REVISTA nº 4

Um centro não de “ensinagem”, mas de aprendizagem

Através de diversas atividades que contemplam dimensões educacionais, culturais, sociais, econômicas e ambientais, o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) busca há mais de 30 anos realizar projetos e construir plataformas que aprendam junto com as comunidades

Natália Vieira
06 Mai 2021 21 Min
Um centro não de “ensinagem”, mas de aprendizagem
Tião Rocha, antropólogo, educador e fundador do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento. Foto: Carol Rolim

No Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), a história de cada um tem a mesma importância da história “oficial”, que aprendemos nos livros escolares. Toda proposta do CPCD parte da premissa de que é necessário conhecer e aprender com os territórios, as comunidades, as pessoas. Inclusive, não há proposta se não houver o reconhecimento dessas pessoas, comunidades, territórios como agentes ativos. 

Criado em 1984 por Tião Rocha, antropólogo por formação acadêmica e educador por opção política, como ele mesmo se define, o CPCD é institucionalmente uma ONG, mas se considera, antes de tudo, um instituto de aprendizagem, no qual as educadoras e os educadores se comprometem a ensinar e aprender ao mesmo tempo. “Eu sou uma aprendiz até hoje, porque a gente aprende todo dia um pouco. Muito, na verdade. Os detalhes, os pequenos nadas, como diz o Tião… Eles são tão grandes na história da gente, no nosso percurso”, diz Eliane Oliveira, que é educadora de projetos em Curvelo (MG) e diretora educacional do CPCD. Mas ela não dá destaque para esse título, que é uma formalidade que não condiz com como as coisas funcionam no Centro. 

As práticas do CPCD, que vão desde brincadeiras com crianças a produção de hortas baseadas nos conceitos da permacultura, são organizadas a partir de projetos e plataformas, que respeitam as particularidades de cada local e que podem dar, e muitas vezes dão, origem a novos projetos. Isso é algo muito forte no CPCD: todos que participam, tanto os educadores quanto as pessoas das comunidades, são convocados a terem um olhar atento e reflexivo para compreenderem como questões que surgem no dia a dia das atividades podem ensinar e dar origem a novas ideias. 

Integrantes do CPCD trabalham em horta comunitária. Fotos: Reprodução/Facebook

Um exemplo de como qualquer experiência ou manifestação que acontece nos projetos é relevante e vira aprendizado está no dia em que Tião apresentou às crianças uma prensa de fazer queijo. Um dos meninos, Robinho, de 12 anos, ao ver a prensa, afirmou: 

– “Ô Tião, eu sei fazer isso.”
– “Ah, Robinho, sabe nada, cê conversa fiado demais!”, provocou Tião.
– “Mas eu sei”, repetiu Robinho, confiante.
– “Por que você sabe?”
– “Porque eu sei fazer caminhãozinho de madeira.”
– “E daí?”
– “E daí que quem aprendeu a fazer caminhãozinho de madeira, faz qualquer coisa de madeira, cara! É só juntar, colar e pregar de outro jeito.”

“Naquele dia, aquele menino nos ensinou o seguinte: que nós educadores não somos consultores de produtos, mas consultores de formas”, afirma Tião. Essa reflexão gerou a pergunta “de quantas maneiras diferentes e inovadoras eu posso?”, que se tornou um modus operandi dos educadores, e é chamada hoje por eles de MDI. Chegou uma época que, conta Tião, o CPCD conseguiu sistematizar 64 maneiras diferentes e inovadoras de alfabetizar uma criança. “Menino nenhum, nem se quiser ficar analfabeto, fica, a gente não deixa, a gente cerca de todo jeito. Uma hora você acerta. Nós fomos inventando jeitos, porque a gente percebeu que esse processo não era olhar a meninada no atacado, nós tínhamos que olhar um por um, aprender o tempo e o ritmo de cada um”, explica.

Nóis pode

A mentalidade propositiva e criativa do CPCD é percebida em todas suas ações. Não importa o município, cada região e comunidade tem suas potencialidades e cabe a todos exaltá-las e desenvolvê-las. Atualmente, o CPCD atua em 17 cidades, nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Maranhão. Sempre que o Centro chega em um novo território, a primeira preocupação é chamar a comunidade para se engajar ativamente no projeto. Há sempre uma formação inicial que convoca pessoas que moram na região a serem educadores, já que o projeto não é para, mas da comunidade.

Eliane, nascida no distrito de Santa Rita do Cedro, zona rural de Curvelo, entrou no CPCD como educadora, em Curvelo, aos 19 anos, a convite de uma amiga.

“Eu era uma menina. Hoje tenho 49 anos. Trabalhar no CPCD não é um serviço, acho que a gente cria uma causa, que o Tião foi construindo, nos contaminou e virou uma causa nossa, coletiva, de os projetos serem pretextos para contribuirmos para uma vida melhor, mais digna, de contribuir com a transformação social, fazer essas provocações de que as pessoas podem. Nóis pode”, conta ela. 

O “nóis pode” faz parte do linguajar dos educadores, pois deu origem a uma palavra parecida com empoderamento, que guia o espírito com que os projetos são feitos, o “empodimento”. “Isso resultou de uma conversa que tivemos em Araçuaí (MG), onde as mulheres falaram: ‘uai, quer dizer que nóis pode?’ A gente não sabia que nóis podia.’ Empodimento então é quando as pessoas percebem que elas têm a potência de fazer coisas”, explica Tião. 

Moradores da região participam de oficina. Foto: Reprodução/Facebook.

Apesar de a origem do “empodimento” estar carregada de mineiridade, não há barreiras regionais para a apropriação desse conceito. Laniela de Jesus Feitosa, 36 anos, nascida e criada em São Paulo (SP), prova isso. De família militante e com trajetória de envolvimento em movimentos sociais e culturais e ONGs, ela tem muito de sua história marcada pela busca por melhorar e valorizar o território em que vive. Em 2013, o CPCD foi convidado para iniciar um projeto na região de Parelheiros, localizada no extremo sul da capital paulista, e convidou o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC) para ser parceiro. A coordenadora do IBEAC à época chamou Laniela, que já tinha trabalhado por dez anos no instituto e era agente de saúde no momento, para ser coordenadora em Parelheiros. Desde então, ela atua na plataforma “Parelheiros Saudável: Territórios Abraçados”, que abrange seis bairros da região e busca promover processos de transformação social por meio de diversas ações, como alfabetização de adultos e idosos, cuidados com a primeira infância, desenvolvimento de permacultura e formação de “jovens guardiões”, que se envolvem com as questões dos bairros em que moram.

Mesmo aproveitando das pedagogias e das tecnologias sociais do CPCD, como são chamadas as sistematizações de aprendizado, Laniela e os educadores de Parelheiros começaram do zero, reunindo moradores do bairro, como é de costume a cada início de projeto. “O primeiro momento é quase ‘o que você tem pra me dar?’ E aí você vai desconstruindo isso. Sempre a gente chega na roda e fala ‘não sei’. Nossa fala do CPCD é ‘não sei, vamos aprender junto’. Se eu colocar água nesse copo, vai dar certo? Não sei. Claro, tenho a experiência que em outro lugar deu certo, mas aqui, neste momento, com estas pessoas, eu não sei. Mas vamos tentar? Que o tentar, se der certo é um aprendizado, se der errado é outro”, diz a educadora.

Uma das propostas que quebrou a postura inicial passiva da comunidade foi o banco de solidariedade, que organiza atividades e cursos a partir de inscrições das pessoas que vivem ali. “As pessoas, no primeiro momento, conseguem dizer o que elas querem, muitas vezes cursos profissionalizantes. Mas na hora que perguntamos: 

– O que você pode oferecer?
– Eu? Não sei fazer nada.
– Ah não, alguma coisa você sabe fazer.
– Ah, já falaram que eu sei pintar uns paninhos de prato.
– Era disso que eu precisava! Porque a Dona Maria colocou na ficha dela que o sonho dela é aprender a pintar pano de prato. Você topa vir fazer?

A pessoa já dá uma assustada.
– Topo… – em tom ressabiado.
– E você falou que quer aprender violão, tem o fulano aqui que sabe tocar violão.

Quando você vê, a oficina já está acontecendo. Depois você vai ter a notícia que não está acontecendo no projeto, porque está funcionando domingo 14h, na casa de alguém com a Dona Maria, que está dando a oficina. Queremos que a comunidade se organize, vá se autogestando para que as coisas aconteçam. E é muito bom quando vira essa chavinha”, celebra Laniela.

Mas isso não quer dizer que o CPCD não coloca a mão na massa ou que abandona o trabalho. O centro entende sua importância para a estruturação e a continuidade dos projetos iniciados nas comunidades. No último ano, mesmo com a pandemia, as atividades têm continuado, com as devidas, e muitas, adaptações. 

Em Paralheiros, por exemplo, para esclarecer a população sobre a covid-19, o CPCD começou a passar nos bairros com carro de som e produziu diversos materiais informativos sobre o vírus e a doença. Com o trabalho voluntário de oito costureiras da região, foram produzidas 25 mil máscaras para distribuir aos moradores, com os materiais comprados pelos educadores com dinheiro arrecadado. Também foram distribuídos álcool em gel, cestas básicas e cartões de vale-alimentação, para incentivar o comércio local. 

As atividades sobreviveram com o uso de celulares, computadores e telefones fixos. “Começamos a funcionar via Whatsapp, foram criados grupos de oficinas. O grupo de alfabetização é um grande desafio, mas tem sido feito assim: a gente manda atividades, faz chamada de vídeo, liga, porque alguns idosos não têm celular. Muito até também para fazer um acompanhamento, para saber como estão. E aí mandamos atividades. Os educadores passaram a gravar as oficinas, fazendo vídeos, aprendendo a editar, postamos em página de Facebook e enviamos para as pessoas”, detalha Laniela.

Mulheres participam de feira de hortifrútis da horta comunitária. Foto: Reprodução/Facebook

A rainha e o pé de manga

Newton descobriu a lei da gravidade debaixo de um pé de maçã, diz a lenda. E Tião criou o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento debaixo de um pé de manga, em Curvelo. Diferente de Newton, Tião está vivo para nos confirmar e recontar a história de sua criação. Para conhece-la, é preciso conhecer também um pouco da história de Tião. 

Além de antropólogo e educador, Tião se define como folclorista, “por necessidade”. Desde criança, ele buscou compartilhar com seus professores um fato de sua vida do qual tem muito orgulho: sua tia é rainha. A primeira vez foi na escola na qual estudou quando criança, localizada no bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte (MG), cidade em que nasceu. Em sua primeira aula, Tião, ao ouvir a professora narrar uma história sobre um rei e uma rainha, decidiu falar que sua tia também era rainha, o que foi tido como “história da carochinha” pela professora. Não satisfeito, Tião ainda insistiu mais duas vezes, o que o fez ir à diretoria.  

Anos depois, quando chegou a época do vestibular, a tia de Tião foi decisiva para a escolha do curso. “Um dia estava lendo Ao Deus Desconhecido, de John Steinbeck, e tive um clarão. Os americanos chamam de insight, aqui em Minas chama de clarão mesmo. Aí eu lembrei da minha tia: ‘poxa, minha história, minha tia que faleceu, onde que ficou isso?’ Naquele momento caiu a ficha, eu percebi que tinha que fazer curso de História.” 

Durante o curso, Tião não aprendeu a história da tia, para sua frustração, e então, por conselho de um professor, foi fazer Antropologia. “Eu percebi que nem a antropologia cuidava disso. A história da minha tia estava guardada num escaninho que se chama cultura popular, e que foi traduzida como folclore. A minha tia foi Rainha Perpétua do Congado, da Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos. Do mês de agosto ao mês de outubro, faziam homenagens à Nossa Senhora e iam buscá-la na casa dela, com seu manto e sua coroa, dançava-se os moçambiques, e todos os grupos cantavam em homenagem à Nossa Senhora. Eu furava a fila, sentava no colo dela. Aquilo me marcou muito.” 

Após se formar, Tião seguiu carreira como professor. Deu aula no ginásio, no ensino médio e em universidade. Quando já estava consolidado profissionalmente, na Universidade Federal de Ouro Preto, teve mais um clarão, que foi decisivo para que o CPCD pudesse existir: decidiu que não queria mais ser professor, e sim educador. “Eu cheguei na universidade e falei:

– Olha, a partir de hoje eu não quero mais ser professor.
– O que aconteceu?
– A partir de hoje, eu quero ser educador.
– Mas é a mesma coisa, são sinônimos.
– Não, são coisas diferentes.
– Qual a diferença?
– A diferença é que professor é aquele que ensina, o educador é aquele que aprende, e eu acho que eu estou passando da hora de sair daqui, que é lugar da ensinagem, para a aprendizagem.”

E assim Tião deu o primeiro passo para se dedicar à “causa de ser aprendiz”, como ele define. Seus amigos sugeriram que ele criasse uma instituição para ter uma segurança. A escolha do local foi inspirada em uma carta de Guimarães Rosa, por quem Tião é apaixonado. “Por acaso, descobri uma carta dele para um compadre, em que ele escrevia que ‘Curvelo é a cidade capital da minha literatura’. Se existe a capital da literatura roseana, eu quero morar é lá.”  

Já na cidade, Tião reparou que havia “uma meninada danada” e poucas escolas para dar conta da demanda. “E quando havia escola, as crianças não frequentavam; entravam, mas não permaneciam. Havia um êxodo muito grande. Aquilo começou a me angustiar… de tal ordem que eu comecei a pensar alto.”

Tião havia encontrado uma causa, mas sabia que não podia realizá-la sozinho. Convocou então, em uma entrevista à rádio da cidade, os moradores para conversar debaixo do fundante pé de manga. Na primeira reunião não oficial do CPCD, compareceram 26 pessoas. “Fiz uma roda com eles. Tinha dona de casa, professor, aposentado, estudante, gente curiosa. Sentamos ali, era uma conversa que podia esgotar tudo numa tarde. Só que uma tarde foi pouco… o assunto não esgotava.” 

Tião percebeu, ao final da conversa, que os presentes, incluindo ele próprio, não souberam externar como deveria ser a escola debaixo do pé de manga, mas já sabiam como ela não deveria ser. “Eu juntei tudo aquilo que nós tínhamos falado, coloquei no papel, e percebi naquela síntese que não havia objetivos, nada a alcançar no sentido propositivo. Mas era uma lista de coisas para não serem realizadas. Então eu transformei aquele texto nos Não Objetivos Educacionais.”

“Por exemplo, eu ouvi uma vez uma diretora de uma escola primária de Ouro Preto, no início do ano letivo, falando assim: ‘as crianças são como uma página em branco, onde devemos escrever um belo livro’. Eu pensei ‘meu deus, onde que é a porta de saída?’ Se uma diretora considera uma criança de sete anos uma página em branco, ela entende nada de criança. Então isso virou um dos não objetivos.”

 

Dado o pontapé inicial, Tião começou a correr atrás de financiamento, e a primeira oportunidade real surgiu com a Fundação Kellogg na América Latina. Junto com os 26 interessados que estiveram no pé de manga, começaram a educar as crianças que não estavam na escola regular, sempre com o mote de não caírem na “vala da repetição”. “No final de cada dia, fazíamos uma roda para conversar e refletir sobre os acontecidos. Nessa ‘brincadeira’ de vai e volta, fomos constituindo um jeito, fomos aprendendo a fazer a coisa. Por uns 10 meses, nós fizemos isso de forma voluntária. Ao final desses 10 meses, percebi que a gente tinha uma massa de coisas, que a gente tinha refletido, e tinha aprendido muito.”

Esse aprendizado foi fundamental para conquistar o primeiro apoio financeiro. “Aprendemos algumas coisas fundamentais. Que educação só acontece no plural. Para ser plural, ela tem que ter no mínimo duas pessoas, o eu e o outro. E educação não é o que cada um tem, é aquilo que se estabelece como troca. E a gente tem que trocar o que tem pelo o que não tem. Então é um exercício de pluralidade, de troca e de aprendizagem. E que a gente pode fazer isso em qualquer lugar. Nessa educação é preciso de gente. É possível sim fazer educação, inclusive debaixo do pé de manga. Mas é impossível fazer boa educação se não tivermos bons educadores.” 

Crianças e adolescentes participam de aula no CPCD. Foto: Reprodução/Facebook

A parceria com a Fundação Kellogg durou 15 anos, nos quais o CPCD criou seu primeiro projeto institucional, o Sementinha, e se dedicou a formar educadores em várias partes do Brasil e até fora do país, passando por lugares como Vale do São Francisco, região de Curvelo, sul da Bahia, Amazônia, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. 

Da experiência inicial e fundante do CPCD, Tião e os educadores aprenderam algo que explica e guia até hoje como as coisas são feitas por eles. “Nós percebemos que nós tínhamos descoberto uma trilha e que a gente precisava abrir esse caminho. Para você aprender, você tem que fazer perguntas. São as perguntas que te tiram do lugar”, resume.

Objetivos no presente e plataformas 

No CPCD, os verbos dos objetivos são conjugados. Tião explica: “Todo mundo sabe construir um objetivo, a gente aprendeu isso, não tem dificuldade nenhuma. Você pega um verbo, na forma infinitiva, coloca no início da frase e depois enche de linguiça. Promover o desenvolvimento integral… Garantir o acesso de todos… Se vai funcionar ou não, é outro departamento, em geral se engaveta aqui. Nós sentamos e falamos: ‘bom, nós temos um compromisso conosco, não podemos nos enganar. Nós temos então que pegar um objetivo, um verbo, que esteja no infinitivo, e conjugá-lo. Porque ele só faz sentido se for conjugado, e tem que ser conjugado no presente.”

O verbo que eles mais conjugam desde então é o “paulo-freirar”. Eu paulo-freire, tu paulo-freiras, ele paulo-freira, nós paulo-freiramos, vós paulo-freirás, eles paulo-freiram. O que significa esse verbo? Para os educadores do CPCD, “ação, reflexão, ação”.

Também “é olhar pro outro e percebê-lo não como completo, mas olhar para a pessoa como inteira naquele momento, nas suas inteirezas, e aprender a fazer uma leitura da sua cultura”, define Tião, inspirado no que Paulo Freire defendia para que a educação fosse libertadora

Como é visível nas falas de quem trabalha no CPCD, a busca por promover educação guia tudo o que fazem. Mas com o tempo, foi constatado que projetos muitas vezes podem não ser transformadores de realidade, já que acabam afetando apenas as pessoas que deles participam. Essa conclusão aconteceu no Vale do Jequitinhonha, mais precisamente em Araçuaí. 

 

O CPCD chegou em 1998 na cidade, a convite da Natura, para implantar o projeto Ser Criança. “Para nós, era mamão com açúcar. Você já tem uma tecnologia sistematizada, era só chegar e formar os educadores, e reaplicar”. Mas eles não podiam “cair na vala da repetição”, repete Tião. O puxão para que não caíssem foi um adolescente de 17 anos, Boé, que contou a Tião um dia que adorava o projeto, mas era “uma pena” que teria que sair do Ser Criança pois estava na hora de ir embora. “Eu perguntei:

– Por quê? Você pode continuar aqui depois, pode continuar o resto da sua vida com a gente, tem problema não.
– Não, mas minha mãe falou que eu já aprendi tudo e tá na hora de eu ir.
– Ir pra onde?
– Pro corte de cana. Aqui todos nós vamos pro corte de cana, quando tem 18 anos. Assim foi, meus primos foram, meus vizinhos, vai ser minha vez agora.
– Você quer ir?
– Querer não quero não, mas é assim que é.”

Tião foi atrás então de entender mais a realidade da comunidade, e descobriu que cerca de 7 a 8 mil homens da região iam, todo ano, passar nove meses no corte de cana. “Quando eu soube disso, juntei os educadores de Araçuaí e falei: ‘moçada, é o seguinte, não faz sentido ter um projeto bacana, premiado, reconhecido internacionalmente, se a gente aos 18 anos vai perder os meninos para o corte de cana. Não adianta educação pelo brinquedo. Só faz sentido se nós fizermos um pacto, entre nós educadores, de não perder nenhum dos meninos e meninas que sentarem na nossa roda aqui para o corte de cana.” Desde então, se passaram 22 anos e Tião conta que o pacto vem sendo cumprido. “Eu já perdi uns 15 pra Bituca, que é a Universidade de Música Popular, em Barbacena. Cinco pro balé Bolshoi, em Joinville…”

Como isso foi feito? Os educadores entenderam que era necessário ampliar a proposição do que faziam, criando estruturas em forma de plataformas.

“Os educadores se preocuparam em entender como partir do projeto, mas não ficar nele, e dele construir uma plataforma de transformação social. A partir do Ser Criança, nós criamos duas estruturas: Meu Lugar É Aqui, para cuidar do presente, porque ninguém tem que sair da sua região para ter condições de vida digna; e Cuidando dos Tataranetos, ou seja, como a gente vai garantir que as gerações que a gente não vai conhecer tenham condições de vida digna e sustentável. Essas duas lógicas nos levaram a pensar o território e olhar mais para a comunidade”, explica o criador do CPCD.

Tião acredita que foi um novo patamar atingindo pelo Centro, pois a partir dele os educadores passaram a se preocupar em sempre construir uma causa em cada lugar novo no qual chegam. “Uma causa é uma ideia, que está acima das pessoas, pra que todas as pessoas se envolvam, e depois o jeito de construi-la é a partir do jeito de cada um, das MDI.” Ana Paula Silva viveu essa evolução da atuação do CPCD em Araçuaí. Nascida na cidade, antes de atuar no Centro, Ana Paula se formou no magistério. “Eu tinha acabado de sair e fui convidada para a formação de educadores. No segundo dia, eu falei assim: ‘eu vou embora daqui, o que eu tô fazendo aqui, não sei o que é isso, esse povo eu acho que é meio maluco…”, ri ao lembrar. Em 2003, foi convidada para ser coordenadora e segue até hoje, sem pretensão de sair. 

“Eu fui aprendendo e fui me sentindo valorizada, descobrindo coisas do meu lugar que eu não valorizava. Quem está vivendo esse processo se sente valorizado e potencializa isso. Eu aprendi a valorizar as coisas do meu lugar, da minha cidade, as pessoas, as coisas simples”, orgulha-se a educadora.

Ana Paula fez parte da origem das Fabriquetas, do coral Meninos de Araçuaí e do cinema de Araçuaí.

As Fabriquetas, que são núcleos de produção de tecnologias populares, surgiram a partir da demanda dos jovens do projeto, que geralmente a partir dos 14 anos já começam a ter interesse ou necessidade em trabalhar e ganhar dinheiro. Para evitar que saíssem do Ser Criança, os educadores reuniram os jovens numa roda e perguntaram o que eles queriam fazer. Aos poucos, foram criadas fabriquetas, com apoio de financiamentos, como a fabriqueta de marcenaria e a de moda do Vale Jequitinhonha (bordados). Outras, mais recentes, são a de produção de softwares e a de produção audiovisual. “Cada geração foi criando uma fabriqueta. Foram demandas, na época não tinha o projeto idealizado”, conta Ana Paula.

A fabriqueta de produção audiovisual surgiu depois da construção do cinema de Araçuaí, que existe porque crianças e adolescentes do Coral Meninos de Araçuaí, ao receberem 40 mil reais por uma participação que fizeram na gravação do DVD de um show do Milton Nascimento, decidiram que gostariam de investir a quantia em algo para a cidade. Já o coral teve início ao final do primeiro ano do projeto Ser Criança. No final do ano, as crianças e os educadores quiseram fazer uma homenagem à Natura, em agradecimento pelo investimento no projeto, e optaram por fazer uma apresentação de canto aos funcionários da empresa. O presidente da Natura gostou tanto que decidiu investir no coral. Hoje, as crianças viajam para se apresentarem em diversas regiões do país, com a educadora Cléia Celestino da Silva. Ela também tem história longa com o CPCD.

“Tudo começou debaixo de um pé de amêndoa, lá na minha rua. Chega aquele tanto de mulher, nós dissemos ‘gente, que doideira’. E nos chamaram pra roda para brincar. Eu tinha 10 anos, eu e meu irmão fizemos parte. Foram anos como criança no Ser Criança, aprendendo e me descobrindo”, afirma Cléia. Depois, ela foi para a fabriqueta de marcenaria e começou a participar do coral. Seu primeiro trabalho foi como secretária em uma marcenaria. Mas uma das educadoras do CPCD achava que o lugar de Cléia era no Centro e a convocou para seguir esse caminho. Hoje, Cléia é coordenadora do coral. Perguntada sobre como foi sua experiência como criança no CPCD, ela não hesita em afirmar: “Eu não faltava um dia. Porque assim, toda dia era uma novidade. A ideia de que qualquer lugar é lugar pra aprender ficou muito marcado na gente. Qualquer criança que já foi do Ser Criança fala a mesma coisa, eu amo aquele lugar, foi o melhor lugar onde vivi minha infância. Porque foi lugar de aprendizado, mas também de descoberta como pessoa.”

Natália Vieira


é jornalista, atualmente editora do jornal Letra A, do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale/FaE/UFMG).
Interessada nas diversas possibilidades de narrativa e no que elas podem provocar e comunicar.

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