Arte que vem da terra
Cerâmica Saramenha tem DNA mineiro e resiste há mais de 200 anos graças a figuras como Mestre Leonardo, de Ouro Branco, mas inspira cuidado para que essa rica tradição não se perca
Com seu aspecto vidrado, obtido a partir de elementos metálicos presentes no barro, a Cerâmica Saramenha chamou a atenção de viajantes estrangeiros que passaram pela região da antiga capital de Minas Gerais, Vila Rica, nos primeiros anos do século XIX. Para o botânico e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, a produção mineira teria total condição de rivalizar com as da Europa e, para o mineralogista inglês John Mawe, sua matéria-prima seria superior à empregada nas famosas porcelanas de Sèvres, na França. A despeito do entusiasmo dos viajantes e do potencial identificado por eles, a manufatura que produzia peças como pratos, sopeiras, bilhas para água, vasos, potes, canecas, bules e outros tipos de utensílios sobreviveu a duras penas, e acabou fechando as portas cedo, em 1822. A técnica de produção da cerâmica, no entanto, persiste até hoje, graças ao esforço de pessoas como Silvestre Guardiano Salgueiro, o Mestre Bitinho (1918-1998), e seu discípulo Leonardo Ricart dos Santos Barros, nascido em 1977.
Mestre Bitinho aprendeu a fazer a cerâmica com seu pai, Antônio Guardiano Salgueiro, que, por sua vez, aprendeu com o avô, Pedro de Deus Salgueiro. Os filhos de Bitinho, porém, não se interessaram em dar continuidade ao legado, que com isso esteve sob risco de extinção até o início dos anos 1990, quando uma iniciativa promovida pela prefeitura de Ouro Branco, onde morava, em parceria com o BDMG Cultural, contribuiu para um destino diferente. Na ocasião, Bitinho ministrou uma oficina que tinha o intuito de divulgar e preservar a técnica, repassando-a a possíveis discípulos. Filho de um funcionário da divisão de cultura da prefeitura que estava envolvido na organização do projeto, Leonardo, à época adolescente, foi um dos primeiros inscritos, e a afinidade entre ele, a cerâmica e o mestre foi instantânea.
“Eu sempre fui muito voltado para esse lado artístico, assim como meu pai, que era músico. Ele nem me deu a opção de falar não, chegou em casa dizendo que estava organizando o curso e que meu nome já tinha sido posto na lista de participantes”, conta o ceramista, que agora é conhecido como Mestre Leonardo. “Mas, assim que eu fui apresentado ao mestre e o vi fazer uma peça, foi aquele momento único, o negócio que a gente chama de paixão à primeira vista. Eu fiquei encantado com aquilo. Desde então, fui aprendendo, aprimorando, pegando mais habilidade. E foi uma coisa que se arraigou, mesmo. Eu nunca deixei de fazer cerâmica”.
A Cerâmica Saramenha foi trazida de Portugal para o Brasil pelo padre José Joaquim Viega de Menezes, por volta do início dos anos 1800. Uma fábrica da cerâmica foi estabelecida na região de Vila Rica, dentro da Chácara Saramenha, então propriedade do cirurgião-mor Antônio José Vieira de Carvalho, e é por conta disso seu nome. Ela tem por características os tons amarelados, por vezes com pontos esverdeados, amarronzados e negros, cores que se constituem a partir de chumbo e de óxidos metálicos, como o cobre, o ferro e o manganês. Outro traço que a identifica é a queima realizada em baixa temperatura, que atinge, no máximo, 1.000ºC.
Diante da extinção da manufatura na Chácara Saramenha, a sobrevivência das práticas e técnicas de confecção da cerâmica, no contexto da cultura local, aconteceu por meio da transmissão do conhecimento pelo contato direto do mestre de ofício com o iniciado, em geral entre familiares, de geração em geração. As peças tinham como função primordial o uso no dia a dia, até que Mestre Bitinho passou a dar a elas um tratamento artístico. “São desenhos em relevo, peças com frutas, uvas, figos, coisas que eram plantadas na região. Tudo isso foi o Mestre Bitinho que introduziu. Até ele, elas não tinham esse apelo de ornamentação, eram apenas utensílios. Hoje são coisas maravilhosas, assim como eram as peças que ele fazia”, explica Suely Rufino, professora especialista no ensino de artes visuais e moradora de Ouro Branco.
Outro nome foi importante para o encontro entre os dois mestres: Pedro Arcângelo Evangelista (1943-2006), conhecido como Petrus. Amigo de Bitinho e professor da Fundação Artística de Ouro Preto, ele foi o responsável por propor a oficina fomentada pela prefeitura e o BDMG Cultural.
“Foi ele quem descobriu a raridade da cerâmica, depois de fazer uma pesquisa grande. Chegou a ir até Portugal, em busca de vestígios dela lá, mas não encontrou. Rastreando no Brasil, mais especificamente aqui em Ouro Branco, ele concluiu que o último detentor da técnica de fato era o Mestre Bitinho”, lembra Mestre Leonardo.
O pupilo acompanhou seu mestre na produção até seus últimos dias de vida, em 1998. Porém, como nunca conseguiu fazer da cerâmica seu meio de subsistência e precisava conciliar a dedicação a ela com outro trabalho, após a morte de Bitinho, Leonardo acabou se distanciando da técnica durante o tempo em que morou no Espírito Santo. Novamente, foi Petrus quem lhe trouxe de volta para a Saramenha, convidando-o, no início dos anos 2000, para integrar um projeto que promovia o resgate cultural de práticas do artesanato mineiro. De lá pra cá, o ceramista não apenas não parou, como vem ampliando sua atuação – ainda que continue exercendo o ofício nas horas vagas de seu emprego principal.
Movimento pela preservação
Em 2012, com o apoio da Gerdau Açominas, empresa para a qual Leonardo trabalha, foi inaugurada a oficina de Cerâmica Saramenha Mestre Bitinho, que é onde ele produz suas peças e também ministra cursos. Além disso, Leonardo apresenta a cerâmica para alunos de escolas e faculdades da região. Também está preparando um livro para registrar a história e a memória da técnica. “Mesmo a gente sabendo da importância dela, muitas pessoas daqui não conhecem a cerâmica. Gente de fora conhece, mas aqui dentro de Ouro Branco mesmo muitas pessoas não estão cientes dessa história, não sabem a importância cultural que ela tem”, alerta o mestre.
A Cerâmica Saramenha recebeu registro definitivo de patrimônio imaterial de Ouro Branco em 2013, e hoje conta com um espaço mantido pela prefeitura da cidade, em que obras de Mestre Leonardo ficam expostas permanentemente. Aliás, a matéria-prima encontrada na região é uma das responsáveis pelas características que distinguem a Saramenha das demais cerâmicas. “É um barro escuro, quase preto. Por conta dele, é uma cerâmica que não utiliza tinta, nem verniz. Aquele brilho final dela são pigmentos metálicos, que a gente mesmo prepara, os óxidos. E na segunda queima ela dá um aspecto de vitrificação”, explica Leonardo.
Apesar de todo o reconhecimento e do esforço pela preservação e divulgação da Cerâmica Saramenha, por parte tanto de Mestre Leonardo quanto do poder público e de entidades do setor privado, ainda não apareceu um discípulo que garanta a continuidade da prática. As filhas dele, de 11 e 17 anos, ainda não deram sinal de que possam fazê-lo e, embora tenha encontrado alunos que demonstraram aptidão para isso, ninguém se habilitou a assumir a responsabilidade, por ora.
“Minha maior vontade é ver pessoas novas, novos discípulos fazendo cerâmica. Que os jovens, principalmente, tenham a oportunidade de conhecer, de valorizar isso, saber o quanto eram difíceis as coisas antigamente e dar valor, realmente. Eu sinto essa responsabilidade de repassar essa consciência”, diz.
Para Suely Rufino, Mestre Leonardo precisa de mais apoio. “Se ele não tiver incentivo para encontrar pessoas que ajudem a dar continuidade, que venha da prefeitura, do estado, alguma coisa assim, a Cerâmica Saramenha vai acabar”, alerta. De toda forma, a professora, que se interessa pela preservação desse bem cultural desde os tempos de Mestre Bitinho, e conhece Leonardo, segundo ela mesma, “desde antes dele nascer”, celebra o seu trabalho. “Eu fiquei encantada quando descobri que ele tinha se tornado um continuador da cerâmica. O trabalho que ele tem feito esses anos todos é maravilhoso”.