?

Edd: Sou de Mato Verde, cidade que fica depois de Montes Claros, no norte de Minas. Na região tem muito forró e axé, mas eu sempre fui diferentão, e aos 15, quando fui morar em São Paulo, entrei na cultura hip-hop pelo grafite. E o grafite é isso, você monta do seu jeito, com a sua característica, paleta de cores, etc. Eu comecei grafitando no papel. Vim morar em Belo Horizonte em 2016 e lancei a primeira parede na Escola Estadual José Maria dos Mares Guia, em um projeto da aula de artes, sem técnica nenhuma. A parede deveria ficar pronta em cinco horas, mas nós gastamos umas três semanas. 

Conheci o HK nessa época, estudando juntos. O HK já era antigo no hip-hop, chegou a tocar com o Thaíde & DJ Hum quando eles começaram, no Festival BH Canta e Dança, que lotava a Praça da Estação com a cultura hip-hop. Ele tinha essa base de conhecimento, me aplicou a Rádio Favela e outros grupos além de Racionais. Todo mundo começava com Racionais e não saía dali, mas ele me aplicou Apocalipse 16, SNJ, Facção Central… Nessa época, eu trampava normal. Vida padrão, pacato cidadão mesmo. Meu filho tinha nascido há pouco tempo. E o HK, mesmo sendo mais velho e tendo essa experiência toda, não quis montar um grupo. Ele sempre falava: “Cara, sair representando é muita responsa. Ser mestre de cerimônia, representar uma região, uma cultura… ainda não temos base para isso”.

O início do festival Atitude e Consciência Norte (ACN),  em 2004. Foto: Acervo ACN

Com o grafite, eu acompanhava também o grupo do Hyper, da região Leste, um grafiteiro estouradaço nacionalmente. Fizemos uns painéis juntos. Ele tinha um grupo de rap na época, e foi a primeira pessoa que eu vi ensaiando e produzindo. Eu ia para a casa dele no final de semana e comecei a aprender como criar os beats em casa. Ficava lá de bobeira trocando uma ideia, sem querer fazer, era só pra conviver mesmo. O grupo dele não avançou, e um dia o DJ deles me ligou falando que estava montando um outro grupo. Ele disse: “Agora eu não quero mais ser DJ, vou ser MC. Você não quer ser o DJ do meu grupo?”. Eu nunca tinha tocado. Nada, nada. Mas ele já tinha o mixer, o toca-discos, e começamos a ensaiar todos os sábados, durante uns 40 dias. Não avançou, e a banda nunca existiu.

Acredito que não é possível “aprender” a ser DJ, mas, nesse período, sinto que entrou na minha veia. Voltando para casa um dia, eu encontrei o Vinícius, um amigo aqui do bairro que estava gravando algumas músicas. Ele disse: “Você é DJ, eu sou MC, estou gravando com um grupo daqui, vamos juntar”. E eu respondi: “Demorou, me chama aí”. Quando vi, eu já estava inscrito no Arena da Cultura [projeto de incentivo à formação artística da Prefeitura de Belo Horizonte]. Seu grupo se chamava Homicidas do Rap. Entrei, mas falei que não dava para manter esse nome. Ainda assim, nosso primeiro show foi como Homicidas do Rap, no bairro Campo Alegre, no Circuito Arena da Cultura.

Nessa época, o Cal entrou no grupo, fazendo voz e violão com a gente. No mesmo ano, nos tornamos o grupo Verdade Seja Dita, com o Cal, o HK, o Vinícius e eu. O HK foi quem escolheu o nome. Eu lembro até hoje, eram cinco siglas, entre as quais estava VSD, Verdade Seja Dita, que ele tirou da bíblia. O HK não é nada cristão, não tem nada a ver, mas tem um embasamento. Foi bem unânime para o grupo, pegou o nome e surgiu o VSD. Fomos crescendo. 

  • Pelo visto, o Arena da Cultura foi bem importante para o grupo se estruturar de maneira mais profissional. Como foi a experiência de vocês com o programa?

Cal: O Arena da Cultura era um projeto cultural municipal que girava pela cidade, incluindo a região Norte. Não era específico de hip-hop, os participantes vinham de todas as áreas culturais. Tinha que interagir e conhecer as pessoas, então eles juntavam a gente do rap com o pessoal de outra área e falavam: “Faz alguma coisa aí”. Era tipo um TCC: nós fazíamos algum trabalho juntos e apresentávamos no dia. E a gente se virava. Fazia coisas nada a ver. E teve bom resultado, porque viramos amigos de umas tribos que não tinham nada a ver com a gente. Temos os contatos dos caras até hoje. Quando a gente se encontra, é sempre aquela mesma pegada, aquela mesma energia.

Edd: Nós convivemos por muito tempo no Centro de Apoio Comunitário (CAC) Providência. Todo sábado, às 14h, a gente ia para lá com o toca-discos debaixo do braço, com mixer e mochila, subindo o morro todo a pé. Dava mais de 2 km de caminhada. Chegávamos lá e ficávamos até às 18 ou 19 horas, se apresentando, ouvindo, aprendendo, e voltávamos para casa. 

Grupo Verdade Seja Dita (VSD). Foto: Divulgação

Cal: Eu aprendi muita coisa de produção no Arena da Cultura. Lá, o pessoal orientava, ensinava técnica vocal, postura de palco, tonalidade de canto. Também nos ajudavam a entender a logística, a aprender a andar no palco, a observar os movimentos e tudo mais. Eles ajudaram demais. 

Eu tocava violão e um pouco de guitarra, por isso entrei no grupo fazendo algumas partes melódicas. Mas senti que esse tempo de ficar só no violão não estava com nada, meu negócio era ir para a frente e falar, soltar o verbo. Então eu assumi, puxei a frente, comecei a produzir. Em algumas questões, discutia música para escrever. Comecei a estudar mais a língua portuguesa para trabalhar a construção gramatical, e até mesmo para saber interpretar o que a gente estava querendo passar. Eu senti que gostava de escrever ainda na escola, através dos trabalhos de poesia. Até ganhei alguns concursos nessa época. O Vinícius, que depois também entrou no VSD, era da minha sala. O Edd já estava mais inserido há mais tempo no movimento. Eu entrei nesse período, e a gente firmou. Viramos grupo artístico, apresentando, fazendo show e tal. Nós mesmos começamos a produzir nossas músicas, investindo também, fazendo os rascunhos de melodia, produzindo as guias, e foi indo. 

Edd: O Cal é muito artista. Ele aprendeu a andar de skate rápido, violão rápido, trançar cabelo. A namorada dele trançava, mas não quis ensinar. Ele virou uma noite inteira até aprender. Faz trança maravilhosamente. Ele é muito assim, estuda muito a teoria para depois executar direitinho. O Cal tem conhecimento até demais. Por um tempo, a banda teve três meninos e uma menina no vocal e eu como DJ. Aí, o menino que foi fundador do grupo junto comigo saiu e entrou outra menina. Ficaram dois casais de MCs e eu como DJ. Até 2016 foi assim.

  • Onde o VSD se apresentava?

Cal: Nós tocamos com o VSD em um evento chamado Hip-Hop in Concert, que aconteceu no Teatro Francisco Nunes, do Parque Municipal. Era um projeto da prefeitura com o Flávio Renegado. O formato era de edital competitivo e tinha um vencedor. Nós fomos o único grupo a participar das três edições. Nos primeiros dois anos, o único voto era do público, mas nós não tínhamos público. 

Edd: Os caras que eram conhecidos, independente do que apresentavam, já tinham vantagem com o público, e ninguém que a gente conhecia foi. No segundo ano, saímos na semifinal. Eu me lembro como se fosse hoje. O campeão levou dois ônibus cheios de gente. Inevitável que quem fizesse mais barulho ganhasse. O único ano que teve jurado, nós ganhamos, em 2008. Ou seja, só perdemos para o público.

Cal: Mesmo assim, na nossa visão, foi top demais. Com poucos anos de pista, conquistamos um público pelo show que nós levamos para o palco. A gente fazia introdução, mudança de um para o outro, trabalhava iluminação, projetores…

Edd: Cada um apresentava um show completo. Sempre tivemos essa visão, que veio do Arena da Cultura. Pensávamos: “Como a gente vai entrar no palco? Vai ser desse jeito, a luz vai vir assim”. Essa é uma visão que os músicos não têm. Quando os jurados avaliaram, nós ganhamos. E, assim, a gente foi se apresentando na cena. Cantando em cima da track. Arriscamos uma fase com banda, mas também não foi, não. 

Também nos apresentamos no FIT – Festival Internacional de Teatro por duas vezes. Em uma delas, levamos um ator para fazer a introdução do nosso show e interagir durante uma música com a Rose. Ele era um personagem para quem ela cantava a música, uma coisa diferente mesmo. A gente pensava nessas questões, a gente era diferente.

  • Como foi a participação de vocês no projeto Vozes do Morro? 

Edd: O Vozes do Morro era um projeto maravilhoso, que tinha uma metodologia que depois tentamos reproduzir no ACN, de tentar sempre buscar novos artistas. Nós participamos do primeiro ano do Vozes do Morro. O programa lançou vários CDs. Eu tenho um CD nosso que está por aqui. Porém, é uma coletânea, com músicas de vários artistas. Nesse CD, está a música “Nossos Ancestrais”, escrita pelo HK e gravada em 2008. Essa música abriu muitas portas para a gente, mesmo. 

O HK era muito talentoso. Para escrever a música ele pegou o Dicionário Aurélio e foi ligando as informações de tribos, de moedas e tal e transformando em rima. Em uma parte da música, ele usa os bairros da Zona Norte como tribos. “BH minha cidade, cardeal o ponto é norte / Quebrada Vila Clóris correndo risco de morte / Não é só, tem mais aldeias que eu vou citar”. Fala do Floramar, da Vila Biquinha, do Planalto, fala um monte de coisas. O pessoal da Vila São Tomaz, que fica aqui do lado, até cobrou: “Não tem o São Tomaz na letra”. Só que São Tomaz é da Pampulha, não é regional Norte.

  • Essa questão do pertencimento e fortalecimento do lugar de onde vieram e onde vivem é muito presente no trabalho de vocês, não apenas nas músicas do Verdade Seja Dita, mas também no festival que criaram, certo? Pode contar para a gente como nasceu o Atitude e Consciência Norte?

Edd: A regional Norte não tinha muito evento para a gente se apresentar. Só a Arena da Cultura, que abraçava mesmo essa questão cultural. Na Vila Biquinhas, não tinha outros grupos de hip-hop, não, mas na região Norte, sim. No bairro Aarão Reis, tinha um grupo famoso, bem destacado na época, chamado Contraste. Nós vimos que não tinha uma veia do hip-hop e do rap na região Norte de Belo Horizonte. Aqui é muito próximo das quadras do Vilarinho, e por isso tem muito funk. Na verdade, o funk ainda predomina em qualquer lugar, mas, na época, predominava ainda mais. Com um ano de formação do Verdade Seja Dita, em 2004, nós começamos a ter a ideia de fazer o ACN. Já havia bastantes eventos em outras regionais, e aqui na Norte não tinha nada. Até hoje só tem o nosso, além das batalhas de MCs, que é uma outra vertente. 

Nós sempre fomos ativos no hip-hop, e decidimos criar um evento porque a gente não recebia muito convite para tocar. Precisávamos mostrar nosso trabalho e também gostaríamos que o pessoal conhecesse nossa região, que viessem visitar. A partir disso, veio a atitude de fazer e a consciência para ser feito: daí o nome Atitude e Consciência. A primeira edição chamava Atitude e Consciência, ainda sem o Norte. 

Um dos integrantes do nosso grupo é hemofílico, e, através do Hemominas, conseguiu um curso de produção cultural para a gente. Isso trouxe essa coisa de fazer curso, de escrever edital, de especificar objetivos, justificativa, tudo mais, que é muito importante conhecer. Disso, ele fez a parte escrita e eu corri com apoios. A primeira edição do evento foi realizada na Escola José Maria dos Mares Guia, ao lado do CRAS [Centro de Referência de Assistência Social]. Conseguimos o som e o espaço através de um contato com a prefeitura. A padaria do São Bernardo forneceu lanche para os convidados. Um colega meu que era designer fez a peça gráfica. E a Gráfica Lutador, que fica aqui próximo da gente, cedeu os impressos. Eu fui lá, bati na porta e, por incrível que pareça, eles têm uma área de filantropia. Levei o projeto impresso para eles, conheci a pessoa responsável e foi super proveitoso, fizemos peças maravilhosas. A primeira edição deu um público bom, mas nós temos pouquíssimas fotos. A gente não teve um fotógrafo, não pensamos nisso.

Não pegamos um centavo de patrocínio, foi tudo apoio. Assim realizamos a primeira edição. Convidamos várias pessoas… Nessa época, e por muitos anos, tinha essa de “vou convidar alguém para tocar”, e essa pessoa ia tocar sem cachê e sem transporte. Para fortalecer a cena mesmo. A gente saía daqui, por exemplo, para ir para o bairro Icaivera, para o Barreiro, para Santa Luzia, para o Aarão Reis… Em todos os eventos, eles também vinham. E assim eram as trocas. 

Essas trocas não continuam acontecendo muito. Não foram renovando pessoas tipo nós, que pensamos no coletivo, fazemos eventos para o coletivo. As pessoas descobriram o caminho da Lei de Incentivo à Cultura, mas a maioria trabalha para uso próprio. Nós sempre pensamos no coletivo, mas isso não está sendo renovado. A gente sempre fez para fazer para a cultura hip-hop. E a gente tem a preocupação de sempre convidar artistas diferentes. 

  • Como funciona a estrutura do festival?

Edd: A primeira edição foi no dia 26 de setembro de 2004. Nesse primeiro ano, nós fizemos cinco festivais, um em cada bairro. Chutamos o balde mesmo. Nessa época, a Cemig chegava com o ponto de energia às duas horas da manhã no dia do festival. Eles falavam: “A gente vai sábado”, e a gente não sabia nem mesmo que horas eles viriam. O evento era no domingo, nós chegávamos no sábado e ficávamos direto, durante umas 14 horas. E, no dia seguinte, todos trabalhavam sem parar, o dia inteiro. Às sete horas da manhã tinha que trabalhar.

Nessa época, nós distribuímos, meio organicamente, as funções de cada um na organização. Eu fiquei como diretor-geral; o Cal ficou responsável pela questão burocrática; a Rose, como promoter, lidava direto com os artistas, informativos, colhia material etc.; a Neném fazia o rolê de campo, que era informar a comunidade que teria o evento, mapear, “fulano ali achou meio ruim”, pois a gente sabia que poderia ter uma denúncia e já mostrava antes que estava aprovado, que tinha que fechar a rua quando ia acontecer; e o HK ficava com a parte das peças gráficas, o design e tal. 

Essa questão do campo, por exemplo, de visitar: a gente faz um ofício com o número do projeto aprovado e entrega nas casas informando, para evitar qualquer qualquer dúvida, principalmente na região em que a gente não mora. Sobraram, nas últimas edições, eu, a Rose e o Cal. 

Ainda tinha a divulgação. Hoje você seleciona uma data, vê na internet e tem muita coisa acontecendo. Antes, muito evento não tinha boa divulgação. A gente rodava nos eventos de mão em mão, vai na mão mesmo e você estava divulgado.

Cal: O projeto tem um alicerce muito forte, construído com o tempo. Foi uma grande luta para chegar ao formato que ele tem hoje. E para manter esse formato também é uma luta, porque a luta é sempre… Nos primeiros anos, a gente fazia o festival de forma independente. Nós dormíamos em qualquer lugar, ficávamos sem comer, virava a noite… 

Edd: Até os outros que não fazem mais parte do projeto, enquanto estavam na organização, entregaram muito trabalho, graças a Deus. Estamos aí graças a todo mundo. Graças à vontade de ver a coisa acontecendo. Graças ao coletivo.

Realização do Atitude e Consciência Norte (ACN) no Centro Cultural do São Bernardo, em 2007. Foto: Acervo ACN

Atualmente, o Cal é responsável pela parte de licenciamento, administrativo, prestação de contas, todas essas coisas. Para resolver contratos e assuntos gerais do ACN, devem falar com ele. E, hoje em dia, muita coisa de organização melhorou. Por exemplo, tem um rapaz da Cemig que trabalha só com isso. Ele vem, tipo, duas semanas antes e já instala as chaves e o disjuntor no lugar certinho. A gente o paga e ele paga o boleto da Cemig. Então tem muita coisa que estamos lidando menos diretamente. Mas boa parte da organização ainda é o Cal que resolve: PM, guarda municipal, bombeiros, banheiro químico, ambulância etc.

Na parte dos recursos, estamos sempre tentando editais para financiar o ACN. O festival recebeu apoio da Lei de Incentivo à Cultura pela primeira vez em 2007. Com ajuda do Marco Lobo, sentamos juntos e escrevemos nossas ideias, o que a gente fazia, o que a gente queria, o que a gente defendia. Mandamos e foi aprovado rapidão. Nunca tínhamos trabalhado com tanto dinheiro. Fizemos um barulhão todo, muito louco.  Eu não morava aqui ainda, mas a Vila Biquinhas sempre foi o ponto, e o festival aconteceu na rua de cima. A gente se mantém aqui, porque virou o nosso ponto mesmo. Eu sou daqui, ele é daqui, o outro rapaz que começou era da rua de cima. Três são daqui e nós éramos cinco. Os ensaios eram aqui. E a região Norte ainda é muito carente de eventos na área da cultura.

  • Mais uma vez, a questão do território e do espaço de vocês aparece com muita força. 

Edd: Eu moro na Vila Biquinhas há 25 anos, costumo dizer que fui criado aqui. Moro nessa casa há 16 anos, e, antes de morar aqui, morei alguns quarteirões ao lado, antes da ponte, onde tem um subidão. Vim do interior para a cidade com 26 anos. Vi políticos caminharem com a população e prometerem a limpeza do córrego diversas vezes. Isso é coisa que a gente viu, coisas com as quais a gente convive. E não tem como ser do rap e não trazer isso, essas ideias, para nossas letras. Temos uma composição chamada “Problemas Urbanos”. A música e o clipe falam disso tudo. Nós estudamos para fazer essa letra, não é uma viagem, não. Você pode cantar essa música hoje e daqui a 20 anos que ela vai continuar mostrando a nossa realidade, principalmente a nossa realidade política. 

Cal: Em alguns shows, gente colocava o hino nacional, eu pegava a bandeira e tal. Porque têm partes da letra que eu coloco uma ideia oposta do que está na bandeira, que é ordem e progresso. Tem uma parte do refrão que coloca isso diante das situações que a gente vive. “Não vejo pátria amada, nem ordem e nem progresso”. “Pátria amada, seja mais gentil”. Ou seja, se você analisar, é uma contraposição da ideia que eles tentam fazer a gente digerir, que é ordem e progresso, que a gente não vê. Então a letra fala dessas questões. Fala da questão da imigração, que gera problemas até mesmo de suicídio. Às vezes, essas coisas estão ligadas a emprego, quando a pessoa sai de um lugar e migra para outro, chega lá e se envolve com bebida e droga. Isso é uma realidade, isso eu li no jornal, tive que estudar, pegar e ler para escrever.

Edd: Mesmo falando da nossa região, essa realidade é geral. Quem mora em uma comunidade de favela, todo mundo passa por isso. A gente teve uma sacada um pouco diferente em relação ao conteúdo das letras. Muitos shows de rap vão falar da mesma coisa, vão ter o mesmo conteúdo nas letras. Nós, não. A gente levava para o show cinco ou seis músicas diferentes. Uma mais questionadora, uma mais emotiva, uma mais zoeira. A gente tinha essa sacada diferente. 

E o hip-hop é um movimento político, principalmente no Brasil. A proposta do rap hoje em dia já não é a mesma de dez anos atrás. Ficou mais balada, mais de ostentação, de degradação da mulher, infelizmente. Mesmo no rap. Na nossa época, era dedo na ferida, atitude e consciência.

Atitude e Consciência Norte (ACN) no bairro Tupi, em 2009. Foto: Acervo ACN
  • Em breve, o ACN vai completar vinte anos de existência. Quais as dificuldades de manter um projeto como esse a longo prazo? 

Edd: São 19 anos que a gente está se mobilizando. Pela primeira vez nós aprovamos nosso projeto na modalidade incentivo – que tem um orçamento maior, apoiado por empresas que recebem dedução fiscal –, até então só havíamos tentado recursos direto do Fundo Municipal de Cultura. Nessa modalidade nova, além de ser aprovado, precisamos correr atrás de incentivo fiscal, bater na porta das empresas e apresentar o projeto de patrocínio. Para isso, precisamos mexer os pauzinhos, porque a lei de incentivo é loteria.

Cal: Eu entendo a Lei de Incentivo como uma sorte, né? Você não sabe se vai conseguir. Mas a gente tem que discutir novas ideias, porque a nossa preocupação hoje, pensando nessa questão da loteria, é que envolve também a nossa vida pessoal. Às vezes você fica dependendo de Lei de Incentivo para poder manter essa catraca rodando e é meio…

Edd: Infelizmente, tem burocracia. Eu aprovo no edital, sei lá, de 2023, mas eu só consigo acessar a verba no início de 2025. Demora bastante, é um ano de burocracia. Por isso que não dá. Mas os caras de 50 anos de hip-hop estão praticamente todos aqui com a gente, e agora nós estamos em vias de entrar no calendário municipal de eventos. Já tem vinte anos de festival acontecendo direto, por isso a gente vai sentar com a secretaria para tentar garantir essa verba e não precisar se preocupar mais com a Lei de Incentivo.

Cal: O que eu penso é que, poxa, um projeto desse… Olha que eu não sou nenhum curador, nenhum analista de dentro desses sistemas, desses órgãos. Mas um projeto do nível desse, um projeto com uma história dessa, um projeto que foi o primeiro voltado para a cultura hip-hop a ser aprovado em Belo Horizonte… É uma coisa histórica, não é um lero-lero. Tinha que ter um reconhecimento melhor.

Tem coisas que até contradizem o que eles falam, que eles cobram, especialmente essa questão da continuidade. Poxa, isso é contraditório. Se eles querem isso, por que não apoiam de uma forma mais estruturada, com recursos mais bacanas para a gente ficar tranquilo? Porque hoje a gente pode ter isso, temos estrutura e história para isso. Eu ia viver mais tranquilo, o Edd ia viver mais tranquilo, nós poderíamos nos empenhar mais nisso e até trazer mais gente para dentro, porque a gente ia se sentir seguro para oferecer uma proposta para alguém que fosse agregar. Só que como você propõe algo para alguém se não está tendo nem para você direito? É meio contraditório o que eles querem que a gente faça… Eu acho que o que falta é isso, uma coisa mais estável. Até para dar um horizonte melhor, porque a gente executa o projeto e não sabe mais como é que vai ser. Fica essa sensação. 

Edd: Eu acho que as leis aprovam muito projeto individual. Não que não mereça, logicamente, mas seria importante valorizar mais os projetos coletivos.  A gente até largaria outras coisas para viver disso. Mas como é que vamos fazer isso sem garantia de nada? Sem segurança alguma. Eu tenho minha vida, eu tenho uma história antes, eu tenho outras coisas. Como é que eu vou fazer isso? Não existe. A estrutura principal do projeto é praticamente a mesma até hoje, porque, se precisar cortar na carne, vai cortar até a carne mesmo.

Cal: Várias vezes a gente tira do nosso bolso, que nem o Edd está falando. Às vezes, a nossa cabeça fica queimando, porque se tiver gerado algum custo extra, o primeiro corte que a gente faz é o da gente – que já não tem direito. Até para valorizar mais os artistas que se apresentam com a gente, porque o cara merece mais do que aquilo que podemos oferecer. A gente sabe disso. 

Edd: Tem muito artista que, quando a gente faz o convite e ele vê a Lei de Incentivo à Cultura, pensa: “Tá cheio da nota”. Aí quando você faz a proposta, é como um bolo pequeno para muita gente. A fatia é pequena mesmo, o bolo é para muita gente. Eu posso fazer um evento foda? Posso. Fodão, um tanto de cachê alto… Para uma pessoa só. Dependendo, chama até mais público, mas vai ficar só ali.

Imagina, olha o tanto de gente que nós já trouxemos, cara. O tanto de gente que passou pelo nosso palco. Artista que passou no nosso palco e que nunca havia tocado em evento grande, nunca tinha se apresentado. É para conhecer o trabalho, para dar oportunidade. Não tem essa de “velha” e “nova” escola, é tudo junto. O pessoal vem e se apresenta. A nossa curadoria é muito aberta. Eu estou aqui acompanhando sempre. Eu mesmo faço a curadoria, estou sempre acompanhando. Basta a pessoa estar ativa ali e eu ver que ela está em um trabalho legal, faço o convite e pronto. Também aposto no trabalho da pessoa. Queremos ver sempre mulheres representando, artistas novos chegando, etc.

DJ Edd no comando da pick-up na edição de 2014 do ACN. Foto: Fernanda Lopes
  • Como pessoas que estão há muito tempo na cena, que conhecem bem a música, o grafite e outros elementos da cultura hip-hop, ao passarem conhecimento para quem está chegando, vocês acabam assumindo um papel de educadores da juventude também. Como vocês enxergam essa experiência? 

Edd: É muito forte. O HK sempre falava, antes de a gente montar o grupo, que é muita responsabilidade você subir no palco e representar ali. E aqui na comunidade, que tem muitas pessoas com poucas oportunidades, a gente sempre se preocupou com isso. O grafite começou com isso. São muitos exemplos nesses anos todos, mas me lembro de uma ex-aluna nossa que se tornou modelo profissional.  Ela me encontrou no Facebook e me mandou uma mensagem falando que as aulas que teve com a gente foram fundamentais para ela ser quem é hoje, agradeceu a cobrança que eu tinha com ela: “pinta, contorna, faz de novo o contorno”. A ideia era essa. O aluno ganhava a oportunidade e era ele mesmo que executava. Você entrava na escola e via os grafites com pouca técnica, mas eram feitos quase 100% pelo aluno. 

O Vozes do Morro mostrou minha cara em Minas Gerais inteira. Eu cheguei na minha cidade como “o menino do SBT”. Os caras me pararam, me abraçaram, aquelas coisas todas. Ou seja, é responsa para caramba. E você vê os resultados de independência no meio artístico, na formação do cidadão mesmo, com que a gente se preocupava. A gente trabalhou muito em escola, já dei palestra na UFMG, na PUC, no UniBH, tudo com o hip-hop. Na Faculdade Universo, demos duas aulas inteiras na Pedagogia, foi muito marcante. Isso é muito vitorioso para a gente. 

No entorno, nos preocupamos em mostrar para a molecada que, andando pelo certo, a oportunidade existe. Porque a rua está cheia de convites ruins, mais fáceis e mais atraentes. É aquela coisa de escolha mesmo. A gente queria ter um resultado maior com as oficinas, shows, palestras e tal. Mas o pouco que temos já é gratificante. 

A comunidade pergunta: “Que dia é o próximo evento?”. A gente faz aqui primeiro ainda, porque sabemos que é garantido. O nosso público é garantido. Começa a montar o sim e o pessoal vem para a rua, já senta na calçada, vai bebendo a latinha ali e é rap. Pode perguntar que você vai ver que ninguém ouve rap, o pessoal é de outro estilo, mas eles sabem a importância do nosso evento, da nossa entrega. Nós por nós mesmo, comunidade para comunidade mesmo. Como eu falei: enquanto tivermos ar nos pulmões, vamos continuar fazendo isso daí, buscando maiores resultados. Não fiquei famosão, estouradão, mas eu sei quem eu fui, quem eu sou dentro da cultura hip-hop e o que eu alcancei, o que eu somei. Nunca diminuí ninguém e nem nada disso na cultura. E estou falando isso pelos meus: falo pelo Cal, pela Rose, pelo HK, pela Neném e pelo Vinícius. 

Francisco Rocha


foi professor de matemática. Trabalha há 22 anos no Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais e há 7 no BDMG Cultural. Acredita que cultura e desenvolvimento se conectam e se completam. No BDMG, trabalhou com micro e pequenas empresas, microcrédito, marketing, ouvidoria e no comitê de pró-equidade. No BDMG Cultural, é coordenador de projetos e patrocínios. Coordena, em parceria com a Fundação Clóvis Salgado, o Prêmio Humberto Mauro – Curtas de Invenção.

Paula Lobato


é arquiteta, designer e editora. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, onde também se formou. Integra a equipe do BDMG Cultural desde 2021.

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