Um saber tecido com o rio
Produção manual de redes no São Francisco se adapta a mudanças em nome da permanência da pesca artesanal
O pescador Sebastião Ferreira, de 55 anos, conta que estava sentado à beira do Rio São Francisco, trabalhando na fabricação de uma rede, quando recebeu o nosso telefonema. Entre os meses de novembro e fevereiro, o morador de Manga, na região norte de Minas, suspende a pesca devido à piracema, época em que os peixes sobem para a cabeceira dos rios para se reproduzirem. Ele aproveita o período para realizar atividades fundamentais para a pesca artesanal, como o reparo nos barcos e a confecção de redes, tradição que resiste e se adapta aos novos tempos. “Tem ela de fábrica, mas a gente prefere fazer a própria, viu? Aqui dificilmente tem um pescador que não faz”.
O “Seu Tião” tem carteira de pescador profissional desde 1993, mas atua no setor desde os anos 70, quando acompanhava o pai. Ele faz parte da Colônia de Pescadores Artesanais Z-36, que reúne pessoas que vivem e tiram sustento de um dos rios mais importantes do país. O São Francisco nasce em São Roque de Minas, Serra da Canastra, no centro-oeste de Minas Gerais, atravessa montanhas e cerrado rumo ao Nordeste e segue por mais quatro estados, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, num total de 2.638 km de extensão. O rio ainda fornece água para outras quatro unidades da federação, com o Projeto de Integração do Rio São Francisco, que transpõe parte do seu curso para regiões do semiárido nordestino.
Antes de seguir seu curso, porém, o rio fornece os peixes para a comunidade em que vive Seu Tião: dourado, grumatá, surubim e acará são os mais rentáveis, segundo ele.
“A gente costuma sair quatro horas da tarde e pesca a noite toda, só volta no outro dia”. Ele vai acompanhado do irmão, João Ferreira, que depois ajuda na venda dos pescados para a comunidade. Tanto o barco, quanto as redes utilizadas são feitas por eles.
Feituras que resistem e se modificam
A prática da fabricação de redes é um bem inventariado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), registrado, junto a outras práticas tradicionais mantidas ao longo da bacia, no Inventário Cultural do Rio São Francisco, publicação de 2015. O Seu Tião explica que a rede é feita de nylon mole (ele pronuncia como “ní-lôn”), que seria a melhor linha para pegar peixe, apesar do nylon duro também ser utilizado. “Antigamente, a tarrafa [tipo de rede de pesca circular para ser lançada às águas com as mãos] era feita de linha urso, uma linha igual ao nylon mole. Aí depois veio o nylon mole”. A linha é atada a uma agulha de um lado e a uma estrutura firme de outro, como um prego, onde são feitos os nós. A depender do tamanho, a produção de uma rede pode durar até quatro meses.
A confecção dessas ferramentas de trabalho precisa seguir algumas regras exigidas pela legislação ambiental. “É proibidíssimo pescar com uma rede de malha fora da bitola”. A bitola é o espaço entre as linhas da rede, que determina o tamanho dos peixes que serão apanhados. Essa determinação evita que peixes menores, ainda em desenvolvimento, sejam capturados, o que prejudicaria a reprodução das espécies ameaçadas que vivem no rio.
“Eu acho que, historicamente, os pescadores artesanais foram se adequando e produzindo inovações que também mantêm seus conhecimentos”, explica Cláudia Luz, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (Niisa), da Unimontes. “Eles vão incorporando essas mudanças, inclusive da legislação”, como no caso das redes. Antes da chegada das linhas de nylon, o processo era mais demorado, segundo os registros do Iepha-MG. Os produtores extraíam fibras de plantas como caruá e piaçava, conhecidas por sua resistência, e as transformavam em fitas por meio de processo de secagem, para só então se tornarem redes.
Mas a modernização não trouxe apenas facilidades para os trabalhadores da pesca. As intervenções realizadas pela construção de barragens para hidrelétricas e grandes empreendimentos de irrigação mudaram o ciclo hidrológico do rio. A pesquisadora Ana Thé, também integrante do Niisa, relata que, anteriormente, o período de cheias carregava uma grande quantidade de peixes, que se desenvolviam depois de nascer nas margens e lagoas marginais após a piracema. Como agora a vazão do rio é controlada pela abertura e fechamento das barragens, as cheias nem sempre coincidem com a fase de crescimento dos peixes, o que reduz as chances de pesca. “Para ter algum retorno na alimentação, eles precisam garantir que apetrechos como a tarrafa passem a ser mais eficientes, para garantir o pescado tanto para consumo quanto para comercialização”. É aí que entram linhas mais firmes, como é o caso do nylon.
Ana Thé explica que os pescadores vivem em negociação com as mudanças, absorvendo parte delas e rejeitando outras. Ela cita como exemplo uma linha de financiamento criada pelo governo federal na década passada para compra de barcos maiores, que não teve o sucesso desejado porque não atendia às necessidades dos pescadores e não se adaptava ao tipo de pesca praticado no rio. “Eles têm um modo de vida que necessita de determinadas tecnologias, e eles têm mantido essas tecnologias porque elas são eficientes”.
Uma ameaça real às atividades de pesca artesanal é a chegada da agricultura em larga escala, que provocou a expulsão dos ribeirinhos. Segundo Cláudia Luz, parte deles migra para outras atividades, como corte de cana e lida com o café, enquanto outra, resiste às margens do rio. Esses precisam enfrentar a burocracia, como cursos de atualização para manter a carteira de pescador profissional, e a legislação ambiental, que recai com mais peso sobre eles. “São legislações bastante restritivas para as pessoas que vivem disso e que autorizam muito tranquilamente a pesca para turistas”, afirma Luz.
Militante do Movimento de Pescadores e Pescadoras (MPP), o Seu Tião luta por melhores condições para pessoas como ele, que vivem da relação com os rios, em um processo que começa na fabricação das redes e termina nos pratos. Em meio a essa trama, que envolve defesa da preservação e adaptação às mudanças, ele teme pela continuidade da pesca artesanal. Seu filho, por exemplo, tem 17 anos e se interessa por outros tipos de rede, as de futebol. Já fez até teste para jogar em um time de São Paulo. “Na época antiga, a gente ganhava dinheiro. Hoje é mais difícil e os filhos não se interessam mais”.