Modernismo reinventado: história e cultura em Cataguases
Cataguases, na Zona da Mata mineira, tem uma história singular. Enquanto todas as cidades ao redor eram rurais, Cataguases vivia uma economia urbana no começo do século 20, que impactou diretamente em sua constituição urbana, cultural e produtiva.
De berço do cinema brasileiro a polo audiovisual
Era a década de 1920. Enquanto a primeira transmissão de rádio surpreendia a sociedade da então capital Rio de Janeiro, com o discurso do presidente Epitácio Pessoa, um jovem eletricista de 25 anos marcava a história cinematográfica brasileira na pacata Cataguases, na Zona da Mata mineira. Humberto Mauro talvez não imaginasse que a paixão que descobrira com o amigo e fotógrafo italiano Pedro Comello – os filmes americanos de aventura – seriam o pontapé inicial de uma carreira lembrada até hoje.
Nas telas em preto e branco do antigo CineTheatro Recreio, um novo mundo se apresentava fora dos limites de Cataguases. “A magia foi tanta que Humberto Mauro se apaixonou pela imagem. A partir do contato com o cinema produzido naquela época, ele e Pedro Comello empreenderam de maneira pioneira a produção audiovisual na cidade”, conta o presidente da Agência de Desenvolvimento do Polo Audiovisual da Zona da Mata, César Piva.
Pelas lentes de uma câmera de apenas 9,5 mm, surgiu o primeiro curta-metragem brasileiro: com cinco minutos de duração, o cômico “Valadão, o Cratera” conquista comerciantes locais, que decidem investir na criação de uma companhia em Cataguases. Centenas de metros de filme, luz, câmera e ação: é fundada a Phebo Sul América, com o lançamento do longa “Na Primavera da Vida”, em 1926, também com direção do jovem cineasta.
Na época, Humberto Mauro provavelmente não imaginava que até a capital Rio de Janeiro seria reproduzida em sua própria cidade, com a força que as produções audiovisuais ganharam a partir de seu trabalho.
Júlia Nogueira, produtora executiva da Camisa listrada BH, que integrou a equipe de três filmagens recentes em Cataguases, conta que até mesmo paisagens urbanas da cidade foram transformadas em cenários, por exemplo, em produções que se passavam na Belo Horizonte e no Rio de Janeiro das décadas de 1940 a 1960. O filme “Derrapada” (2019), gravado em Cataguases, mas com trama que se passa na periferia da capital fluminense, é outro exemplo de como essa prática perdura até hoje.
“Isso é sensacional. Eu acho que as histórias possíveis de serem contadas por uma produção audiovisual são infinitas, e não necessariamente se passam em grandes cidades. É interessante ter a possibilidade de ir para uma região como a Zona da Mata e ter incentivo financeiro, político e abertura para receber as produções”, diz.
Considerado o pai do cinema brasileiro, Humberto Mauro nasceu em Volta Grande (MG), em 1897. Filho de imigrantes italianos, mudou-se para Cataguases durante a infância, onde fez história com a produção do primeiro curta-metragem no país. Humberto ainda fundou o Instituto Nacional de Cinema Educativo, no Rio de Janeiro, que é responsável por mais de 400 produções, entre longas e curtas-metragens, documentários e videoclipes.
“Ele foi uma pessoa que impulsionou o cinema no Brasil e inspirou o surgimento do Cinema Novo. Voltou a Cataguases várias vezes, realizou festivais na cidade. Para nós, ele foi a grande inspiração pelo reconhecimento de Cataguases no Brasil, e até no exterior, como um dos lugares e cenários pioneiros, originais, fundadores do cinema brasileiro”, afirma César Piva.Devido às limitações da época, não conseguiu fazer uma carreira internacional, mas foi homenageado pelo Festival de Cannes, na França, como um dos cineastas mais importantes do século 20.
Um quadrilátero ferrífero que dá origem à matéria-prima: as estórias.
Assim a define o escritor Luiz Ruffato, já que a cidade é cenário de grande parte dos seus premiados romances. “Isso acontece por uma razão muito simples: a cidade tem uma estrutura econômica e social que, de alguma maneira, ecoa bastante o Brasil. Enquanto todas as cidades ao redor eram rurais, Cataguases vivia uma economia urbana no começo do século 20. No começo da industrialização brasileira, acontece o mesmo lá”, comenta.
Palco da consolidação da principal revista modernista brasileira na década de 1920, a Verde, que publicou escritores como Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, a cidade é revivida no sexto livro de Ruffato, “O verão tardio”.
“O personagem vai ajustar as contas consigo mesmo na cidade durante seis dias. É claro que não estou descrevendo só Cataguases, mas um romance sobre o Brasil. Então, é sobre um crescimento das igrejas evangélicas, que está presente no livro, presente também em Cataguases, no Brasil inteiro, é a falência da cidade enquanto urbanismo, a sujeira, o fedor, o total desaparelhamento do estado em relação a cidade. O que está presente em Cataguases não é só lá, é em São Paulo, Belo Horizonte”, afirma.
Curvas de Niemeyer
Enquanto isso, nas décadas de 1940 a 1960, o município era exceção entre as pequenas cidades mineiras. Foi quando recebeu as marcas e curvas da arquitetura modernista.
“O mesmo grupo que atuou no movimento literário trouxe o modernismo para as construções de Cataguases, através de Francisco Inácio Peixoto. Como tinha uma vida social ativa no Rio de Janeiro, chamou Oscar Niemeyer para construir sua casa”, explica o arquiteto Paulo Alonso, autor do Guia Arquitetônico de Cataguases.
Junto com o idealizador do Circuito Arquitetônico da Pampulha e de Brasília, vieram ainda artistas plásticos e escultores da época, como Djanira, Burle Marx e José Pedrosa. “Dentro dessa onda de Niemeyer, a família convida para projetar o Colégio Cataguases, que teve um painel feito por Cândido Portinari, depois a maternidade, o cinema, restaurante popular e até a igreja matriz”, finaliza.
Economia pulsante
Nos anos 2000, Cataguases transformou essa história em inspiração para um novo tempo. “Esse legado permaneceu ativo durante o século 20. Já no início do século 21, uma série de lideranças locais, artistas e educadores se reuniram e pensaram que a cidade precisava aproveitar e valorizar esse histórico para projetar o seu futuro”, resume Piva.
A partir de 2002, um plano ambicioso busca fazer da cultura e da educação um novo motor para o desenvolvimento da cidade. “Foram formados e capacitados artistas, técnicos, fornecedores, além de uma mobilização de atores governamentais e empresas locais para preparar o Polo Audiovisual da Zona da Mata, inaugurado em 2008”.
De longa-metragens à séries de TV
Já entrávamos em 2010 quando Cataguases inaugurou seu novo ciclo audiovisual com as gravações de “Meu Pé de Laranja Lima”, adaptação do clássico juvenil de José Mauro de Vasconcelos. Desde então, os frutos foram muitos: pelo menos 20 grandes produções, que vão desde longas-metragens a séries de TV, tudo em menos de dez anos. Já com documentários, animações e curtas, são mais de 30 produções recentes com a marca cataguasense.
Júlia Nogueira viu nascer três grandes produções cinematográficas em Cataguases: os longas “Maria do Caritó” (2017), “Predestinado – Arigó e o Espírito do Doutor Fritz” (2018) e “Derrapada” (2019).
“Cataguases e a região da Zona da Mata têm uma abertura para receber os filmes. O envolvimento dos profissionais locais é muito grande, e a cidade conta com estrutura pronta para ser absorvida pelas produções. Os fornecedores estão acostumados e bem preparados, inclusive serviços como restaurantes, hotéis e papelaria”, revela.
O crescimento também acontece em nível individual e profissional: Júlia conta que já acompanhou pessoas que começaram como assistentes em um filme e, em trabalhos posteriores, assumiram cargos de coordenação de equipe. “Isso mostra que elas estão adquirindo experiência e têm possibilidade de trabalhar em um cargo maior. O audiovisual brasileiro agradece muito a forma como a cidade enxerga o cinema, e só desejo que comecem também a fazer suas próprias produções inteiramente locais”.
As grandes produções rodadas em Cataguases geram até 150 vagas de emprego formal, número que pode chegar a quase 400 com figurantes e prestadores de serviço.
“A partir de 2010, a média era de dois filmes por ano rodados em Cataguases. Agora, já estamos fazendo de quatro a seis produções anuais”, comemora Piva. “Desde a retomada da produção audiovisual em Cataguases, a população passou a ter a percepção de que a cultura agrega valor, não só histórico, mas de diversificação da economia. As pessoas veem que a cidade está crescendo, passam a ter orgulho de ver a região projetada nacionalmente”.
Em 2019, Cataguases se lançou candidata à Cidade Criativa pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Cultura e a Ciência) como polo audiovisual. Das 26 cidades brasileiras que chegaram à fase final da disputa, o município conquistou nota máxima, ao lado das demais finalistas Belo Horizonte, com a gastronomia, Fortaleza, que concorreu pela moda e design, e Aracajú, através da música – a terra do cinema brasileiro deixou para trás cidades como São Paulo, Diamantina e Novo Hamburgo.
“Ficamos entre os quatro finalistas, concorrendo com três capitais. O primeiro grande benefício disso é que geramos um reconhecimento dentro do país e uma projeção muito forte no exterior. Só de ter participado desse processo, da maneira como participamos, nos deixou muito contentes, especialmente porque trabalhamos juntos com Belo Horizonte e Diamantina. Isso ainda possibilitou a criação, independente do resultado da Unesco, da Rede Mineira de Cidades Criativas”, conta César Piva. A capital mineira e Fortaleza levaram a honraria, se juntando ao grupo que já conta com as cidades de Belém, Brasília, Florianópolis, Paraty, Curitiba, Salvador, Santos e João Pessoa.
Em 2019, um edital da Ancine (Agência Nacional do Cinema) disponibilizou quase R$ 10 milhões para investimento em produções realizadas na cidade mineira. De acordo com César Piva, além do desenvolvimento de projetos para cinema, televisão e internet, foram selecionadas 17 obras de longa-metragens, séries e jogos eletrônicos que serão desenvolvidos até 2022.
“O cinema cumpre um papel transformador, revela a alma e a diversidade cultural brasileira, além da capacidade de mobilizar a economia, gerar emprego. É de fato, hoje, um segmento importantíssimo, e Cataguases faz parte disso, trabalhando com a nossa beleza urbana, edificações históricas e as riquezas naturais das cachoeiras, rios e montanhas”, defende César Piva.
Cataguases em números
De 2008 a 2020, o cinema transformou a cidade em celeiro criativo:
• 44 produções
• Movimentação de R$ 75, milhões na economia local
• 2,3 mil pessoas contratadas diretamente
• R$ 35,5 milhões investidos no polo audiovisual
Filmes em cartaz, gravados de 2010 a 2018
• Meu Pé de Laranja Lima, de Marcos Bernstein (2010), produção Pássaro Films (RJ)
• Pequenas Lonas, de Marcos Pimentel (2010), produção Tempero Filmes (MG)
• Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán (2011), produção Eryk Rocha e Ailton Franco (RJ)
• O Menino no Espelho, de Guilherme Fiúza Zenha (2012), produção Camisa Listrada (MG)
• Quase Samba, de Ricardo Targino (2012), produção Bananeira Filmes (RJ)
• Vaga-Lumes, de Daniela Guimarães (2012), produção Anonimaprod (MG)
• A Família Dionti, de Alan Minas (2013), produção Caraminhola Filmes (RJ)
• Introdução à Música do Sangue, de Luiz Carlos Lacerda (2014), produção Matinê Filmes
• Campo de Jogo, de Eryk Rocha (2014), produção de Aruac Filmes (RJ)
• Estive em Lisboa e Lembrei de Você, de José Baharona (2014/2015), coprodução Refinaria Filmes (RJ), Mutuca Filmes (RJ) e David & Golias (Portugal)
• Redemoinho, de José Luiz Villamarin (2015), produção Bananeira Filmes (RJ)
• Hannya, de Diogo Hayashi (2015), coprodução Split Studio de Produções (SP) e Acere Produções Artísticas e Culturais (SP)
• Correndo Atrás, de Jeferson De (2016), coprodução Raccord Produções (RJ) e Globo Filmes (RJ)
• Maria do Caritó, de João Paulo Jabur (2017), produção de Eh! Filmes (RJ) e Camisa Listrada BH (MG)
• Árvore dos Araújos, série de TV com 26 episódios, de Alfredo Alves (2017), produção da Dromedário Cinema e Vídeo (MG)
• Predestinado – Arigó e o Espírito do Doutor Fritz, de Gustavo Fernández (2018), coprodução Moonshot Pictures (SP), JF Productions (SP) e Camisa Listrada BH (MG)
• A Queda, de Diego Rocha (2018), produção Dromedário Cinema e Vídeo (MG)
• A História de um Crime, de Ruy Guerra (2018), produção Kinossaurus (RJ)
Filmes em produção, gravados em 2019 e 2020
• Só não Posso Dizer o Nome, de Helvécio Ratton, produção Quimera Filmes (MG)
• Natureza Morta, de Clarissa Ramalho, produção de Viralata TV e Benedito Filmes (RJ)
• Derrapada, de João Amorim, produção Três Tabelas Filmes (RJ) e Camisa Listrada BH
• Dentro da Caixinha, de Guilherme Reis, produtora Postura Digital (MG)
• O Silêncio das Ostras, de Marcos Pimentel, produção Tempero Filmes (MG)
• Órfãs da Rainha, de Elza Cataldo, produção Persona Filmes (MG)
• Azul Celeste, direção de Silvia Godinho e produção Dromedário Cinema e Vídeo (MG)
• Comadres, telefilme com direção Renata Sette e coprodução Rede Globo de Televisão e a Dromedário Cinema e Vídeo (MG)
Em breve – gravações previstas até 2022
• Bichopédia, série para crianças de seis a nove anos, Zéfini Produção e Finalização (MG)
• Marina e Guara, série de animação de 26 episódios, Estúdio Paulares (MG)
• Antes de Dormir, série infanto-juvenil, Camisa Listrada BH (MG)
• Uma História de Cinema, inspirada nos bastidores do cinema no final dos anos 20, MM Produções Audiovisuais
• Ser-Fazer-Saber: Mulheres do Campo, série de documentário sobre a vida de mulheres agricultoras em Rio Pomba, Amarillo Produções Audiovisuais (MG)
• Zé, história do ativista morto pela ditadura militar no Brasil, Filmograph
• Professora de Francês, Entre Filmes Produções (MG)
• Ana, En Passant, longa-metragem para o público adulto, Apiário Estúdio Criativo (MG)
• Como, o Cosmonauta, série ficcional em animação, Solo Filmes
• Cabeça de Ovo – O Jogo, puzzle em que o jogador controla uma equipe, Estúdio Patata (SC)
• Pets Rules, jogo de estratégia casual, Umbu Games (MG)
Foto de capa e Edgard Cine Teatro: Hernani Barroca e Vicente Costa