REVISTA nº 1

Muquifu, um lugar de novas alianças

Tudo no Muquifu embaralha nossas noções de museu e patrimônio. Ao mesmo tempo, tudo renova nosso entendimento histórico, nosso olhar para a cidade, para a cultura e a arte como formas de explicar o mundo e, assim, nos permitir construir novos mundos.

Gabriela Moulin, Larissa D'arc
21 Fev 2020 8 Min
Muquifu, um lugar de novas alianças
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Em um sábado de setembro de 2019, um Uber chega para nos levar ao lançamento da publicação “Habemus Muquifu”. Com um sotaque não identificado, o motorista confirma se nosso destino é a Rua Santo Antônio do Monte. Ao ouvir a resposta afirmativa, ele pergunta quem foi tal santo, se ele era “alguém diferente do Santo Antônio original”. Como não sabemos a resposta, acrescentamos informações nada relevantes para a conversa: há uma cidade em Minas chamada Santo Antônio do Monte e estamos indo ao bairro Santo Antônio.

Mas monte é morro?, insiste nosso condutor.

Sim, pode-se dizer que sim.

E lá é um morro?

Sim, o Morro o Papagaio.

Você sabe a história deste Morro?

Não, não sei.

Tentamos mudar a conversa e pergunto: de onde você é?

De Damasco, a primeira cidade do mundo.

Damasco, na Síria? Veio de lá direto para Belo Horizonte?

Segue-se, então, um diálogo de curiosidades sobre Damasco e uma troca de impressões sobre a situação atual da Síria, até que chegamos ao destino, o número 708 da rua que deu origem à conversa.

Ele lê a placa, que indica que estamos no Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas e faz a pergunta final: conhece a história desta favela? O que tem neste museu?

Digo que não sei e que vamos conhecer agora. E uma observação final revela índices de nosso lapso de memória: “a Síria está mais no noticiário, não é? Fica mais fácil saber”.

O desassossego que o comentário nos causa é logo sucedido e embolado com a suntuosidade da Gameleira que guarda a entrada do lugar e a surpresa de adentrar o Museu pela Igreja das Santas Pretas. E, assim, por narrativas de vidas distantes, ficamos tontos entre pertencimentos simbólicos construídos, inventados, imaginados e, muitas vezes, esquecidos.

O Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas nasceu em 2012, após uma jornada comunitária de mais de uma década, liderada por coletivos do Morro do Papagaio e pelo Padre Mauro Luiz da Silva, diretor e curador do museu, e que por anos foi pároco da comunidade. Conhecido como Muquifu, deu, por aproximação sonora, outro status ao pejorativo muquifo, que nomeia casas pequenas e pobres, lugares não desejados de se estar.

A entrada pela Igreja das Santas Pretas nos faz ficar sem saber onde termina a igreja e onde começa o museu. Mas logo vemos que a suposta contradição é pouco, ou nada, relevante e que ali tudo é sincrético, misturado.

Cena da capela das Santas Pretas | Foto: Acervo Muquifu

As paredes do templo são repletas de pinturas de cenas da vida de Cristo, trazendo em cada uma delas, as mulheres do Morro que lutaram para que a então pequena capela continuasse a existir e que fizeram dali um espaço sincrético por natureza – um lugar de encontro de saberes ancestrais de curas e chás, um lugar de rezar o terço católico e uma cozinha afetuosa de abrigo comunitário. Os murais executados mais recentemente por Cleiton Gos, Fabiano Valentino e Marcial Ávila traduzem tal condição em cenas que misturam a narrativa e personagens bíblicos com histórias reais e contemporâneas de uma comunidade invisibilizada. Cleiton, artista pernambucano de Olinda, e Fabiano e Marcial, moradores e pintores do Papagaio, trabalharam juntos para desenhar a história em que todos os personagens são negros e nada lembram as representações sacras europeias.

Histórias para se fazer um museu

De 2001 a 2012, entre o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, e o Dia dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, realizou-se no Aglomerado Santa Lúcia, outro nome para o conjunto de vilas situadas no Morro do Papagaio, o evento “Quilombo do Papagaio”. A alusão ao quilombo, naquele momento, era para retomar a ideia de espaços de resistência e liberdade. Entre as questões do apagamento da história dos negros e negras da cidade e, por extensão, do país, e as questões sociais que impedem a garantia de direitos, o grupo do qual Pe Mauro se tornou líder passou a discutir e pensar “o direito à memória”.

Faz-se, então, um chamado para que a comunidade “deixe uma lembrança sua” para o espaço.  A coleção (se é que este termo antigo dá conta da transgressão do Muquifu) é formada pelas doações dos moradores, e o importante ali não é o valor agregado de cada objeto, mas sim sua história e da pessoa que o doou, preservando a memória material e imaterial da comunidade.

Foto: Acervo Muquifu
Foto: Larissa D’arc

O acervo é plural, conta com objetos diversos, certificados, quadros, fotos, imagens sacras e relatos. Material que é exposto de modo a compor núcleos narrativos: Território Quilombola, Olhares pelo território, Sacro, Artes e ofícios, Objetos biográficos e o Topo do Muquifu. Cada núcleo transparece uma faceta e um fragmento da história dos moradores do Morro do Papagaio, que se confunde com tantas outras histórias.

Título: A fuga | Fotógrafo: Marco Mendes | Acervo: Muquifu | Ano: 2013

Se o Museu surge da vivência de quatorze mulheres, treze delas domésticas, o núcleo Artes e ofícios ganha importância com a reprodução do diminuto quarto que frequentemente recebe a alcunha de “dependência da empregada”. Composto por objetos doados por mulheres da comunidade que exerceram tal atividade, é um espaço que amplifica a dualidade e desigualdade das relações de trabalho.

No livro “Eu, empregada doméstica”, a rapper paulista Preta Rara, logo na capa nos provoca com a frase “a senzala moderna é o quartinho da empregada”. Reverberando a rapper e mostrando que a senzala moderna persiste por todos os territórios, semelhante aos relatos compilados por Preta Rara em seu livro, as mulheres da comunidade também passaram a deixar inscritos nas paredes do quartinho do museu seus relatos de gratidão e abusos sofridos.

O Muquifu se coloca então como um local de acolhimento, valorização e legitimatimação de histórias e existências invisibilizadas, que dizem respeito tanto da vivência dos moradores do Aglomerado Santa Lúcia como da história social e da urbanização da cidade.

Museu do outro

Tudo no Muquifu embaralha nossas noções de museu e patrimônio. Ao mesmo tempo, tudo renova nosso entendimento histórico, nosso olhar para a cidade, para a cultura e a arte como formas de explicar o mundo e, assim, nos permitir construir novos mundos.

Talvez a mais emblemática das inversões poéticas esteja na instalação “Uma rainha na favela”, que ocupa parte do segundo pavimento do Muquifu e é dedicada à Dona Maria Marta da Silva Martins, Rainha Perpétua de Santa Efigênia, moradora da Vila Estrela, no Morro do Papagaio.

Segundo pavimento do Muquifu | Foto: Gabriela Moulin
Na Congada, pessoas comuns se tornam reis e rainhas de Congo, celebrando com música, dança e adereços, sua fé na religiosidade afro-brasileira que agrega santos católicos e divindades africanas.

O Muquifu, assim, dá sua contribuição singular para a construção de uma memória baseada no afeto e no convívio, revendo o lugar dos negros, dos pobres, dos favelados. São narrativas que precisam ser ditas, representadas, preservadas. Há apagamentos que não podem permanecer e o Museu pode ser o lugar para que novas alianças aconteçam.

Dona Maria Marta da Silva Martins | Foto: Jorge Quintão

Um lugar de direito à memória, direito à cidade e também de direito (para todos nós) a novas sensibilidades, a outras experiências estéticas, e à possibilidade de construção de uma imaginação coletiva de futuro.

 

Outras leituras:

O Cotidiano no Morro, artigo de Antônio Pimenta e Ana Paula Orlandi, na revista Zum, sobre o projeto Retratistas do Morro idealizado por Guilherme Cunha que preserva e traz também luz a um material que conta a história, o cotidiano e a identidade dos moradores do Aglomerado da Serra, maior conjunto de vilas de Belo Horizonte e segunda maior favela do Brasil.

Davi no Museu, artigo de Renata Marquez na revista Piseagrama, sobre como a história da arte excluiu a sensibilidade estética de indígenas, negros, mulheres e tantos outros queers.

A exposição de longa duração “NDÉ! Trajetórias Afro-brasileiras em Belo Horizonte”, no Museu Histórico Abílio Barreto apresenta a multiplicidade e a diversidade de contribuições africanas e afro-brasileiras para a construção da história de Belo Horizonte.

“Histórias Afro-atlânticas” foi uma exposição realizada pelo Museu de Arte de São Paulo (MASP) e Instituto Tomie Ohtake em 2018 que apresentou uma seleção de 450 trabalhos de 214 artistas, do século 16 ao 21, em torno dos “fluxos e refluxos” entre a África, as Américas, o Caribe, e também a Europa.

O Museu Afro Brasil, no Parque Ibirapuera em São Paulo, destaca a perspectiva africana na formação do patrimônio, identidade e cultura brasileira, celebrando a Memória, História e a Arte Brasileira e a Afro Brasileira.

O Museu de Favela (MUF) é uma organização não governamental fundada em 2008 por lideranças culturais moradoras das favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo. Nesse primeiro museu territorial e vivo sobre memórias e patrimônio cultural de favela do mundo, o acervo são cerca de 20 mil moradores e seus modos de vida, narrativos de parte importante e desconhecida da própria história da Cidade do Rio de Janeiro.

O Acervo da Laje é um espaço de memória artística e cultural. Fundado em 2010, o espaço é composto por bibliotecas, coleções de CDs, discos, manuscritos, artefatos históricos, quadros, esculturas, fotografias e objetos que contam a história do Subúrbio Ferroviário de Salvador, dialogando com toda a cidade, mostrando que também há beleza e elaborações estéticas neste território.

O livro Terra Comum [Seminário]  aborda os diferentes tipos de apropriações e relações com a terra e território, propriedade, posse e moradia. Conta com um texto de Mary Guimarães abordando como a comunidade do Morro das Pedras em parceria com a Escola de Arquitetura da UFMG se utilizou de suas próprias histórias como agente empoderador e de pertencimento a cidade.

 

 

Gabriela Moulin

 

mestra em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Jornalista de formação e especialista em gestão nas áreas de cultura e desenvolvimento social. Foi diretora-presidente do BDMG Cultural entre 2019 e 2022. Atualmente é diretora de desenvolvimento institucional Instituto Tomie Ohtake

Larissa D’arc

bacharel em artes visuais e conservação e restauração de bens culturais móveis, atua há quase dez anos na preservação de acervos de instituições e produção de projetos culturais.

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