O caminho mais curto entre dois mundos é o texto
Professora envolvida na criação dos programas mais importantes de formação indígena dentro da UFMG, Maria Inês de Almeida conta sobre sua trajetória de confluências e alianças na produção de literatura indígena
Uma conversa entre Maria Inês de Almeida, Paula Lobato e Felipe Carnevalli
Quem se depara com a profusão de livros de autoria indígena disponíveis atualmente nas livrarias talvez não imagine o quanto a conquista desse espaço é recente e baseada em muita luta. Há apenas 10 anos, o consagrado pensador Ailton Krenak denunciava a quase inexistência de literatura indígena publicada no Brasil – diagnóstico que, felizmente, vem sendo transformado nos últimos anos. Se hoje as universidades cada vez mais abrem suas portas a estudantes e professores indígenas, e a produção editorial se vê tensionada pelas inúmeras vozes emergentes das aldeias, é graças à militância dos povos tradicionais pela ocupação desses lugares de hegemonia majoritariamente branca. Não raro, essa luta é realizada em aliança com pessoas que, reconhecendo seu lugar de privilégio (seja nas universidades, nas instâncias de poder ou no mercado editorial), abrem caminho para que essas outras vozes também sejam devidamente consideradas.
Esse é o caso de Maria Inês de Almeida, professora aposentada da UFMG, doutora em Comunicação e Semiótica, que, desde os anos 1990, criou o Programa Culturas Indígenas UFMG; coordenou o curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas da UFMG (FIEI/Prolind); coordenou o Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras, onde foram editadas e publicadas cerca de 130 obras literárias de autoria indígena produzidas e distribuídas em diversas escolas e territórios indígenas do Brasil; realizou o projeto MIRA! Artes Visuais Contemporâneas dos Povos Indígenas na direção do Centro Cultural UFMG e criou o ACIND (Acervo Indígena da UFMG).
Criado em 2002 pelas professoras Ruth Silviano Brandão e Lucia Castello Branco, o grupo Literaterras se dedicou, durante mais de uma década, a desenvolver projetos de escrita, leitura, edição e tradução, tendo como princípio as relações entre a imagem, a voz e a letra; a ficção e a vida; a criação poética e a memória; a escrita e a terra. Através da pesquisa com representantes de sociedades indígenas e afro-descendentes, os diversos caminhos para o conhecimento foram objeto de investigação do grupo, sempre em trânsito entre a prática ocidental da escrita e as diversas matrizes da tradição oral.
Percorrendo a memória do trabalho de mais de trinta anos – que continua vivo e pulsante –, Maria Inês nos conta como o contato com povos indígenas no contexto editorial foi responsável por esgarçar os limites de seu próprio conhecimento universitário, criando novas possibilidades de entender o que pode um livro diante de outros mundos.
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- Você tem uma longa trajetória envolvendo literatura indígena, desenvolvida principalmente no seu tempo de docência na UFMG. Como esse envolvimento com os indígenas começou dentro da universidade?
Entrei para a UFMG em 1994, e logo fui convidada pela professora Sônia Queiroz para trabalhar no projeto de extensão Quem Conta um Conto, Aumenta um Ponto. Ela desenvolvia esse projeto de literatura oral, sobretudo no Vale do Jequitinhonha, e eu resolvi puxar um ramo dele para a Serra do Cipó, região que frequentava muito. Resolvi “descer a Serra”, como se diz. Nesse mesmo período, a professora Márcia Spyer deu início ao projeto Bandeirinhas, também na Serra, de formação de professores da zona rural em toda a região do Cipó. Ela me convidou para trabalhar no Bandeirinhas com ensino de língua e literatura, e eu o articulei com o Quem Conta um Conto, Aumenta um Ponto para produzirmos nossa pesquisa.
Desde os anos 1970, para trabalhar na formação de professores de determinada região na área de literatura, o mais lógico e eficaz era que nós primeiro escutássemos a literatura daquele lugar. No fundo, a letra é absolutamente associada à terra. O que produz uma língua é, na verdade, uma paisagem. A paisagem faz parte, visceralmente, da literatura. Isso já vem do pensamento de Paulo Freire que, de alguma maneira, formou todos nós. Na época de resistência à ditadura, trabalhávamos a alfabetização de adultos ligada às comunidades de base, em um movimento político educacional que tinha raízes profundas, que chegavam até o exemplo de Ho Chi Minh, no Vietnã. Para que o povo vietnamita resistisse, conseguisse sobreviver e depois ganhasse a guerra, a primeira coisa que se fez foi uma campanha massiva de escrita e alfabetização.
“Que poder tem a escrita?” Essa questão movia nosso projeto, vinculado à Faculdade de Letras, na época encabeçado pela Sônia com colaboração da Lucia Castello Branco. Fomos nos fortalecendo juntas em nosso trabalho de escuta. Um pouco depois, surgiu o Programa de Implantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais, projeto da Secretaria Estadual de Educação, criado e coordenado por Márcia Spyer. Como eu já trabalhava com a Márcia, ela me convidou para que a ajudasse, integrando a equipe designada para criar o programa de implantação das escolas indígenas, cuja pedra fundamental seria a formação de professores indígenas. Isso foi, mais ou menos, no final de 1995. Quando ela me ligou fazendo o convite, a pergunta que eu fiz foi se havia índio em Minas Gerais. Eu, professora da UFMG, nem sequer sabia que existiam índios em Minas Gerais, para vocês terem ideia. Isso diz muito sobre nós, professores universitários no Brasil.
- E como se desenvolveu o Programa de Implantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais?
Em janeiro de 1996 começou, efetivamente, o curso de formação dos professores dentro do programa. Na época, criou-se um convênio entre a Secretaria de Educação, a UFMG, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a Funai. Esse convênio mantinha o curso, cuja parte presencial era realizada no Parque Estadual do Rio Doce. Fomos para lá logo no primeiro módulo, que calhou por acaso, ou por sorte, de ser literatura e língua portuguesa. Eu já entrei designada para dar aula de literatura e língua para os alunos indígenas.
Nesse contexto, havia 66 alunos, dos povos Maxakali, Pataxó, Krenak e Xakriabá. Obviamente não podíamos ensinar nada para aquelas pessoas, pois nem mesmo falávamos a língua deles. Parecia não haver comunicação possível. Logo no início, entendemos que o que faríamos não seria “ensino de língua e literatura”. Decidimos chamar a área que estávamos assumindo de “múltiplas linguagens”, e achamos melhor deixar que a literatura e a língua dos indígenas aflorassem naturalmente.
Primeiro, propusemos que eles filmassem o que quisessem no Parque do Rio Doce, com o equipamento que oferecemos. Levamos também uma mala de livros e combinamos que cada aluno passaria a primeira semana com um livro. No final, fizemos um seminário para compartilhar como foi a experiência de ficar a semana inteira com o livro. Isso foi uma coisa maravilhosa, foi o fundamento do trabalho do nosso grupo, o Literaterras.
- Nessa formação de professores indígenas vocês já começaram a produzir alguns livros de autoria coletiva indígena?
Em 1997, nós já tínhamos os primeiros livros prontos: uma coleção inaugural editada e uma revista linda (Bay – Educação Escolar Indígena em MG), todas bilíngues (em português e nas línguas de cada etnia). Nesse conjunto, havia um livro Maxakali que contava as histórias de antigamente. O Rafael Maxakali, um dos alunos, trouxe até um protótipo de livrinho que ele tinha feito na aldeia com um funcionário da Funai que dava aula para eles, ideia que obviamente aproveitamos. Fizemos também o Coisa Tudo na Língua Krenak, com os professores Krenak, que foi a primeira vez na história que eles escreveram a própria língua. Eles tinham a escrita estabelecida por um linguista, mas nunca tinham escrito. Também fizemos livros bilíngues com os Pataxó e os Xakriabá, destacando que o português falado por eles era a sua própria língua.
Começamos a trabalhar com essa ideia de que mesmo os indígenas que não têm mais a sua língua originária, como é o caso dos Xakriabá, tinham um português próprio, que era a língua deles. Em vez de interpretar aquilo como um dialeto do português, assumimos que era mesmo a língua xakriabá. Falo muito da importância de assumirmos a língua de cada etnia porque, no fim das contas, fui aprendendo que a prática editorial se trata de tradução. Eu não sabia falar nenhuma língua indígena, então como produzir literatura sem saber nenhuma língua? É um trabalho da ordem da tradução. Como escreveu Maria Gabriela Llansol, “o caminho mais curto entre dois mundos é o texto”. Comecei, então, a desenvolver com o CNPq a pesquisa de que literatura indígena é um processo tradutório, e que esse processo tradutório possível é, antes, editorial.
Em 1999, eu defendi minha tese de doutorado ao mesmo tempo em que essa turma de 66 professores indígenas em exercício se formou no Programa de Implementação de Escolas Indígenas de Minas Gerais. Nosso processo formativo foi coletivo e envolveu muito afeto. Nesse momento, as lideranças indígenas das quatro etnias (Xakriabá, Maxakali, Krenak e Pataxó) me chamaram para uma reunião logo após a formatura, e falaram: “Você nos representa na UFMG. Nós queremos que esses professores continuem o estudo deles na universidade e você é responsável por isso”. Era uma responsabilidade e tanto!
Nós, então, agendamos uma reunião dessas lideranças com o reitor da época, o César Barreto, que instituiu uma comissão para estudar como os indígenas iriam para a UFMG. Ficamos seis meses trabalhando com essa comissão, que acabou se dividindo em alas que pensaram projetos distintos: a Formação Intercultural Indígena e o Indígenas Multicultural no projeto Veredas, que já existia na UFMG. No fim, a reitoria escolheu implementar o projeto nas Veredas, com o qual eu não estava envolvida. Passei, então, a refletir como eu continuaria o trabalho com os indígenas.
- Foi desse desejo de continuidade que o grupo Literaterras foi criado?
A Lucia Castello Branco e a Ruth Silviano Brandão me chamaram para participar de um projeto da CAPES, em convênio com a França, em que estavam pretendendo criar um núcleo de pesquisa chamado Literaterras. Quando eu assumi a coordenação do grupo, em 2002, trouxe os indígenas comigo e, com a ajuda da professora Conceição Bicalho, da Escola de Belas Artes, conseguimos um espaço na Biblioteca Central (BU-UFMG), onde o Literaterras se consolidou.
Começamos a trabalhar com produção literária e lá fizemos um trabalho que eu considero, talvez, o mais lindo de todos: a caixinha Literatura Xakriabá. Ela foi feita com o material desses anos de formação dos professores no magistério, todo esse trabalho feito no Parque do Rio Doce e nas aldeias. Tudo isso foi canalizado para aquela caixinha. Na época, eu fazia as coisas do meu bolso, porque tínhamos, no máximo, bolsistas de extensão do programa Culturas Indígenas na UFMG (criado em 2002 como laboratório intercultural), mas não havia outras verbas. Fizemos apenas um protótipo da caixinha, que eu paguei para ter como modelo, vender a ideia e, assim, conseguir recursos para imprimir a tiragem necessária para os cerca de 3 mil alunos das escolas Xakriabá.
Quando o protótipo da caixinha foi apresentado pelo Kleber Gesteira, coordenador da educação indígena no MEC, ao então Ministro da Educação Tarso Genro, foi sugerido o repasse de uma verba de 1 milhão de reais do Banco Mundial para a UFMG, para que o Literaterras fizesse outros livros com os indígenas. Escrevi um projeto da noite para o dia, “Produção, edição e distribuição de material didático para as escolas indígenas”, que deveria ser desenvolvido com a condição de que fossem produzidos livros de autoria indígena. Com isso, criamos no MEC a Comissão Nacional de Apoio à Produção de Material Didático Indígena (Capema), e abrimos um concurso para receber material que pudesse ser editado pelo Literaterras.
Esse trabalho começou no início de 2005, e deveria durar um ano. Nem me lembro o número de livros, mas conseguimos fazer muitos. A Faculdade de Letras apoiou o projeto através do Laboratório de Edição, criado pela professora Sônia Queiroz, e logo vimos o potencial de formação no campo da edição daqueles alunos que estavam trabalhando com isso. Nós formamos muitos editores, que depois seguiram carreira e hoje tocam seus próprios projetos editoriais.
- Como o seu trabalho no Literaterras se desdobrou em outras frentes na universidade, envolvendo programas mais amplos de formação de educadores indígenas?
Entregamos esse trabalho para o MEC e, como o rendimento foi tão acima do esperado, eles propuseram continuar com uma verba ainda maior. Contribuímos para a melhoria na qualidade do ensino na Faculdade de Letras e para a criação do Bacharelado em Edição, acredito, com essa produção literária dos índios dentro da UFMG. Isso porque, para aceitar a proposta do MEC, eu coloquei como condição que o novo recurso também pudesse custear bolsas de estudos e financiar não apenas livros, mas filmes, exposições e outras formas de transmissão de conhecimento.
Em 2005, o MEC criou o Prolind, um programa para as licenciaturas indígenas, e o Kleber entrou em contato comigo pedindo para encaminharmos aquele projeto que apresentamos para a reitoria da UFMG e que não havia sido aceito. A partir daí, criamos a Formação Intercultural de Educadores Indígenas da UFMG, o famoso FIEI, que foi implementado na Faculdade de Educação, porque o objetivo era que essas licenciaturas fossem incorporadas pelas respectivas faculdades de educação das universidades. Quando o Prolind foi extinto, acabou a educação indígena na maioria das universidades, mas a UFMG absorveu esse programa e criou uma licenciatura regular na Faculdade de Educação a partir da turma piloto que ingressou em 2006 e se formou em 2011.
Com o Literaterras sob minha coordenação, custeamos toda a produção de livros no FIEI entre 2006 e 2013, utilizando recursos do MEC. Foram vários livros porque, em vez de monografias acadêmicas, propusemos aos professores indígenas estudantes do FIEI que desenvolvessem materiais didáticos para seus alunos nas escolas das aldeias.
- Como era para as autoras e os autores indígenas com os quais você trabalhou a ocupação desse território do livro? O que a publicação impressa significa para eles?
Como cada etnia é única, a aproximação de cada comunidade com o livro passa pela sua história de contato com a literatura. Os Xakriabá do Norte de Minas, por exemplo, têm a mesma tradição poética do Nordeste (do cordel, do desafio, das loas), que foi trazida pelos missionários, e por isso já tinham contato com os livros desde muito tempo – uma relação muito próxima à ocidental. Já a literatura dos Maxakali (localizados entre Minas e Bahia) está concentrada nos cantos e nos rituais, que por sua vez são ligados a seus yãmiy (ou povos-espírito). O livro, para os Maxakali, também é um yãmiy, é um ser dentre muitos outros seres que fazem parte do seu cotidiano ritualístico. Já os Huni Kuin, do Acre, me mostraram uma outra relação com a literatura: eles me ensinaram o conceito de livro vivo.
Para uma pessoa de fora aprender e escrever o Hãtxa Kuin, a língua dos Huni Kuin, não basta apenas estudar. É preciso tomar ayahuasca. Isso porque, para você falar Hãtxa Kuin, você precisa se tornar um Huni Kuin, e isso só acontece se você se abrir com a ayahuasca. Ou seja, escrever nessa língua faz parte do devir indígena, está inserido em uma poética do mito, das narrativas ancestrais, do conhecimento necessário para se transformar em um “homem verdadeiro”. O livro faz parte disso: é uma narrativa que se transformou em impresso, mas que também existe em forma de pintura, som, verbo ou imagem, proporcionada pela ayahuasca. Um livro vivo é aquele que abriga uma escrita tridimensional, já que escrever, para os povos indígenas, também pode ser sonoro, verbal e visual.
- Essa ideia de uma escrita tridimensional, que pode ser ao mesmo tempo som, imagem e palavra, tem muito a ver com uma frase que nos chamou atenção em um de seus textos, que diz que “a literatura indígena é da natureza do projeto gráfico” – entendendo também que um projeto gráfico pode exceder àquilo que nós, ocidentalmente, definimos como tal. Você poderia nos explicar melhor essa relação?
Falar que a literatura indígena é da ordem do projeto gráfico é equivalente a dizer que o livro indígena é um livro vivo. Primeiramente, a literatura indígena é sempre um projeto, ela não acaba nunca. Muitos indígenas com os quais eu trabalhei desprezavam o livro depois de pronto, porque imediatamente surgia o desejo de fazer um outro melhor. Qualquer livro que foi feito, se não continuar, se não for refeito, se não se transformar em outro ad infinitum, é um objeto morto, não serve para nada.
Além de ser um projeto, o livro é gráfico, porque é um risco. “Poesia é risco”, como dizia Augusto de Campos. Mas o risco, além de poder ser impresso no papel, também pode ser impresso no ar, pode ser performado, transformado. Tanto que a maioria dos escritores indígenas atuais também são poetas, artistas, professores e ativistas. Eles valorizam muito o trânsito entre tudo o que eles podem vir a ser. Para eles, não existe essa ideia de uma pessoa ser alguma coisa: ela está sendo, já foi, e será algo diferente se ela assim quiser. Cada pessoa é um movimento, e não poderia ser de outra forma com o livro. O livro é um movimento, é vivo, e nunca vai sair de condição de projeto – um projeto que sempre estará sendo feito e refeito.
Ao contrário do que o senso comum imagina, a coisa mais preciosa que os indígenas nos ensinam é que não existe essa história de pensar em termos identitários. A identidade é uma falácia, uma armadilha para colocar as pessoas em uma imobilidade equivocada. Nós devemos levar a sério a ideia de que o destino de cada um de nós é ser outro. O projeto gráfico projeta o ser, assim como o livro nas mãos dos indígenas se trata menos do que ele é, e mais do que ele poderia ser. É nesse sentido que o projeto gráfico é o livro vivo. Não há nada definido, fechado ou consolidado. Me arrisco a dizer, com Llansol, que “não há literatura, importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros”. O gesto de abrir caminho a outros é o projeto gráfico. Quando pensamos em um livro, devemos pensá-lo na sua incompletude, na sua falha. Como disse certa vez Guimarães Rosa, “o livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”.
- O fato de a existência de um livro estar justamente naquilo que ele não conseguiu abarcar, ou seja, naquilo que está fora dele, nos traz de volta ao nome do grupo, “Literaterras”, que diz muito sobre uma relação possível entre a literatura e a terra, a paisagem, ou o extracampo do livro, se assim podemos dizer. Você pode falar um pouco sobre essa relação entre a terra e a literatura?
Literaterras é um termo oriundo de um texto chamado Lituraterra, que Jacques Lacan proferiu em 1972, logo após sobrevoar a Sibéria em uma viagem de volta do Japão. Enquanto sobrevoava as estepes russas, ele via manchas escuras por entre as superfícies nevadas, que poderiam ser o resto de alguma construção, de alguma fábrica. Ele, então, imaginou a letra (letter) como lixo (litter), ou aquilo que sobra, o resto, assim como esses fragmentos de construção entre a neve. Relacionando a literatura à paisagem que viu, Lacan pensou que a letra seria exatamente aquilo que aparece quando falta a paisagem, ou seja, um risco, um vestígio, um resto. A letra é o que restou quando a paisagem não está mais ali.
Pode parecer uma ideia complexa, mas ela se materializa de forma muito forte para os Maxakali, por exemplo. Os Maxakali são um povo que, hoje, vive em uma das menores terras indígenas demarcadas no país, no Vale do Mucuri (MG), cercada por um território tomado por fazendas e monoculturas. A Mata Atlântica, sua floresta ancestral, deixou de existir fisicamente há muito tempo, mas ainda persiste firme nos seus vastos repertórios de cantos. É impressionante: os Maxakali têm um canto diferente para cada bicho que existia na mata, para cada planta, para cada referência geográfica de seu território ancestral. E, a partir desses cantos, que são como descrições físicas detalhadas, eles conseguem desenhar com destreza cada uma das espécies, inclusive aquelas que as gerações mais novas nunca tiveram a oportunidade de conhecer. Quando fizemos o livro Maxakali conta sobre a floresta, descobrimos que eles conheciam a Mata Atlântica como a palma da mão, mesmo sem nunca a terem visto – tudo através dos cantos que eram passados dos mais velhos aos mais novos. Isso não é nada menos que da ordem da literaterra, do resto, do que sobrou quando a paisagem não existe mais.
Quem visita o território maxakali sabe que em volta só tem pasto, e que os animais que eles caçavam em tempos remotos hoje estão em extinção. Para nossos olhos míopes, a Mata Atlântica não está mais ali, mas a literatura ainda está. O canto ainda existe como essa letra que é terra, que transita entre o real e o simbólico. Então, para os Maxakali, se a letra existe, a mata também existe, porque ela foi preservada nos cantos, que agora se transformam em livros. Isso é literaterra.
- Para os indígenas com quem você trabalhou, o que mais poderia ser interpretado como letra e como escrita, para além do entendimento ocidental desses termos?
Certa vez, fui dar um curso de literatura para indígenas das etnias Kayapó, Tapayuna e Panará que estavam se formando professores. Foi a primeira vez que eles escutaram a palavra “literatura” em português. Eu nunca vou esquecer que, assim que pousei em terra firme, o Perankô Panará puxou meu braço e me perguntou, à queima roupa, o que era literatura. Na hora, eu estava tremendo, tensa por conta do avião que balançava e, na loucura do momento, respondi a coisa mais sábia que eu poderia ter dito – inclusive, nunca mais abandonei esse conceito. Eu falei: “Literatura é aquilo que a gente faz com as letras”.
E a questão maior é: que letras são essas? Qual é o conceito de letra? Normalmente, nós e nossas crianças aprendemos que letra é aquele elemento do alfabeto latino, e nem chegamos a pensar nos outros alfabetos (no árabe, no chinês, no maia, por exemplo). Se há muitos alfabetos, há também muito mais tipos de escrita. Os grafismos indígenas são letras, no meu entendimento, assim como os ideogramas chineses. A letra não é só a representação de um fonema, a escrita não é somente a escrita de fonemas. O fonocentrismo é a primeira coisa que destruímos na hora de fazer um livro com os indígenas, porque aprendemos, em diálogo com eles, a interpretar a letra enquanto paisagem, enquanto literaterra. Não quero dizer com isso que a letra é uma representação da paisagem – ela é a própria paisagem. Na nossa lógica binária, é difícil entendermos isso, mas as coisas são muito mais do que parecem. Como eu disse, os indígenas me ensinaram que tudo pode vir a ser outra coisa.
- Pensando agora no lugar do mercado editorial e nesses regimes políticos de produção de livros – de onde é feita, inclusive, a escolha de publicar certos autores em detrimento de outros –, é inevitável nos indagarmos sobre o impacto que essas produções indígenas vêm suscitando na produção de conhecimento. Pensando na projeção que esse tipo de publicação vem tomando hoje, como você enxerga a produção indígena na contemporaneidade?
Talvez o gesto inaugural da literatura indígena tenha sido o livro Antes o mundo não existia, editado pela Berta Ribeiro e publicado em 1980. Posteriormente, com a Constituição de 1988, foi aberto um espaço para que o Estado brasileiro assumisse a existência de diversas línguas indígenas, e junto a isso, a necessidade de haver educação nas próprias línguas nativas. A partir desse marco legal, surgiram vários projetos e programas de formação de professores e, consequentemente, essa literatura indígena da qual eu participo, que é da ordem da educação e da autoria coletiva. O entendimento da autoria coletiva foi, inclusive, um grande desafio para o mercado editorial moderno, que não conseguia assimilar essa possibilidade.
Ao mesmo tempo, muitos autores indígenas começaram a se projetar enquanto autores nos moldes ocidentais, como o Daniel Munduruku, o Ailton Krenak, a Graça Graúna e o Olívio Jekupé, entre outros. Esses, sim, foram imediatamente assimilados e absorvidos pelas editoras comerciais, e rapidamente se tornaram bibliografia nas universidades.
Mas a literatura com a qual eu trabalho é outra. São dois mundos diferentes, embora estejam interligados e se reforcem. Os autores de grande projeção, como o Ailton Krenak e o Kaká Werá, ajudam – com seus nomes, sua visibilidade e suas qualidades – os professores indígenas a fazerem essa literatura que é muito importante para as escolas nas aldeias, mas que, em termos comerciais, no máximo encontrarão lugar nas estantes de literatura infantil. Todos os livros que fiz junto com os indígenas foram pensados para serem livros didáticos. Porém, isso não significa que eles sejam apenas para as crianças, porque nas aldeias a escola é de todo mundo: dos bebês, das crianças, dos idosos e até dos cachorros. O livro nunca é feito com o objetivo de ser didático para um grupo específico. Todo mundo vai aprender com ele.
- Sobre essa questão da autoria individual, em um dos textos do volume da Revista da Academia Mineira de Letras que você editou junto com o Ailton Krenak, ele diz que, quando é chamado para fazer um livro a partir de suas falas, ele se pensa como um narrador em vez de um autor. Além disso, ele afirma que se entende como um sujeito coletivo, atravessado por todas as vivências que tem não só com pessoas da sua aldeia, mas também com outras etnias com as quais tem a alegria de se encontrar. Será que isso subverte, de certa forma, o lugar do autor individual?
Com certeza. A questão do individualismo não pode ser desatrelada do capitalismo e tem a ver com a indústria do livro. Sempre que converso sobre isso com o Daniel Munduruku ou com o Ailton, eu noto que não há uma separação entre a oralidade e a escrita, elas estão em uma linha de continuidade. Quer dizer, os indígenas não dividem o mundo oral do escrito, não há contradição. O Ailton, apesar de ter vários livros publicados, não se considera uma pessoa que rompe com a oralidade. Pelo contrário, ele fala: “Eu sou um falador. Na maioria dos livros publicados em meu nome, as pessoas escrevem o que eu falo”. Mas ele escreveu muito também, sempre a partir daquilo que escuta dos mais velhos, ou de outras pessoas com as quais ele aprende. O Ailton é alguém que transita entre dois mundos: o mundo branco editorial e o mundo da aldeia editorial. E esses dois mundos não são separados, porque o livro em si, que hoje tanto circula nas aldeias, é resultado do mundo colonial. Algum povo indígena inventou o livro nesse formato, encadernado, em brochura? Que eu saiba, não. Os Maias tinham os códices, mas esse é outro tipo de livro. Esses como conhecemos hoje vieram do contexto europeu.
Por outro lado, os Tikuna, povo mais numeroso da Amazônia Brasileira, inventaram seu próprio papel (que eles chamam de tururi), muito antes da chegada dos colonizadores. Dizem que eles faziam esse papel de entrecasca de árvore, desenhavam nele um peixe e o colocavam no fundo do igarapé para o peixe de verdade ser paralisado e eles poderem pegá-lo. Era uma técnica de pesca inacreditável, que usava o desenho sobre papel. Da mesma forma que se desenvolveu a escrita alfabética em vários povos, o papel também se desenvolveu em várias regiões. Já o livro como o conhecemos, em forma de volume, foi fabricado a partir da invenção da imprensa no século 15. É uma invenção europeia. Retomo essa história do livro porque, quando estamos fazendo alguma publicação junto com os indígenas, é como se estivéssemos inventando o livro ali, naquele momento. Quando me encontro com os Maxakali, com os Panará, com os Kayapó, é como se eu tivesse saído da história e voltado à pré-história do livro, começando tudo de novo naquele contexto cheio de aprendizado e invenção. Poder sair da história é uma liberdade muito grande, e só os indígenas são capazes de nos proporcionar essa incrível experiência.
- Maria Inês, o Literaterras ainda continua? Como esse projeto se desdobra hoje?
Eu me aposentei em 2016 e fui ser professora visitante da Universidade Federal do Acre (UFAC), para trabalhar com projetos relacionados à floresta, aos Huni Kuin e outros povos dali. Fiquei quatro anos criando o Laboratório de Interculturalidade, que está implantado no Programa de Pós-Graduação em Letras, Linguagem e Identidade. Em outubro, eu terminei o meu contrato com a CAPES, passei a coordenação para um colega da UFAC e estou de novo na situação de professora aposentada.
Quando eu me aposentei, me deparei com todo aquele acervo importantíssimo do Literaterras, formado ao longo de 14 anos, e resolvi criar o Acervo Indígena da UFMG (Acind), para o qual eu doei todo o material. Infelizmente, não teve ninguém que quisesse assumir a continuidade do Literaterras dentro da universidade. Essas coisas costumam acontecer. As escolas se formam diante de um projeto e depois se dissolvem, passando a existir na lembrança. Igual à vida: nós não morremos e passamos a existir só na lembrança dos outros? Entretanto, apesar de o Literaterras ter se dissolvido, ele se disseminou. Foi um processo da ordem do infinito: vai se diluindo, diluindo, diluindo, diluindo, até se disseminar como pólen.
Para mim, é uma alegria poder olhar para o próprio trabalho e ver que ele não foi inútil, que está vivendo nas novas gerações. Fico feliz em saber que livros de autoria indígena ainda continuam sendo feitos, e que os mestres e mestras dos saberes tradicionais estão cada vez mais presentes dentro da universidade, trazendo ensinamentos e desestabilizações. É muito importante nos desestabilizarmos. Esse é o sentido da vida de qualquer professor.