Mundos indígenas
“Në ropë virou exposição e então o povo da cidade vai começar a ouvir e perguntar: O que é në ropë? Assim vocês vão explicar para seus filhos e vamos construindo um caminho para andarmos juntos, lutarmos juntos. Fazer uma aliança, fazer uma união para poder defender në ropë em nosso planeta”.
Com esse depoimento, Davi Kopenawa, xamã yanomami e um dos curadores da exposição “Mundos Indígenas”, nos apresenta uma palavra nova, në ropë. De onde vem essa palavra estrangeira? Nós, “povo da cidade”, poderíamos perguntar. Mas não se trata de uma palavra estrangeira. Das 274 línguas diferentes faladas pelos 305 povos indígenas que vivem hoje no Brasil, në ropë nos traz a sonoridade, o aroma e o saber de um modo de vida que pouco tivemos a chance de conhecer.
Në ropë é simultaneamente um conceito, um alerta e um convite. Um conceito que nos lembra da fertilidade da terra, da riqueza que garante que a vida se dê e se reproduza. Mas também é um alerta que nos indica o quanto o modelo de existência ocidental tem destruído a possibilidade de continuidade dessa fertilidade. E në ropë é, finalmente, também um convite para a aliança, para a luta comum e para um novo caminho de aprendizagem. “Assim vocês vão explicar para seus filhos” diz certeiro Kopenawa pois, o que o alerta nos comunica, não é a reivindicação da impossível reescrita do passado mas, sobretudo, da necessária imaginação de futuros.
Mas como “në ropë virou exposição”? Junto aos Yanomami, mais quatro grupos compostos por curadores e curadoras indígenas dos povos Ye’kwana, Xakriabá, Maxakali e Pataxoop participaram de um processo coletivo de cerca de um ano, convidados pelas antropólogas Deborah Lima, Ana Maria R. Gomes e Mariana de Oliveira, feito de encontros, conversas, trocas e criações. Juntos, tentamos tecer um espaço para a experiência sensível de outros modos de ver, viver e conviver. Enquanto os pajés, artistas, pensadores e pensadoras indígenas traziam suas cosmovisões, nas quais se tornava impossível manter separadas arte e ciência, cultura e natureza, ou mesmo distinguir humanos e não humanos, nós refletíamos, acolhendo a chance da antropologia reversa, sobre o gesto urgente de ocupar os circuitos culturais com outras epistemologias.
A proposição expográfica não poderia deixar inquestionada a problemática materialidade entre nós – a industrialização, o extrativismo, a descartabilidade, o desperdício – diante da experiência cotidiana dos curadores envolvidos, constituída pelo entendimento da vida cíclica dos materiais, do poder de agência dos seres e objetos e de seu saber mítico. O desafio de explicitar a coerência entre forma e conteúdo se baseava em minimizar os elementos construtivos descartáveis, comuns em exposições temporárias, no intuito de podermos planejar de fato “um caminho para andarmos juntos”, como convidou Kopenawa.
E se “cada povo tem o seu jeito de viver, um weichö, um modo de vida próprio”, como explicam Julio David Magalhães e Viviane Cajusuanaima Rocha, curadores Ye’kwana, temos mesmo que repensar o nosso jeito de viver.
São tempos de necessária transformação de hábitos e sonhos, e os curadores Isael e Sueli Maxakali, por sua vez, ao apresentarem o conceito yãy hã mĩy, fluxo de mutação contínua com o qual têm familiaridade desde os tempos antigos, podem nos indicar caminhos.
Desde cedo, em cada gesto, em cada olhar, o modo de vida próprio de cada povo vai construindo os gestos do futuro. Por isso as crianças, com sua simultânea capacidade de perceber e imaginar, constituem um importante público para o qual se volta a exposição. As muitas infâncias indígenas são transportadas para a cidade por meio das brincadeiras que garantem a participação na comunidade e, aqui, estruturam o espaço expositivo. Desenhar, esculpir, dançar, imitar, coletar e ouvir histórias são gestos que as crianças indígenas querem compartilhar com as crianças da cidade.
Importantes pensadores da educação indígena contemporânea, os curadores Célia Xakriabá, por um lado, e Kanatyo e Liça Pataxoop, por outro, constroem propostas epistemológicas próprias. “Nós aprendemos mais com a árvore viva do que com um papel morto. Esse é o saber de quem vive e aprende com o território”, escreve Célia Xakriabá que, ao lado de Edvaldo e do Pajé Vicente, trazem para o pluriverso indígena da exposição o conceito de corpo-território. Já o Grande Tempo das Águas, “o tempo em que tudo inicia, tempo dos brotos, da renovação e do nascer da vida” é o que podemos aprender a perceber na escrita feita desenho de Liça Pataxoop e os alunos da Escola Estadual Indígena Pataxó Muã Mimatxi. “Nenhum povo indígena conhecia caneta e lápis. Nós adaptamos a escola para dentro do nosso espaço de vida. A nossa escola é a nossa comunidade”, explica Kanatyo.
O que perdemos e o que podemos mudar em nossas práticas escolares e universitárias, em nossa convivência comunitária, em nossa míope percepção da diversidade e em nosso mundo cotidiano – ameaçado de autodestruição? A exposição Mundos Indígenas fica em cartaz no Espaço do Conhecimento UFMG de 03 de dezembro de 2019 a 02 de agosto de 2020 e propõe uma visita aos biomas da Floresta Amazônica, Cerrado e Mata Atlântica, guiada respectivamente pelos curadores e curadoras Yanomami, Ye’kwana, Xakriabá, Maxakali e Pataxoop.
Capa: Tehêy Yãmiyxoop do Grande Tempo das Águas | Liça Pataxoop, 2019
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