REVISTA nº 2

Sem fronteira

Em lugar de buscar a possível especificidade de cada código, entrego-me, tão prazerosamente quanto possível, à tentativa de dissolução das fronteiras entre as artes, entre estas e os demais campos de conhecimento e, num lance ainda mais ousado e perigoso, entre a arte e a vida.

Ricardo Aleixo
16 Jun 2020 4 Min
Sem fronteira
PERFOMANCE DE RICARDO ALEIXO NO CABARET VOLTAIRE (ZURIQUE) EM 2017 | FOTO: EDUARDO JORGE

Dos 60 anos de idade que completarei em setembro próximo, 42 foram (têm sido) dedicados ao aprendizado quotidiano da difícil arte de tentar fazer arte numa cidade como Belo Horizonte, refratária às explorações de cunho técnico-formal mais arrojadas. Menino criado num bairro da zona norte chamado Campo Alegre, na mesma casa onde hoje funciona o KORA/Kombo Roda Afrotópica, tomei a arriscada decisão de me tornar artista sem ter mais do que a cara (de pau) e a coragem de me lançar numa área organizada pelo elitismo, pelo cartorialismo e por um mal disfarçado racismo.

Faltavam-me livros, discos, revistas especializadas, acesso a informação qualificada, a orientação e sobretudo ao convívio com outros jovens candidatos a artistas. Pois foi justamente essa total ausência de condições básicas para o aprendizado da arte que me levou a descobrir dentro de mim mesmo o estímulo para explorar as zonas de contato entre as diversas linguagens artísticas.

Eu, que já cantava desde os 11 anos, e que também desenhava um pouco, além de ser um devorador de livros e de acumular elogios na escola por causa da boa escrita e da oratória, aprendida em casa com Américo, meu pai – com quem aprendi também caligrafia –, só fiz misturar os códigos, com uma liberdade (ou seria irresponsabilidade?) que talvez já não seja possível ter em outras etapas da vida que a adolescência.

Convalescendo de um ciclo de 5 cirurgias no olho direito, entre os 18 e os 21 anos, passei todo o período entre 1978 e 1981 voltado para o estudo da poesia, em sua interrelação com as demais linguagens, sempre sob o influxo da poesia concreta, o movimento que transformou em divisa o termo-conceito “verbivocovisual”, emprestado da obra do irlandês James Joyce. Fascinado por essa tripla dimensão da palavra (verbal + vocal + visual), contei com o apoio de minha única irmã, Fatima, que se formou em Letras na UFMG, para adquirir os livros, discos, revistas e fascículos que me permitiram estudar o mais seriamente possível os fundamentos da arte híbrida que eu tinha em mente, ainda sem ter tido contato com conceitos como “multimídia”, “intermídia”, “interartes” ou “transmídia”.

Performance A Ferro e Fogo realizada na Galeria de Arte BDMG Cultural em 2017 | Foto: Liliane Peregrini

Por volta dos 25 anos comecei a publicar artigos na imprensa local. Aos 27, eu assinava duas colunas (uma de música e uma de livros) em um semanário católico, o Jornal de Opinião, ao mesmo tempo que continuava o trabalho de criação, então oscilante entre a composição musical, a poesia visual – no limite com as artes visuais – e o crescente interesse pelas artes cênicas, do qual decorrerá, alguns anos depois, a definição da performance como o meu principal meio de expressão.

Esta é, em síntese, a base da minha formação como artista, à qual se somará, já no final da década de 90, o início da parceria com o músico e ator Gil Amâncio, com quem formei um duo, e, já em 2000, criei e dirigi a Sociedade Lira Eletrônica Black Maria. Gil e eu fomos, simultaneamente, mestres e discípulos um para o outro, nos três anos de vida da Black Maria.

Não conhecíamos limites para a experimentação, tudo nos interessava: a música da fala, o videopoema, as danças afro-brasileiras, a arte vestual, a polirritmia, os mitopoemas africanos, a ruidagem eletrônico-digital, a poesia satírica, a utilização de instrumentos inortodoxos e de objetos cênico-sonoros, o pensamento sobre a arte como um dado indissociável do processo criativo – tal como eu já aprendido com a artista visual Lygia Pape (1922-2004), com quem tive um breve, intenso e produtivo convívio criativo entre 1998 e 2004.

Tudo o que eu viria a fazer nas décadas seguintes deve respostas a esse momento raro, que defino como “um rito de passagem” para o que faço hoje, como artista solo ou como parceiro de outros profissionais, das mais diferentes áreas, no Brasil ou no exterior. Em lugar de buscar a possível especificidade de cada código, entrego-me, tão prazerosamente quanto possível, à tentativa de dissolução das fronteiras entre as artes, entre estas e os demais campos de conhecimento e, num lance ainda mais ousado e perigoso, entre a arte e a vida.

Abertura da exposição Instante Infinito na Galeria de Arte BDMG Cultural em 2017 | Foto: Élcio Paraíso/Bendita
Capa: Perfomance de Ricardo Aleixo no Cabaret Voltaire (Zurique) em 2017 | Foto: Eduardo Jorge

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Ricardo Aleixo

é artista-pesquisador intermídia, ensaísta e editor. Suas obras mesclam poesia, artes visuais, vídeo, dança, performance, música e design sonoro. Tem 15 livros publicados. Além do Brasil, já se apresentou na Alemanha, Argentina, Portugal, México, Espanha, França, EUA e Suíça. Desenvolve seus projetos de pesquisa, criação e formação no LIRA/Laboratório Interartes Ricardo Aleixo, situado no bairro Campo Alegre, periferia de Belo Horizonte.

Registro: Rafael Motta

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