Fabulações para um cinema de rua (e mais)
Um breve ensaio sobre limites e possibilidades do arquivo, e sobre o que uma fotografia pode nos dizer sobre passados, presentes e futuros
Em agosto de 2017, Juiz de Fora deu adeus ao seu último cinema de rua. O Cine Palace, localizado no coração da cidade, fechou as portas após quase setenta anos de funcionamento, deixando oco o edifício art déco tombado que ocupa uma das esquinas do cruzamento entre as ruas Halfeld e Batista de Oliveira. Por razões ainda difíceis de enumerar, o Palace resistiu por mais tempo ao destino trágico dos outros dezesseis cinemas que a cidade chegou a ter entre 1950 e 2015: das mudanças bruscas de uso — que transformavam os cinemas em salas de exibição para filmes pornográficos, boates, hotéis, entre outros — às demolições, Juiz de Fora viu extinguir-se, aos poucos, não apenas uma opção de entretenimento, mas também uma parte fundamental de sua vida cultural e da socialização no centro e nos bairros.
Foi nessa época o meu primeiro contato real com a pesquisa de arquivo. A notícia do fechamento do Cine Palace se espalhou e, em poucos dias, eu já havia me tornado uma das responsáveis pelo levantamento de notícias de jornal, fotografias e qualquer outro documento que pudesse auxiliar o recém-criado coletivo Salve Cine Palace — grupo formado por estudantes de arquitetura, comunicação social e artes, além de cineastas e outros representantes da classe artística— a se preparar para os meses de mobilização que estavam por vir. Entrei em contato com a Divisão de Patrimônio Cultural, para ter acesso aos processos de tombamento; visitei pela primeira vez o Arquivo Histórico de Juiz de Fora, que guarda edições originais da maior parte dos jornais que circularam na cidade ao longo do século XX e que, certamente, haviam noticiado os momentos de glória e decadência do nosso cinema; entrei em contato com a Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage sobre o acervo de João Carriço, cinejornalista juizforano importante no cenário do cinema nacional que, além de registrar a cidade em vídeo e em fotografia ao longo das décadas de 1930, 1940 e 1950, havia exibido uma de suas produções na inauguração do Cine Palace.
Não é preciso dizer que as evidências armazenadas pelos arquivos de Juiz de Fora sobre a incontestável importância do cinema para a cidade não foram suficientes para barrar o outro processo de arquivamento — esse, definitivo — que já estava em movimento. Em agosto de 2017, compareci à última sessão do Palace e, semanas depois, recebi pelas redes as imagens do interior demolido, se preparando para receber a filial de uma loja de departamentos.
A insuficiência dos arquivos no papel de guardião das histórias e na salvaguarda das “importâncias” não é uma prerrogativa do Cine Palace. Essa insuficiência parece atravessar de forma crônica as narrativas envolvendo a história de Juiz de Fora, especialmente em seus cruzamentos com a cultura. A pesquisadora, curadora e cineasta Ariella Azoulay, no livro Potential History, alerta para o entendimento do arquivo não como uma organização ou um edifício, mas como uma prática, um regime de categorização que antecede a instituição e sobre a qual ela mesma se ergueu. A insuficiência de que falo aqui, portanto, não equivale a uma quantidade insuficiente de documentos ou a uma incompetência por parte dos trabalhadores do arquivo, mas à ideia de que o arquivo em si opera a partir dessa insuficiência: da violência de decidir o que fica e o que é descartado; da definição do que está relegado ao passado e o que ainda está em plena operação; da categorização do que é evidência e do que não passa de especulação.
A história oficial de Juiz de Fora, disseminada no senso comum e reiterada pelos meios de comunicação, pelo ensino nas escolas e por centenas de documentos de arquivo, se vangloria de um pioneirismo industrial e de uma sociedade vanguardista, que a fez receber a alcunha de “Manchester Mineira”. No processo de solidificação dessa história opera, também, a insuficiência nada neutra do arquivo: não é coincidência que abundem fotografias de indústrias têxteis e manchetes de jornal sobre a primeira hidrelétrica da América Latina e que sejam escassas as menções à extrema relevância da cidade na rede do tráfico de pessoas escravizadas em Minas Gerais; que as tropas do general Olímpio Mourão Filho tenham sido amplamente fotografadas e noticiadas em sua volta à cidade após o sucesso golpe militar de 1964, mas que as salas de tortura dos batalhões e delegacias ainda permaneçam apenas como um borrão (ou, talvez, nem isso) no imaginário da população; que o famoso footing da Rua Halfeld tenha sido celebrado pela literatura local, sem que ficasse também arquivada a informação de que até a caminhada pelas ruas do centro era racialmente segregada.
Como lidar, então, com essa insuficiência? Abandonar os arquivos? Descreditar as instituições que, de uma forma ou de outra, conscientemente ou não, tenham contribuído para esse procedimento violento? Ou há uma forma de lidar com essas imagens e documentos sem reforçar a lógica imperial dos arquivamentos? A pesquisadora e escritora americana Saidiya Hartman, também confrontada com essas perguntas ao longo de sua trajetória de pesquisa, desenvolveu uma prática de escrita chamada fabulação crítica: uma forma de se engajar crítica e criativamente com os fragmentos do arquivo, criando o retrato mais completo possível da vida dos cativos (e outros vencidos) sem contentar-se com as insuficiências impostas por seus limites imperiais.
A intenção não é dar voz aos despossuídos, mas se permitir imaginar o que não está contemplado pelo regime das evidências; uma história escrita com e contra o arquivo, simultaneamente.
Seria, então, possível encontrar nos arquivos juizforanos histórias alternativas à narrativa da Manchester Mineira? Partindo dos mesmos fragmentos arquivísticos que foram e ainda são usados para corroborar a história oficial de Juiz de Fora, seria possível construir uma crítica de suas evidentes ausências e apagamentos? Que história seria possível fabular para o cinema, o centro e a cidade a partir dos fragmentos encontrados pela busca?
Munida desse novo método fabulatório, retomei, então, minha pesquisa, agora explorando os arquivos de imagens dos blogs juizforanos que reúnem fotografias antigas da cidade. Digitei como termo de busca os nomes das ruas que se cruzam para dar origem à esquina do Cine Palace. De todas as imagens encontradas, uma me chamou especial atenção (é a fotografia que abre este texto). As fachadas de mármore preto, a porta pantográfica e os cartazes denunciaram a localização do clique e logo reconheci o cinema como pano de fundo do registro. À esquerda, em um dispositivo especial, é possível ver o cartaz do filme Mulheres Liberadas, com o selo de “liberado pelo conselho superior de censura”, e uma placa que parece, ao mesmo tempo, um alerta e um chamariz publicitário: “este filme mostra ao público cenas altamente eróticas que o tornaram um clássico”.
Mas é o centro da composição que atrai o meu olhar e a minha curiosidade: de pé em frente a um dos cartazes, usando um lenço claro na cabeça e com o rosto quase perfeitamente paralelo à lente da câmera, uma mulher negra amamenta o bebê que leva nos braços, com a gola do vestido semiaberta e parte do seio à mostra. Repousa no chão, ao seu lado, uma bolsa grande, talvez uma mala de viagem. Não sabemos seu nome e nem o do bebê, se o homem que aparece na foto é um estranho ou se estavam ali juntos. Não sabemos quem estava por trás das lentes ou se o ano do clique é o mesmo ano da estreia do filme, 1982.
Não fosse esse referencial temporal, não saberia fazer nem um palpite sobre em que década a foto foi tirada, pois, apesar de as roupas do homem e o estilo das fontes utilizadas na propaganda do cinema apontarem para uma direção, a figura da mulher com o lenço e o bebê parece apontar para outra. Há algo de anacrônico sobre a sua postura e a forma como a mala espera ao seu lado. Não consigo olhar para ela sem me lembrar imediatamente de Carolina Maria de Jesus, talvez pelo icônico lenço na cabeça, ou pela companhia da criança, ou talvez por sentir, olhando para a foto, que as palavras que Carolina usa para descrever a cidade em seu diário poderiam ser muito parecidas com as que cruzam o pensamento da mulher naquele momento.
Se o corpo de Carolina aparece sempre deslocado na sala de visita da São Paulo da década de 1960, a imagem dessa mulher sobre a qual sabemos quase nada aparece também deslocada na Juiz de Fora da década de 1980; não só deslocada no espaço, mas como se tivesse sido fotografada em um trânsito entre tempos.
Para além disso, há outro aspecto que faz a foto se destacar: o fato de ser uma das poucas, dentre todas reunidas na busca, na qual uma pessoa negra aparece de corpo inteiro e no centro do quadro, indubitavelmente — se é que é possível usar essa palavra quando o tópico é fotografia — como o sujeito que o fotógrafo queria retratar. Esse aspecto de raridade ganha outra dimensão quando ouço a pesquisadora juizforana Rita de Cássia Félix dizer, em uma live do evento Juiz de Fora: cidade negra, realizado em 2020, que pessoas negras não eram autorizadas a circular na chamada “parte alta” da Rua Halfeld durante parte do século 20. Além disso, ela também faz menção a diversas legislações da primeira década do mesmo século que impediam vendedores ambulantes e outros profissionais informais (quase em sua totalidade pessoas negras, que tinham essas ocupações como modo de sobrevivência no pós-abolição) de estabelecer bancadas ou postos fixos de trabalho, sendo obrigados a manterem-se sempre em movimento com seus equipamentos e mercadorias.
Penso que esses mecanismos racistas de segregação, para além de proibirem o que literalmente proibiam, também funcionavam como um controle eficaz de quem apareceria ou não nas imagens (e na história) da Juiz de Fora moderna, industrial e pioneira do alvorecer do século passado. Sem acesso ao lendário footing da Rua Halfeld, não havia risco de que as lentes registrassem esses corpos indesejáveis; se estivessem sempre em movimento, nunca seriam capturados pela longa abertura dos sensores; seriam borrões, fantasmas, presenças invisíveis no fundo da foto, sempre escapando do tempo do obturador.
Olhar novamente para a foto da viajante do tempo, de pé sobre a linha que um dia segregou (e, de alguma forma, ainda segrega) brancos e negros no calçadão da Rua Halfeld, oferece a essa imagem uma profusão de novos enquadramentos. Fabulo, então, para a nossa viajante, uma inscrição no tempo e no espaço que não opera no regime dos arquivos, mas nos repertórios do corpo, performada pela sua decisão de amamentar ali mesmo, de pé, o bebê. Como propôs a Rainha Conga Isabel Casimira, ao olhar as fotos da construção de Belo Horizonte, vejo na imagem as mãos negras que construíram o Cine Palace, que assentaram as pedras portuguesas do calçadão e que passeiam no plano da foto com seus carrinhos e tabuleiros, rápido demais para chegar a sensibilizar o filme; lembro Carolina Maria de Jesus e fabulo para Juiz de Fora um diário como Quarto de Despejo, um arquivo outro que desestabilize a sala de visitas da Manchester Mineira — e que pode, de fato, existir (ainda anônimo) em alguma prateleira da periferia juizforana.
Na companhia de Saidiya Hartman, olho para essa imagem com a certeza de que o arquivo não é o suficiente para contar sua história e que é preciso fabular outras histórias possíveis para essa mulher, esse cinema e essa cidade, indo além da escassez de evidências históricas. A ideia do filósofo alemão Walter Benjamin de que o passado não é algo concluído e que ele se metamorfoseia de acordo com o presente e o futuro me soa como um convite, nesse sentido. Somos todos viajantes no tempo. O cruzamento da Rua Halfeld com a Batista de Oliveira é uma encruzilhada, afinal de contas, e exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje. Dizer que o Cine Palace foi o último cinema de rua de Juiz de Fora, por exemplo, só é admissível para alguém que achou o fim do tempo e resolveu conferir. Enquanto isso, sigo por aqui, fabulando uma versão do futuro em que haverá muitos outros.