REVISTA nº 11

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Quem canta e dança reza duas vezes

Como em um cortejo simbólico que conecta suas memórias e afetos, os mais velhos da Irmandade das Sete Guardas e da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário nos conduzem por histórias da Festa de Reinado de Itaúna e das pessoas que se dedicaram a mantê-la

Jéfferson Lázaro da Silva Gregório, Paula Lobato, Ceci Nery Batista
30 Set 2023 35 Min
Quem canta e dança reza duas vezes
Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Acervo: Seu Mário

O texto a seguir foi elaborado a partir da fala de Jefferson Lázaro, em conversas com Ceci Nery e Paula Lobato, durante visita aos mais velhos do Reinado de Itaúna. Ao longo do texto, incluímos também, em destaque, depoimentos das pessoas que gentilmente nos receberam para compartilhar suas memórias e histórias: Dilermando Vitor de Oliveira, Rei Congo de Itaúna; Maria Ana de Oliveira Vitor, Rainha Congo de Itaúna; Mário Eustáquio Silvestre, Capitão-mór da Irmandade das Sete Guardas de Nossa Senhora do Rosário; Vicente Salomé; Darcy Salomé; e Joana Darc Ferreira Marra.

A Festa de Reinado em Itaúna começou antes de Itaúna se emancipar. Ou seja, antes de Itaúna virar cidade, já existia a Festa do Rosário – há 283 anos. Eu faço parte da Irmandade das Sete Guardas de Nossa Senhora do Rosário, e venho de uma família fundadora da festa. Minha avó Sãozinha é a Rainha Perpétua da Irmandade das Sete Guardas, e vem trazendo a gente para esse legado. Hoje, ela está com 98 anos, é a rainha mais antiga de Itaúna. 

Sede da Irmandade das Sete Guardas de Nossa Senhora do Rosário (Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos)

Como contam as histórias dos meus familiares, antigamente, os pretos não podiam entrar na Matriz de Sant’Ana e, com isso, não se podia festejar o Rosário de Maria. Onde hoje é a Matriz, na parte baixa da cidade, havia um oratório pequeno com a imagem de Nossa Senhora do Rosário. As histórias que eu escutei dos mais velhos, que vêm formando a minha fé e devoção, contam que toda noite a santa subia para o mirante onde nasceu a cidade de Itaúna. De dia, o padre buscava ela novamente. Para assistir à missa, os senhores precisavam subir uma rua onde também ficavam as meretrizes da cidade. As beatas não gostavam desse caminho, pois seus maridos ficavam olhando para aquelas meretrizes. Assim, a Igreja Matriz de Sant’Ana foi construída em uma nova praça, e essa igreja de cima foi passada ao Rosário. Antes disso, o negro não podia festejar, e nem mesmo entrar na igreja do Rosário. 

Dona Sãozinha, ao centro, com o antigo trono coroado. Acervo Seu Mário

Nessa época, a Irmandade das Sete Guardas recebeu um terreno para a construção da igrejinha, que chamamos de sede, ou salãozinho, pois até hoje não é tida como igreja. É assim que o passado ainda vive no presente. A sede é o lugar onde a Irmandade das Sete Guardas festeja Nossa Senhora do Rosário com a nossa fé, com a nossa devoção, com a nossa profecia. O Reinado é uma festa em louvor à Nossa Senhora. Todos nós agradecemos muito pelas graças que ela nos oferta no dia a dia. Como dizem, quem canta e dança reza duas vezes. É esse o nosso amor pelo Rosário de Maria, pela fé e pela nossa tradição.

Para compor essa história a partir do olhar e das memórias dos mais velhos do Reinado de Itaúna, nos encontramos, em setembro de 2023, com seis deles que ainda estão em atividade: Seu Mário, o Capitão-mór da Irmandade das Sete Guardas de Itaúna; minha prima Joana Darc, que conta a história da família da Rainha Sãozinha; o Rei Congo e a Rainha Conga, seu Dilermando e Dona Maria Ana, que fizeram recentemente 40 anos de coroa; e também Seu Vicente e Seu Darcy, da família Salomé da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, que carrega uma ancestralidade e um grande peso cultural no Reinado da cidade. A seguir, com a ajuda de todas essas pessoas, conto um pedaço da nossa história e da nossa devoção.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Acervo Sãozinha

Rainhas, Reis, Capitães

O Reinado é uma tradição que vem de geração em geração. Comecei o Reinado dentro da barriga da minha mãe. Fui coroado Capitão ainda criança, quando tinha 3 anos – 35 anos atrás. Aprendi com meu pai, e hoje ensino para os meus dois filhos, que também fazem parte do Rosário de Maria. Minha avó Sãozinha foi coroada rainha com 13 anos de idade e hoje está com 98. Minha prima Joana Darc, integrante da Guarda de Candombe Feminina, herdou de nossa avó a responsabilidade pela cozinha da Festa de Reinado, e conta um pouco da história da Rainha Sãozinha: 

Joana Darc
Minha avó nos conta que nasceu em Divinópolis e veio para Itaúna ainda muito menina, com sua família. Sua casa era pequena, no mesmo terreno onde a gente mora hoje, mas naquela época não tinha casa nenhuma no entorno. Ela buscava água lá embaixo, no Poção. Um tempo depois, ela conheceu o meu avô, se casou e teve 14 filhos, dos quais, hoje, apenas cinco estão vivos. Nossa família foi crescendo e construindo mais casas aqui no terreno, pros lados do fundo… Aqui, minha avó criou a família dela, e aqui estamos até hoje.
          A guarda da família foi criada em Itaúna. Nossa bisavó a coroou como Rainha de Santa Efigênia quando tinha 13 anos. Hoje em dia, nossa avó é Rainha de Santa Efigênia e também Rainha Perpétua, pois é a mais velha do reino. A tradição vai passando de mãe para filho e vai indo, vai indo… Na casa da minha avó, todos os seus filhos são congadeiros.
          Vó Sãozinha nos conta que dançava e fazia o festejo na igreja de baixo, logo quando o bispo Dom Cabral proibiu as festas de congado. Aí, seu Guaracy doou um pedaço de terra para a Irmandade onde hoje é a nossa sede, para nós não ficarmos sem fazer a festa. E ela, muito pequena, carregou água lá de baixo, do açude, na cabeça, até lá em cima para construir a sede das Sete Guardas. Ela é a única pessoa viva para contar essa história.

Reis e rainhas visitam a mesa de café de Dona Sãozinha. Acervo Sãozinha

O Capitão-mór da Irmandade das Sete Guardas de Itaúna, Seu Mário, e seu irmão, Seu Levi, foram as pessoas que me coroaram Capitão ainda criança, dentro do antigo quartel da guarda dos moçambiqueiros, que agora é a Guarda Moçambique Nossa Senhora do Rosário, e fui confirmado ao pé da santa, na igreja. Coroar os reis, rainhas, príncipes, princesas e capitães é de atribuição do Capitão-mór.

Seu Mário
Eu nasci em Carmo do Cajuru, onde morei por muito tempo. Venho de uma descendência de escravos que mexiam com congado. Meus avós se mudaram para Itaúna por volta de 1950, e continuaram participando das festas de congado, de Reinado e de cruz que existiam na época. Crescemos nessas festas, que participo desde 1953 até hoje.
          Eu comecei muito novo. Acompanhava os meus pais e meus avós desde os 3 ou 4 anos de idade, e fui indo. Sempre tendo com as pessoas mais velhas, conversando com elas, com os antepassados, e passando de geração para geração. A gente ouvia o que eles falavam, prestando atenção, até chegar na gente. Por volta de 1972, com o falecimento do Capitão-mór, o Senhor João Carolino, eu e meu irmão começamos a tocar a festa de Reinado em Itaúna. Com o falecimento do meu irmão Levi Machado, eu virei o Capitão-mór.

Rei Congo Dilermando e Rainha Conga Maria Ana.

O Reinado é feito em prol de Senhora do Rosário, a rainha do céu. Não existe uma rainha da Terra maior que a Senhora do Rosário. Todos os reis e rainhas coroados, seja com o título de Santa Efigênia, de Nossa Senhora das Mercês, de São Benedito, ou de outro santo, são representantes da coroa de Angola, dos povos africanos. Sua coroa representa os Reis de Angola, que trabalham para a Nossa Senhora do Rosário. Seu Dilermando e Dona Maria Ana, Rei Congo e Rainha Conga de Itaúna, nos contam um pouco de sua história:

Dona Maria Ana
A Festa do Reinado, para mim, é uma festa de muito respeito, de muita religião. Nos unimos para rezar e louvar Nossa Senhora do Rosário, uma santa muito milagrosa. Muita gente alcança a graça com ela, dependendo da fé. Eu respeito muito. Me envolvi com o Reinado por intermédio do meu pai, ainda em Igaratinga, onde nasci, e sou devota desde criança. Eu não tinha aquela fé, não sabia o que era. Mas acredito que a fé aumenta com o tempo, com as coisas que acontecem com a gente. Não sei explicar. Quanto mais tempo passa, mais a minha fé aumenta.
          Na região, há uma tradição do Reinado, a tradição dos cruzeiros, e em Igaratinga o cruzeiro da minha avó, mãe do meu pai, existe até hoje. Quando os missionários começaram a arrancar os cruzeiros da região, o único que restou foi esse. Ele está lá até hoje, e no mês de junho fazem a missa e celebram. Eu não tenho como falar muito de Igaratinga, porque vim para Itaúna ainda criança, então carrego mais lembranças daqui. Dona Sãozinha era uma pessoa muito boa, mas brava… Eu devia obrigação a ela, porque ela me ensinou o regulamento do Reinado, o funcionamento da festa, me orientou. Então fui pegando aquela fé. E seu marido, Seu João, era um rapaz muito sério, mas fazia uma festa muito boa.
          Nós estamos aqui como instrumento, somos quem leva essa fé. Eu comecei a rezar o terço para Nossa Senhora nas festividades do Reinado por causa da Dona Maria Josefina. Um dia, quando ela estava embaixo das bandeiras, me chamou para conversar e entregou o terço para que eu rezasse no lugar dela. É dever da Rainha Conga rezar o terço durante a novena. Na época, eu subia todos os dias de casa até a Igreja do Rosário, do dia 1º ao dia 14, rezando o terço às 19 horas da noite. Hoje, muitas vezes, prefiro rezar em casa. Há pouco tempo, eu caí e trinquei dois ossos. O médico falou que eu não iria mais andar. Mas só quem mexe como a gente mexe sabe o tanto que Nossa Senhora é milagrosa. 

Seu Dilermando
Eu comecei o Reinado há 60 anos, aos 4 anos de idade, como integrante da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, na Guarda de Congo do Seu Joaquim Procópio. Meu pai falava: “Quem dá o bom, dá o ensino. Deixa eu educar esse menino”. Nossa história é gostosa porque tivemos uma educação rígida, mas também lembramos de tudo aquilo de bom que a gente aprendeu, coisas que devemos pôr em prática. Muitas vezes, o que faz falta para o ser humano, principalmente no Reinado, é um conselheiro espiritual. Alguém que fale: “Filho, isso aí não dá certo”. Dentro do Reinado, é muito importante ter uma pessoa em que você tenha confiança.

Em Itaúna, existem duas irmandades, a Irmandade das Sete Guardas e a Irmandade da Senhora do Rosário. A Guarda de Congo Virgem do Rosário é organizada pela família Salomé e integra a Irmandade da Senhora do Rosário. Seu Vicente é o Capitão e seu sobrinho, seu Darcy, Primeiro Capitão.

Seu Vicente
Nasci em Itatiaiuçu, onde meu pai tinha uma guarda de Massambique em que eu já brincava, e ele começou também uma guarda de Congo. Eu sou da família Salomé, uma irmandade que já foi muito grande. Aprendi o congado com o meu irmão, junto com os mais velhos. Meu pai morreu há muitos anos, quando eu ainda era novinho. O meu irmão Joaquim Salomé mexia com Folia de Reis, com congado. Depois que ele morreu, eu assumi seu lugar como Capitão da guarda. Carrego o bastão do meu avô, um Capitão antigo, que eu não conheci.
          Quando casei, minha mulher não gostava que eu participasse do Congado, que eu dançasse. Um dia na igreja, peguei na mão de Nossa Senhora do Rosário, e pedi: “Nossa Senhora do Rosário, tem misericórdia de mim, me ajuda a controlar minha vida”. Nós dois fizemos o mesmo pedido diante da Nossa Senhora. Passaram-se uns 15 dias e eu ganhei na loteria, resolvemos nossas dívidas. Desse dia em diante, ela liberou. E na vida toda, eu mantive minha fé em Nossa Senhora do Rosário.

Seu Darcy
A nossa guarda, primeiro, era praticamente só família. Mas a gente teve um baque. Morreram quatro ou cinco pessoas na guarda. Meu pai era bandeireiro, Capitão, tocava sanfona, já foi presidente. Dançamos na parte de baixo da cidade de Itaúna.
          Com 8 anos de idade eu fui para Gutierrez para trabalhar. Trabalhamos fora e eu voltei para Itaúna com 18 anos. Daí para cá que eu comecei. Seu Vicente Brandão tinha uma guarda perto de onde meu pai morava, na São Vicente. Eu acho que os irmãos dele quase todos trabalharam e moraram lá. Nossa família começou a ajudar o Seu Brandão com o Reinado. Ele tinha os dois, o Congo e o Massambique. Um dia ele chamou o meu pai e disse: “Vamos fazer um negócio, você toma conta do Congo e eu tomo conta do Massambique”. Eles se resolveram e assim a gente fez.
          Hoje, graças a Deus, praticamente todo mundo na rua conhece a gente. “Nossa Senhora, vocês têm uma guarda bonita demais e isso não pode acabar. Eu vou lá por causa de vocês, porque vocês são uma guarda que não tem tonto nenhum no meio, não vê ninguém cambaleando na guarda, bebendo…”. Uma coisa que meu pai pegou no nosso pé foi isso, de evitar barraco, de evitar ficar bebendo pinga nas barracas. Porque você está ali para cumprir uma promessa, para louvar as coroas santas. Nós temos a guarda há uns 58 ou 60 anos, com a documentação certinha. 

Nossa Senhora surgiu na ilha do mar

O Rosário é simples. Vivemos mandamento, fundamento e sacramento. Na hierarquia do Reinado estão Nossa Senhora do Rosário, Capitão-mór, Rei Congo, Rainha Conga, Rainha Perpétua, Príncipe, Princesa, Capitão, General e Soldado. O Rosário é a nossa monarquia, e as guardas são o batalhão desse Reinado. 

O Capitão-mór do Reinado de Itaúna, Seu Mário, conta as origens do Reinado e sua relação com a fé e devoção à Nossa Senhora do Rosário.

Seu Mário em seu quartel. Acervo Seu Mário

Seu Mário
Nós convivemos muito com os mais antigos, com as pessoas mais velhas, sempre escutando o que eles falavam, suas ideias. A história do Reinado começa com a história de Nossa Senhora do Rosário. Nossa Senhora subiu ao céu, foi coroada como Rainha do Céu, da Terra e da Humanidade. Ela desceu à Terra na Costa de Cabinda, da província do Rio Congo, na África.
          Os negros viram Nossa Senhora na Ilha do Mar e conversaram com o senhor do engenho. O senhor chamou os músicos, que tentaram tirá-la da Ilha, mas não conseguiram. Os negros e negras, que na senzala gostavam de tocar tambores e dançar ao redor da fogueira, acenderam uma fogueira na beira da praia, tocaram tambores e começaram a dançar. Nossa Senhora se agradou com aquilo e começou a querer sair, mas não saiu. Essas pessoas que dançaram ao redor da fogueira eram do Candombe, mas Nossa Senhora não saiu do mar com eles.
          No dia seguinte, os escravos pediram autorização ao senhor do engenho para produzir instrumentos musicais, para tocar para Nossa Senhora e ver se conseguiam tirá-la de lá. O senhor de engenho sabia que eles não tinham conseguido tirá-la no dia anterior, então os autorizou. Ele deu couro de bezerro para os escravos, que cortaram troncos de madeira, construíram os instrumentos, fizeram uma fogueira para afiná-los e se separaram em dois grupos: um grupo de pessoas mais velhas, que formou o Moçambique, e outro de pessoas mais novas, que formou o Congo.
          Esses grupos de Moçambique e de Congo foram formados para dançar em louvor a Nossa Senhora, para ver se ela sairia. O Congo tocou e dançou, Nossa Senhora balançou, quis sair, mas não saiu. Quando o Moçambique chegou, Nossa Senhora os acompanhou. Nisso, eles fizeram um estandarte, colocaram Nossa Senhora em cima e continuaram a caminhada. Já estava chegando a noite, e o caminho entre a Ilha do Mar, a praia, e o casarão do senhor do engenho era longo. Eles pararam, comeram alguma coisa, cortaram umas madeiras, fizeram um ranchinho, fizeram uma mesinha, Nossa Senhora sentou lá em cima, e ali eles passaram a noite.
         De madrugada, por volta de cinco horas da manhã, com o Sol querendo nascer e a Estrela matutina no céu, começaram a viagem de volta, caminhando até o casarão onde o senhor do engenho deles vivia. Eles chegaram um pouco mais tarde, quase ao meio-dia, porque o caminho era longo. O senhor ficou irritado com isso e mandou levantar o chicote para bater neles. Mas quando levantaram o chicote, a lágrima desceu no rosto de Nossa Senhora e ele não conseguiu bater nos escravos. Dessa data em diante começou a devoção do Rosário.

Uma cantiga fala assim: 

“Nossa Senhora do Rosário, quando o mar apareceu,
negro na beira da praia, ajoelhou.
Branco batia em negro, Nossa Senhora chorou.
Ei, branco batia em negro, resolvi sua questão.
Nossa senhora chorou. Suas lágrimas caíram no chão.
Foram tantas águas que brotaram.
Tamborete sagrado, com licença”.

O lamento conta essa mesma história: o negro estava levando Nossa Senhora, branco mandou bater, Nossa Senhora chorou. O Brasil é um lugar com abundância de águas, e isso vem da lágrima de Nossa Senhora, que se espalhou pelo continente. Nossa Senhora teve misericórdia naquela hora, e por causa do milagre, brota água por aqui.No Brasil, o Reinado nasceu em Vila Rica, hoje a famosa Ouro Preto. De Vila Rica, o Reinado foi para Itaúna e, daí, se esparramou por Minas Gerais. 

Seu Mário
Em Santana do São João Acima, distrito que depois se tornou Itaúna, um senhor chamado Júlio Antônio, de apelido Julião, viu uma estrela diferente das outras, mais cintilante. Encantado, teve a ideia de formar um Moçambique. Hoje, graças a Deus, temos o privilégio e a honra de estar tocando nesse mesmo Moçambique de Nossa Senhora do Rosário, o mais antigo da região, com aproximadamente 283 anos. Conversando com Manuel Pinto de Madureira, outro escravo, o senhor Julião resolveu também formar a Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia. Essas foram as duas primeiras guardas da região, mas, hoje, a Guarda de Congo não existe mais.
          Entre 1750 e 1900, o Reinado foi celebrado em Itaúna no último domingo do mês de outubro. Antes disso, existia um cemitério na parte alta da cidade, todo cercado de pedra, com um oratório e uma cruz, que está lá até hoje. O cemitério foi desativado e a construção da igreja do Rosário foi iniciada em 1750. Ela levou 15 anos para ser construída, pois os escravos que a construíram só trabalhavam em suas horas de folga. Em 1765 aconteceu a primeira missa, realizada já na igreja, pelo Padre José Teixeira. E assim continuou-se a tradição da Festa do Rosário.
          Com a emancipação da cidade, passaram a fazer a festa de Reinado no dia 15 de agosto, que foi o dia em que Nossa Senhora subiu ao céu – a Assunção de Nossa Senhora. A festa foi feita até 1930, quando o Bispo Dom Cabral ordenou o fechamento da igreja. O bispo queria calar os instrumentos, não queria que os negros cultuassem Nossa Senhora do Rosário.
          O presidente e o chefe do Reinado na época, senhor João Criolino e senhor José Vilela, se juntaram, foram de casa em casa na cidade, abriram uma associação com as guardas e financiaram a construção da Irmandade das Sete Guardas. Em 1930, os congadeiros fizeram a festa do Reinado com a igreja fechada. Quando a festa terminou, eles se uniram e arrecadaram um dinheiro para a construção da sede das Sete Guardas. O pessoal pediu ao prefeito para ceder um pedaço de terra, e a prefeitura fez a doação de 900 m² onde foi construída a sede, ao lado da igreja do Rosário onde eles não podiam dançar. 
          Com a saída de Dom Cabral, em 1948, o novo bispo liberou o uso da igreja pelos reinadeiros. Nesse momento, aconteceu uma divisão entre as guardas. Um bocado de pessoas queria voltar a frequentar a igreja antiga e outros queriam ficar no prédio da sede. O que aconteceu? Nós, o pessoal que festeja na sede, ficamos aqui em cima. A Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário, que foi o primeiro Moçambique do município de Itaúna, permaneceu na parte de cima da cidade. Já o Seu Joaquim formou uma Guarda de Congo e uma Guarda de Moçambique e ficou na Igreja do Rosário. O Seu Vicente Brandão formou uma Guarda de Moçambique e uma Guarda de Congo e também ficou na igreja de baixo. E o Seu Antonio Calixto já tinha uma Guarda de Congo, e essa Guarda continuou lá. Então, ficaram cinco guardas na igreja de baixo. 

Meu avô, João Luiz Bento, conhecido como João Criolino, não achava certo os negros não poderem entrar na igreja. Quando Dom José Carlos liberou para os negros voltarem a fazer a festa e entrar na igreja, a associação das Sete Guardas já estava montada, mas ninguém quis voltar a entrar na igreja. A Irmandade das Sete Guardas tem hoje, de registro, 82 anos.

Crianças na Guarda de Candombe Feminino. Acervo Sãozinha

É a fé que canta

Cada cidade faz o Reinado em uma determinada data. Aqui em Itaúna acontece em 15 de agosto e não muda, mantemos essa tradição. 

Joana Darc
No dia 1º de agosto começa a festa. A abertura é aqui na casa da minha avó. A bandeira de avisos é a primeira a ser levantada. Todas as guardas passam por aqui, beijam a bandeira e vamos buscar as outras. É o Moçambique que leva a bandeira de coroa, que a gente chama de bandeira de aviso, para a sede do Rosário.
         A gente tem o terço, a novena, e, nos sábados dos dois primeiros finais de semana, também fazemos o levantamento de bandeira. A novena termina dia 14, e no dia 15 celebramos a Assunção de Nossa Senhora do Rosário, dia em que ela foi coroada aos céus.

Seu Mário
Para fazer a abertura do Reinado, começamos pelas orações. Quando levantamos a primeira bandeira e fazemos a primeira oração, estamos ligando o céu com a terra. Levantando aquela bandeira, nós pedimos proteção para a gente, para os donos de guarda, para os dançadores, para a família dos dançadores e para todos aqueles devotos de Nossa Senhora.
          Nossa festa acontece no alto do Rosário, em um lugar que não é fácil, e graças a Deus, nunca aconteceu nada. Não acontece uma briga, uma desavença, ninguém passa mal, ninguém fica doente. Às vezes a pessoa está doente, mas Nossa Senhora dá bênção àquela pessoa, ela melhora e continua. A bênção vem do céu. Se a gente não tiver uma ligação com Deus, com o sagrado, a coisa não funciona. O Capitão-mór é como um altar, ele tem a ligação entre o céu e a terra, a ligação com o sagrado. Ele conversa com Deus, com Nossa Senhora e pede bênçãos.
         15 de agosto foi o dia em que Nossa Senhora foi coroada Rainha do Céu, da Terra e da Humanidade. Então, a última bandeira é levantada dia 14, e levantando a bandeira começamos o Reinado com a proteção do céu, porque os santos estarão sempre olhando para a gente. Esse é o significado do levantamento de bandeira.
          No encerramento da festa, fazemos o agradecimento com o descimento das bandeiras. Depois disso, fazemos as coroações e descoroações de Rei, Rainha, Príncipe, Princesa, Rei de Promessa, Rainha de Promessa… Encerramos agradecendo à Nossa Senhora por aquela festa ter sido bonita, sem problemas, com todo mundo feliz, com saúde, com proteção dos céus. Essa é a finalidade da festa do Reinado.

Seu Vicente
A guarda da Irmandade de Senhora do Rosário tem o compromisso de ir à missa Conga no dia em que vai levar a santa para o Rosário. Ela levanta suas bandeiras de aviso a partir do 1º de agosto, e avisa a cidade que a festa está chegando.
          As bandeiras ficam na casa dos mordomos. No dia 1o, levantamos a bandeira de aviso de São Jorge, guerreiro. Fazemos a procissão no primeiro domingo de agosto, levando a santa para a igreja. No dia 14, levantamos as últimas bandeiras e, no dia 15, já é a grande festa, o dia todo em prol de Senhora do Rosário: dia de cumprir promessa na igreja.
          O cortejo ajuda cada um que, com fé em Nossa Senhora do Rosário, fez os seus pedidos e suas promessas. Esse é o intuito das guardas, ajudar as pessoas a pagarem suas promessas. Tem um canto que fala: “Essa guarda foi formada para puxar coroa. Essa guarda foi formada para puxar coroa”. Tem outra música dessas que fala: “Eu vim aqui, mas não foi à toa. Eu vim aqui para puxar coroa”. Essas duas cantigas têm o mesmo sentido. Eu sou danado para fazer música. Tem guarda da festa de cima que canta as mesmas músicas que nós cantamos aqui na festa de baixo, e nós também cantamos algumas iguais. Isso aí não tem separação.

Para pagar as promessas feitas, as pessoas entram na igreja, onde recebem uma coroa em suas cabeças, e saem atrás da guarda, rezando, fazendo oração, pedindo a Deus, pedindo à Nossa Senhora, agradecendo a bênção que recebeu. O pessoal dá uma, duas, três, quantas voltas quiserem ao redor da igreja.

Eliete, sobrinha de Dona Sãozinha. Acervo Seu Mário

Esse é o papel das guardas, ajudar a pagar as promessas. Ajudamos a pagar um pecado que não é nosso, uma promessa que não é nossa, então acumulamos um cansaço físico e um cansaço espiritual. A guarda acompanha todas as pessoas que estão pagando promessa. Enquanto tiver coroa pagando promessa, tem guarda rodando. Então, se derem 50 voltas, nós damos 50 voltas. Geralmente, quando o cortejo acaba, a guarda continua rodando em volta da igreja. Vamos intercalando, uma guarda sai para almoçar e outra fica, para não faltar a tradição de ter a guarda ajudando as pessoas a pagarem suas promessas.

Joana Darc
As guardas vêm tomar café em nossa casa todo dia 15. A minha avó fez a promessa de que, enquanto vida tivesse, ela daria para todos um café ali na rua. O café é colocado a partir de 7:30: bolo, biscoito, essas coisas que a gente consegue fazer, e também a escultura de Nossa Senhora que a minha avó comprou para fazermos a nossa procissão. Depois disso, colocamos a santa no cortejo. Todas as rainhas e reis vêm para cá e a procissão para o Rosário sai daqui. Hoje, a minha avó não dá mais conta de acompanhar a pé, por causa da idade, mas ela vai no carro.
          Depois, as guardas descem para almoçar aqui na casa dela. Tem almoço para todo mundo. Geralmente, as guardas daqui almoçam com a gente, enquanto algumas almoçam em outros quartéis, mas as portas estão abertas para quem quiser. Recebemos muitos visitantes, que também almoçam aqui. Graças a Deus, minha avó fez muitas amizades na cidade, e vêm todos comer aqui no dia 15.
          Nos dias de festa, a gente parece estar no ar. É muito corrido. Se eu não falar que é cansativo, eu estou mentindo. Mas quando você vê tudo pronto, vê a beleza que é, acho que Nossa Senhora passa mal. Aqui, a vovó nos ensinou a fazer de tudo, graças a Deus. A gente foi aprendendo com ela, vendo a luta dela e adquirindo cada ano mais.

A Joana faz a parte mais importante da festa. Essa preparação não tem muita visibilidade, mas, sem esse preparo, quem vai nos alimentar? Imagina ficar o dia inteiro batendo, pulando, cantando e, na hora de tentar comer alguma coisa, não tem porque ninguém fez? A parte da cozinha, aqueles que doam tempo para alimentar os irmãos que estão vindo de fora e a população que vem participar, é uma logística muito grande e muito importante. Nossa Senhora dá a força que a gente precisa e a cozinha multiplica.

Joana Darc
Lembro de muita coisa boa. Minha avó é rainha, mas sempre cozinhou. Ela trabalhava o ano inteiro juntando dinheiro para a festa do Rosário. Ela criava quatro ou cinco porcos, que ela matava aqui mesmo. Lembro dela com os panelões, matando porco, fazendo doce de laranja da terra, doce de mamão, doce de leite, fazendo biscoito… Ela sempre fez esses doces, é tradição da festa.
          A receita é sempre a mesma. Eu sigo a tradição dela. Só não dou conta de fazer os biscoitos todos que ela fazia. Biscoito de polvilho no forno, na folha de bananeira… Minha avó não comprava nada, era tudo feito aqui. Ela sempre teve roça, plantava tudo direitinho, tinha uma horta, tinha chiqueiro, tinha galinha. Hoje em dia, não temos mais horta em casa, porque dentro da cidade não é permitido; e, com 98 anos, minha avó também já não dá mais conta.
          Ela ficava a noite inteira sem dormir fazendo as comidas para deixar tudo pronto, e suas amigas – as comadres, como se falava – cuidavam de tudo enquanto ela ia para o Rosário, porque ela sempre foi coroada e nunca ficou sem ir na Igreja. Mas minha avó deixava tudo encaminhado. Ela passou a organização para minha tia, sua filha mais velha, mas Deus precisou dela lá em cima, e agora eu estou na cozinha. Mas todo mundo ajuda, todo mundo participa. 

As mesuras, o mistério, o sagrado

Além de ser uma festa religiosa e folclórica, o Reinado também é uma festa mística. Vivemos um grande mistério no Rosário e não podemos perder essa essência. A maior rainha do céu e da terra é Nossa Senhora do Rosário, mãe de Jesus e da humanidade. E na festa em prol dela, dançamos as mesuras que fazem o ligamento entre o céu e a terra.

Seu Mário
Em todos os lugares onde Nossa Senhora apareceu, ela sempre pediu para rezar o Rosário. Por que? Porque o Rosário tem todos os mistérios da bíblia e todos os mistérios de Cristo. É porque tem pessoas que não sabem ler, não sabem escrever, mas que sabem contemplar o rosário, sabem os mistérios do rosário. Então é isso que Nossa Senhora quer.

A gente fala em tradição do Reinado porque tem um mistério, e nós temos que saber o mistério. Para manter a tradição, devemos seguir com as mesuras do Rosário. Entender as insígnias da coroa. Saber como coroar um Capitão, como coroar um rei. Muitos hoje não sabem nem a oração para chamar a divindade, não sabem chamar a ligação entre o céu e a terra para aquele momento.

Guarda de Moçambique de Santa Efigênia. Acervo Sãozinha

A coroa de rei e rainha tem a Lua, tem o Sol, tem a Estrela Matutina, tem a Cruz. São os mistérios que carregam as coroas de Rei Congo, de Rainha Conga, de Rainha Perpétua. A gente sai na madrugada, na saída da Lua com a entrada do Sol. Quando chega o dia, ainda tem uma Estrela que brilha, a Estrela Matutina. A lua, o sol e a estrela são signos da força da festividade. Por que tem a Cruz na coroa? Porque ali Jesus jorrou o sangue dele pelo nosso pecado. São coisas que às vezes o pessoal do Reinaldo acha que é insignificante, mas não é, é mistério. É detalhe.

Seu Dilermando
Tudo que eu tenho que respeitar está dentro da insígnia da minha coroa. Portanto, nos cânticos. Analisando uma coroa, é possível ver o significado de tudo: do ser, do mistério do cosmo… Não é fácil carregar uma coroa. Nossa Senhora do Rosário é, para mim, a minha vida. Tudo o que eu sou, tudo que eu tenho hoje, eu me espelho, primeiramente, em Nossa Senhora do Rosário e depois em minha mãe. A fé que a minha mãe tem faz com que a gente seja mais honesto no Reinado, com as tradições, com o respeito religioso, se espelhando na sua fé. 

Seu Mário
A minha ligação com Nossa Senhora é tão grande… Nos dias de festa, eu estou ali no meio, com o coração alegre, contente, organizando as guardas e, para mim, está tudo bem. Graças a Deus, vejo que as coisas estão funcionando direitinho, que Nossa Senhora está abençoando, então está tudo beleza. Eu me preocupo com o mandamento de Nossa Senhora, com a festa. Minha ligação é com Nossa Senhora. A minha intuição, o que eu peço a ela, a bênção que eu recebo, vem do céu.
          É bonito, todo mundo rezando, cumprindo as promessas, agradecendo a Nossa Senhora, fazendo os pedidos. Um dos Reinados que mais tem cumprimento de promessa e devotos de Nossa Senhora do Rosário é o de Itaúna, entre todos os lugares que eu conheço. Para dar uma ideia, o cumprimento de promessa dura o dia todo. As pessoas andam com a coroa na cabeça atrás das guardas e ao redor da igreja o dia todo. Por quê? Porque naquele momento ali estão agradecendo a Nossa Senhora pelas bênçãos recebidas. Aquilo é tudo agradecimento.
          E no momento da festa, tudo que a gente canta é intuição, vem de cima, vem do céu, da divindade. Às vezes, dentro da guarda, vem alguma coisa na cabeça da gente e a gente canta aquilo. Às vezes fazendo oração, em louvor de Nossa Senhora, um agradecimento, um pedido. Muitas coisas vêm de geração em geração, mas a maior parte do que a gente canta é intuição, vem do alto. 

Nossa senhora do Rosário abraça, ela não exclui

O Reinado existe bem antes de Itaúna ser Itaúna. Hoje, Itaúna está caminhando para os seus 122 anos, mas a festa do Reinado já tem 283 anos. É a cultura viva que ainda se mantém como tradição na cidade. O Carnaval era uma tradição na cidade, mas hoje acabou. Também tem o rodeio, que era tradição mas já não é a mesma coisa. Então, a única cultura que se mantém viva ainda, que como tradição não morre e não acabou, é o Reinado. E todo ano falam assim: “o Reinado está acabando”. Não está acabando, porque todo ano, pelo menos aqui na família da minha avó, nascem 3, 4 ou 5 crianças, inseridas no Reinado desde a barriga da mãe. O Reinado ainda é muito forte.

Seu Vicente
Ultimamente, o povo leva as coisas mais ou menos, não é como antigamente. Temos que manter essa tradição para ela não morrer, mas as pessoas não querem aprender. Já está chegando minha hora de ir embora, mas em nossa guarda, hoje, o primeiro Capitão ainda não sabe coroar as rainhas. São coisas simples, mas eu já fiquei cansado. Eu não aguento dançar, tenho dificuldade para parar em pé, então preciso passar o conhecimento para frente.

Seu Dilermando
Muitas vezes dizem: “O Reinado vai acabar”. Vamos dizer, na língua da gira, eu dou é gozeira na pessoa que fala isso. Ô gente, está acabando para quem morre. Quando vemos uma criança dentro das tradições do Reinado, temos que agradecer a Deus, porque alguém está se espelhando em nós, e essa é a minha preocupação de sucessor. Hoje, minha mãe está com 88 anos e eu com 63. Quem nós estamos preparando para ser um sucessor? Quem vai ser um sucessor da Sãozinha? De Seu Vicente? Do Darcy?
          Quando a gente tem uma herança boa, temos a obrigação de mantê-la. E a geração mais nova, com todo o respeito, tem que ser melhor do que nós, porque nós estamos indo e vocês estão chegando. Nós somos culpados por não trabalhar honestamente, sinceramente, dentro das tradições. Quando eu vejo um congadeiro com uma latinha de cerveja, eu fico contrariado, porque nós somos os espelhos dos nossos futuros congadeiros. Eu até brinco: Nossa Senhora está segurando o quê? O Rosário e uma criança. Se nós não segurarmos a nossa criança, ela vai pegar a latinha de cerveja, vai bailar com a latinha de cerveja e achar que no Reinado está tudo normal. Não posso aceitar que seja normal. Não podemos brincar de Reinado. Temos que viver o Reinado dentro das tradições religiosas, e eu sou católico apostólico romano. Eu não posso mudar o outro, mas eu mudo a mim. A partir do momento que as pessoas se espelham em mim, a minha mudança para melhor… o futuro está aí.

Guarda de Moçambique de Santa Efigênia. Acervo Dilermand

Muita gente da cidade não sabe da própria história, e também não procura saber. Nós temos que desmistificar muita coisa sobre a parte religiosa do Reinado para a população. Ainda há uma dificuldade com o sincretismo. A população que desconhece acha que é uma outra parte religiosa, só não é. O Reinado é simples. Ele é mandamento, sacramento e fundamento. Não é difícil viver o Rosário. O Rosário é a simplicidade, a humildade e o amor. É você se doar para o outro. 

Costumo falar que o Reinado não exclui, ele inclui. O Reinado não vê bandeira, o Reinado não vê sexualidade, não vê nada disso. O Reinado abraça, ele inclui. O papel do Capitão e da Capitã é igual ao papel do pastor, que deve angariar e conduzir as suas ovelhas. Direcionar, ensinar, dar conselhos, conviver e juntar os seus, até mesmo para não acabar a tradição. Então, o Capitão é como um pastor. Conduz almas, busca e pesca almas para ir caminhando com a gente na fé. “Eu não sou da família. Eu posso chegar e entrar?” Sim, desde que entre com respeito e com a fé e a devoção. “Mas a pessoa não tem fé”. Já tem o respeito e a gente vai ensiná-la a ter fé, a amar Nossa Senhora e buscar o que ela quer. Seja um pedido, seja uma promessa. Muitos que não são da família, às vezes chegam no Rosário porque tem um parente que está doente, que tem parente que está com algum vício. Às vezes, aquele que é ateu e não tem nenhum convívio vai buscar força. Nossa senhora do Rosário abraça, ela não exclui. Todo mundo pode participar desde que tenha respeito e, mesmo sem conhecimento, passe a querer entender o que é a nossa devoção dessa fé que canta e dança. Para mim, quem canta e dança reza duas vezes.

O Reinado de Itaúna não existe sem suas guardas, é uma bolinha de conta de cada lado, uma se ligando à outra formando o rosário. Não existe o presente sem o passado. E nem vai ter futuro se não tiver o presente. É o ciclo. Não existe o Reinado de Itaúna sem a história das Sete Guardas, e não existe o Reinado de Itaúna sem a história da Irmandade de Senhora do Rosário. Uma irmandade está de um lado e outra irmandade de outro, mas vivemos em prol de um Rosário só. Somos filhos da mesma mãe. É união, um ajudando o outro para a gente continuar com a nossa devoção.

O Moçambique de Nossa Senhora do Rosário foi inspirado por uma estrela e guiado por Nossa Senhora do Rosário. Por isso que Julião, antigo escravo, formou a guarda de Moçambique. Graças a Deus, até hoje estamos levando esses saberes. Isso vem passando de geração em geração, do final do séc. XVIII até hoje. Agora, quando a gente não existir mais, alguém vai ter que tocar para frente. Eu falo que eu sou um soldado de Nossa Senhora. E ao falar da nossa tradição, vou sempre lutar como um combatente. Estou aqui para combater. Eu vou lutar e defender nossa tradição onde for preciso. Porque ao meu ver, Senhora do Rosário é uma só, Mãe de todos. Não existe o bonito e o feio, o grande e o pequeno. Aos olhos de Nossa Mãe, todos nós somos iguais. Salve Rainha!

Jéfferson Lázaro da Silva Gregório

 

é congadeiro, Capitão da Guarda Moçambique de Santa Efigênia, da Irmandade das Sete Guardas de Nossa Senhora do Rosário de Itaúna.  Filho e neto de congadeiros tradicionais da cidade, é também diretor de festas da Irmandade das Sete Guardas.

Paula Lobato


é arquiteta, designer e editora. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, onde também se formou. Integra a equipe do BDMG Cultural desde 2021.

Ceci Nery Batista

 

é arquiteta e urbanista, pesquisadora de cultura e patrimônio imaterial.

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