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A gente é de festa porque a gente é de muita luta
Uma conversa com o músico, compositor e educador Juventino Dias, que também é um dos vencedores do Prêmio BDMG Instrumental 2023, sobre a presença da musicalidade afrodiaspórica alicerçada na tradição religiosa do Reinado e das bandas marciais na sua vida, e a relação com a prática musical urbana contemporânea em diferentes espaços e formatos
Juventino Dias, em conversa com Maria Luiza de Barros e Paula Lobato
Eu sou um homem negro nascido no interior de Minas Gerais, na cidade de Carmo do Cajuru. O centro-oeste mineiro é uma região atravessada pela raiz dos povos Bantus , e minha família é da tradição religiosa mineira do Reinado, também conhecido como Congado. Desde pequeno estou imerso nessa reelaboração religiosa dos negros bantus aqui de Minas. Minha família é uma família negra, grande e numerosa. Louvamos os santos através do Rosário e eu faço parte dessa tradição.
Nasci no início da década de 1980, e cresci nessa cidade do interior lendo livros, correndo no mato, caçando frutas, nadando no rio, caçando passarinho e soltando papagaio – brincadeiras essas que eram comuns na época. Eu frequentava as festas de Reinado, e minha cidade também me apresentou a tradição das bandas de minas, com a qual tive contato muito cedo. Carrego comigo essas duas tradições importantíssimas que os homens negros da diáspora carregam.
Desde a época das colônias, o ofício de tocar sempre foi atribuído aos homens negros. Em Minas Gerais, existem, hoje, mais de 800 bandas marciais cadastradas, sendo o estado com o maior número de bandas do país. Faz parte da tradição que essas bandas de minas sejam compostas por pessoas da mesma família, e a família do meu pai, com meus avós e seus irmãos, abastecia a banda de um lugarejo próximo da cidade de Pará de Minas, também no centro-oeste do estado. Como eu era um menino muito ligado em arte, quando tinha 10 anos, me inscrevi para participar da Associação Musical Cajuruense. Na época, o finado maestro Boró, José Vital, falou comigo: “Esse pretinho aí beiçudo vai tocar piston, vai ser um grande pistonista” . Não foi uma fala pejorativa. Ele já sabia, como grande mestre de banda, que eu teria afinidade, porque sentiu. Maestro Boró me abençoou dessa forma, e até hoje estou com o trompete.
Na banda municipal, eu tocava instrumentos de sopro, e também tinha contato com instrumentos de corda, que os meus amigos compartilhavam. O maestro era muito inteligente e talentoso, e, como a banda tinha muitos jovens, ele fazia arranjos de músicas contemporâneas, o que era novidade para nós. No final da década de 1990 e começo da década de 2000, nossa banda foi muito promissora e chamava muita atenção por ter tantos integrantes jovens. Minha infância foi muito musical, de muita experimentação. Recebendo e ouvindo, sempre no meio de músicas religiosas e também dessa banda, que tocava músicas dos mais variados estilos.
Descobri posteriormente que a minha família paterna, que é da região de Pará de Minas, era uma família musical. Uma tia mais velha me contou recentemente que meus tios paternos eram sopradores, tocadores de instrumentos, e também meu avô era sanfoneiro, agitador de festa. Ela me mandou esse arsenal de informações, que foi uma grande surpresa para mim. Então, acredito que minha descendência de música, esse legado de tocador, seja um legado ancestral paterno. E olha que eu carrego o nome do meu avô paterno: eu sou Juventino Antônio Dias Neto, e, na minha família de seis irmãos, só eu sou músico. É muita herança.
Enquanto o lado paterno é o lado festeiro, dos que tocavam, compunham e tinham banda, o lado materno é o lado da tradição do Reinado. Meu avô materno Joaquim Luiz Gonçalves era Rei Perpétuo da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Herdamos a coroa e a missão de dar continuidade à tradição do reinado dos ancestrais, por isso sempre recebemos o festejo em nossa casa. O vovô casou três vezes, então a avó que eu conheci e que ajudou a nos criar foi a avó Maria Filomena das Graças, sua terceira mulher. Ele foi coroado com a primeira avó, mas a avó Filomena casou-se posteriormente com ele e herdou essa coroa perpétua da Irmandade de Nossa Senhora de Fátima.
O Reinado é uma reelaboração religiosa trazida pelos negros, uma forma de resistência histórica do povo negro em Minas e, pra mim, é o traço mais marcante da cultura afro-mineira. No Reinado, os cantos são elaborados pelos capitães e os partícipes utilizam-se de instrumentos peculiares próprios desse contexto religioso, como a gunga, o patangome, os pandeiros e as três caixas. No Reinado do centro-oeste mineiro não se toca instrumentos de sopro. Eu já vi uma inserção de sopros no Reinado, com um pessoal do Triângulo Mineiro, de Uberaba e Uberlândia. A arte, a cultura e a religião não são estáticas, então eles experimentaram misturar, mas o Reinado tradicionalmente não tem sopros.
No festejo deste ano, eu vou ser coroado Rei, para ajudar a irmandade. Carrego uma coroa sendo Rei pequeno, que é um cargo honorífico para reinadeiros atuantes. Nossa Festa de Reinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga da cidade, completará 140 anos ininterruptos. A Festa de Reinado é mais antiga que a cidade de Carmo do Cajuru. Isso é comum em quase todas as festas do Reinado de Minas Gerais. Em cidades como Oliveira, Itaúna e até mesmo Ouro Preto e Mariana, que são todas bem antigas, as festas já acontecem há 200 ou 300 anos, ininterruptas. Então, a Festa de Reinado, a festa dos pretos, é muito tradicional e é um instrumento de luta e de resistência do povo preto. Ela não pára.
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Ser um músico de banda na década de 1990 era muito importante para o menino do interior, porque a banda era responsável por toda uma atividade cívica e de entretenimento na cidade. Na igreja, chamavam a banda; quando inauguravam alguma coisa, chamavam a banda; em uma solenidade de rua ou desfile cívico, chamavam a banda; quando tinha um baile, chamavam a banda; tudo era a banda. Quando eu saía na rua, era conhecido como o “menino da banda”. Eu me sentia importante mesmo com a bandinha de alunos amadores, essa experiência foi fundamental para a minha socialização e para a de outras pessoas que conheço. Éramos chamados para nos apresentar por todo o centro-oeste mineiro, e, nessa época, também participávamos dos encontros de bandas, que aconteciam a cada mês em uma cidade. Com 14 anos, eu, menino, já conhecia mais de 20 cidades de Minas Gerais.
A banda era muito ativa e isso era muito prazeroso. Ali eu experimentei, novamente, o coletivismo que aprendi com mamãe, com o povo da Irmandade do Rosário, com o povo preto da cidade. Sempre andando em coletivo, fui pra banda também em coletivo. Sempre me entendi como uma pessoa coletivista. Por volta dos 16 anos, comecei a ficar conhecido como trompetista na região. Minha cidade é muito próxima a Divinópolis, que é uma capital do centro-oeste mineiro, hoje com cerca de 200 mil habitantes. Nessa época, comecei a tocar profissionalmente: toquei em carnavais de rua, em festas, acompanhando bandas de garagem.
Comecei a tocar também com diversas bandas de baile de Divinópolis, mas eu trabalhei rodando pelo estado todo: o norte de Minas, o Vale do Jequitinhonha, o centro-oeste, o sul de Minas… e também São Paulo, Rio de Janeiro. Rodei muito. Naqueles bailes famosos, durante 4 ou 5 horas, os músicos tocam todos os estilos. Tocamos todos os gêneros musicais, e aprendemos copiando os grandes artistas. Então, antes de começar a estudar formalmente, sou um músico formado na escola de baile, sou cria disso.
Aos 18 anos, fui para a Escola de Música Maestro Ivan Silva, em Divinópolis, para me especializar em trompete, estudando com a professora Madelon de Lellis. Madelon foi a primeira mulher formada em trompete pela Universidade Federal de Minas Gerais e também foi minha primeira mestra, a pessoa que me deu a metodologia para realmente crescer no instrumento. Estudando com ela, em 2003, entrei na UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais). Eu toquei em bailes de 1998 até 2004, então eu já cheguei na faculdade com um nível alto de performance, um músico pronto.
Quando parei de tocar no baile, fui tocar com os mais velhos, pelo Sesc, nos programas Minas ao Luar e Minas em Serenata. O grupo era formado só pelos “coroas”, os chorões seresteiros, que sabiam das coisas. Nessa época, eu me encontrei com o choro, também virei chorão, e foi de aprendizado demais. Além disso, fui muito ativo nos grupos da UEMG e integrei grupos artísticos da Universidade Federal (UFMG), como a Banda Sinfônica e a Geraes Big Band. Depois do Sesc, eu viajei em turnê pela primeira vez com a banda Vira e Mexe, de samba duro, tipo Harmonia do Samba, e abrimos muitos shows de bandas de axé do primeiro time. Sempre fui um fio condutor, um homem de fazer pontes. Sempre gostei de ser eclético, de escutar de vários estilos de música. É essa miscelânea.
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Me reconheço há muito tempo como uma pessoa mambembe, uma pessoa em constante deslocamento. Gosto das andanças, das idas e vindas, o deslocamento é um lugar em que me sinto confortável. De certa forma, desde pequeno, com essa sementinha de música que o Maestro Boró plantou em mim e com as viagens que eu sempre fiz, acabei me fortalecendo para vir para Belo Horizonte, e me adaptei muito fácil à cidade. Como eu estudava muito, estar em Belo Horizonte para me aprimorar no trompete foi uma época de muito aprendizado e de encontrar gente vinda de todo lado. Minha mãe me perguntava: “Você não volta mais, não?”. Para mim, que sou inquieto e gosto dessa vida dinâmica, estar em uma capital cosmopolita foi sensacional.
Quando conheci a Universidade Federal, no início da década de 2000, era um lugar muito mais elitista. Sabendo que esse é um espaço onde até hoje muitos homens negros e mulheres negras não têm a oportunidade de estar, sempre entendi a importância de um rapaz interiorano, negro, se especializar e ser um acadêmico. A importância de estar nas ruas, mas também de ser diplomado. Então, frequentar um espaço acadêmico sempre foi resistência para mim. E esse foi um momento de construir conhecimento a partir de outro sistema, de um plano cartesiano, e de fazer pontes profissionais importantes.
Quando entrei na faculdade, percebi que os professores constantemente me apresentavam saberes baseados na cultura europeia. Apesar de não trabalhar com a música de concerto, erudita, pude ampliar meu conhecimento e repertório. Mas, de cara, vi o epistemicídio das produções não eurocêntricas e isso já me incomodou e incomoda até hoje. Há uma frustração de não estudar a música brasileira, e muitos músicos criavam embates com aquela música clássica européia, procurando referências de instrumentos das nossas produções afrolatinas, das músicas da diáspora africana. Ainda estamos engatinhando rumo a uma música que represente essa ligação com o que temos de legado cultural. Quando consideramos as culturas não eurocêntricas, estamos falando de um conhecimento muitas vezes oral, que depende de convivência, de estar junto, de ouvir e de experimentar. Para que esses conhecimentos possam ser estudados, possam ser temas de teses e artigos, isso não pode ser feito com superficialidade.
Também pude mostrar para meus contemporâneos na universidade que minha formação não passava só por aquele sistema de educação cartesiano, com referências europeias, que desconsidera o legado oral, os griôs, os indígenas e o povo preto. Foi muito difícil. Não se falava, dentro do ambiente acadêmico, da importância dos candomblés para a música popular brasileira. Os candomblés foram e são grandes faculdades que mantiveram um legado afrodiaspórico gigante, que é fundamental para a formação de vários gêneros da música popular. No final do curso, eu já não aguentava mais aquela caixinha européia. O desinteresse por parte da academia pela cultura verdadeiramente brasileira é uma prática racista, e, no fundo, quer apagar o que temos de legado. As pessoas não conhecem e não querem saber, com profundidade, da diversidade e pluralidade do nosso Brasil. Ignoram as tradições da nossa terra. Não aguentei, porque realmente queria falar desse lugar, e é muito frustrante, para quem conhece nosso país, estar em um ambiente onde o povo não o conhece. Um Brasil que não conhece o Brasil, que o conhece superficialmente ou a partir de uma régua eurocêntrica.
Depois que concluí o curso, conheci o Projeto Tambolelê, liderado pelos artistas e educadores negros Sérgio Pererê, Santonne Lobato e Geovanne Sassá, que foi muito importante para a minha formação. O Tambolelê é um grupo artístico e um centro cultural do bairro do Glória, região noroeste de Belo Horizonte, que tem um trabalho com a diáspora africana. Eles cumpriam um papel não só musical e artístico, mas também social, honrando o legado desse tronco dos negros bantus que aqui pisaram. Esse legado permanece. Com o Tambolelê, dei aulas em mais de dez cidades de Minas, pelo projeto TIM Tambores. Nossa proposta era justamente misturar sopros e tambores. Embora a gente tenha a tradição das bandas de minas e do Congado em várias cidades do estado, essas duas manifestações nunca se encontram. Para mim, isso se deve ao preconceito, porque as pessoas não entendem a importância da representatividade da religiosidade do preto mineiro como cultura verdadeira. Nós propusemos esse encontro, uma vez que, dentro dessa pesquisa, desse legado, muitos dos músicos que tocavam na banda eram congadeiros também. Com o Tambolelê, viajei as maiores e melhores turnês para fora: para a América do Sul, para a América do Norte, para a Europa, e alguns outros lugares.
Tenho comigo que essa ferramenta musical que eu carrego, que me ajudou a me emancipar, pode ser e continua sendo útil para as próximas gerações. Enquanto educador, costumo falar que o novo sempre vem. No legado do lugar e das tradições de onde venho, sempre mantemos o diálogo com as crianças, os adolescentes e os jovens. Para a nossa cultura negra, essa mistura é a mola propulsora que vai fazer com que a cultura permaneça. Eu reconheço em meu maestro José Vital Filho a alma do grande educador, e a vejo também nas minhas experiências próprias. Tenho investido em metodologia de ensino e em pedagogia para passar esse legado de instrumentista de sopro e percussão. É importante entender a música e a arte enquanto ferramentas de socialização. Considero que o principal é formar cidadãos melhores através da arte. Quando um aluno meu realmente escolhe a arte, fico muito feliz, mas o mais importante é que ele faça boas escolhas de vida, que realmente seja mais sensível, entenda as diferenças, entenda toda a diversidade do nosso país. O maior valor da música é como ela pode construir uma pessoa melhor.
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Para mim, a afromineiridade é a relação que Minas tem com as tradições afrobrasileiras e afroameríndias. Acredito que a tradição do Reinado é o traço mais forte e peculiar da nossa cultura afromineira, que não vemos em outro lugar. Em Minas Gerais, temos candomblés de várias nações, como o Ketu e o Bantu, ou Angola. No candomblé Bantu, aprendemos que o negro da diáspora, que chegou aqui sem conhecer a terra, foi apresentado a ela pelos indígenas. Nesse culto tem muita coisa que não é de África, como os cultos aos pajés, às entidades da terra, algumas benzeções e rituais que são reelaborações a partir do que o negro encontrou aqui. Então, assim como tem afromineiridade, o candomblé também tem muito de indígena.
A cultura do Reinado é também permeada de coisas muito peculiares, que não são necessariamente negras, mas de uma matriz ancestral indígena. Vemos isso também nas umbandas em que se cultuam entidades ancestrais que não são os orixás, como os pretos velhos, os marinheiros, os marujos, as pretas velhas, as pombagiras. Nas comunidades ribeirinhas, dos povos do meio do mato, também vemos essa ligação do preto com o indígena, na fusão do “caboclo”. Acho que a afromineiridade é isso. A familiaridade para mim é essa conexão com o traço afrodiaspórico e com os povos originários de Minas Gerais. Por mais que o nome seja afromineiridade, a mistura desses dois povos que foram alijados e se fortaleceram juntos, dentro do possível, é indissociável. O que eu compreendo como afromineridade é toda expressão que sofre influência dos Reinados, dos Candomblés, das Umbandas e da cultura popular de raiz.
Dessa relação, eu carrego sempre comigo os meus símbolos: o meu Rosário e a minha conta são minhas insígnias. Os ritmos também estão sempre comigo, porque a célula mater do ritmo mais famoso do Brasil, o samba, veio dessa raiz afrodiaspórica. Então, sempre vai ter muito ritmo, muito movimento na minha música. E uma coisa que eu não gosto, que o colonizador fez, é dissociar a expressão do corpo da música. Quando viemos sequestrados de África, nos deixaram sem nada e a gente tinha só o nosso corpo. Sabendo da potência desse corpo, o colonizador tratou de tolir e estigmatizar o corpo negro. Historicamente, a nossa dança é considerada pejorativa, sendo diversas vezes proibida. Quando querem limitar certos comportamentos, tolir o corpo negro de dançar, isso é também epistemicídio. É racismo, porque o africano não dissocia o corpo da dança e da música.
Eu sempre aprendi a fazer uma música muito dançante por não querer dissociar o corpo da música. Sabe essa coisa de ter que ouvir um jazz e ficar sentado? Sabe esse consumo do jazz como um produto enlatado do Tio Sam? Essa usurpação do jazz, de querer fazer dele uma coisa elitista, sendo que sempre foi um som criado pelos negros, dançante e festivo – isso me tira do sério. Porque o nosso corpo baila, dança e é arte. Então, os nossos ritmos, que são dançantes, sempre vão estar no meu trabalho. O corpo, junto do ritmo, é pura ancestralidade, é um jeito de se comunicar e, portanto, sempre vai estar na minha música. O meu show nunca vai ser parado, sempre vai ser dançante, porque a nossa música é pulsante, afropulsante.
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A gente precisa estar perto das nossas referências. É estando perto, nos divertindo, conversando que a gente aprende as mínimas coisas. Eu estou sempre perto dos mestres, aprendendo com os mais velhos a nossa cultura griô vinda de África. Aprendo com as Ialorixás do Candomblé Daisy Lisboa, Cássia de Dandalunda e Glaucia Regina. Com os Pais de Santo da Umbanda, Pai Joviano de Oxossi e Ricardo de Moura. Aprendo com o Mestre Seu Nego, lá de Carmo do Cajuru, que é um artesão, construtor e artista de 91 anos, que segue construindo tambor para várias Irmandades Reinadeiras em todo o Brasil. Convivo também com o Maestro Divino, que é da banda de Malacacheta, e estamos sempre em contato. Aprendo com Babalorixá Rogério, um grande conhecedor do candomblé e principalmente com os Mestres de Tradição que convivem comigo no Coletivo Babadan Banda de Rua, os Capitães do Reinado Aldo Bibiano, Talles Bibiano e Davidson Inácio, os Ogãns Acauã Ranne e Pablo Oliveira e com o Maestro William Alves.
Eu sou um homem coletivista e eu sempre gostei de aparecer coletivamente, mesmo quando o meu trompete é o solista da banda. Mesmo que às vezes meu nome esteja à frente, minha construção será sempre através do trabalho coletivo. O público sempre verá que o meu trabalho é construção coletiva. Sempre será assim. No coletivo Babadan, no coletivo Chama o Síndico, no coletivo Black Machine, em todos esses que eu defendo e estou junto, todo mundo tem uma preocupação com a construção do conhecimento e sabe da importância de a gente educar para ter seres humanos melhores, fazendo o que a gente gosta. O sucesso para nós é isso, não estamos atrás de fama.
A pandemia mexeu muito comigo, e me transformou em um compositor. Minha veia artística para esse lugar que o compositor guarda em seu interior conseguiu vir à tona. Não que eu não compusesse antes, eu fazia arranjos e melodias. Mas veio uma coisa diferente. O Prêmio BDMG Instrumental coroa essa minha nova fase como compositor. Meu trabalho está sendo como eu sempre quis que fosse, andando com os meus amigos, tendo gente nova ao meu lado.
Ser um dos vencedores do BDMG Instrumental é muito importante. Eu, com 43 anos, fui campeão tocando com uma banda de amigos. Com o percussionista Thales Bibiano, que conheci menino, com 10 anos, lá de Brumadinho. O Thales Capitão na tradição do Reinado, sou amigo de toda a sua família, e pude vê-lo chorar comigo de felicidade por a gente ter ganhado. Toquei com o Silas Prado, somos contemporâneos e do interior, de bandas, filho de maestro. Estava com Isaac Couto, um grande baterista do norte de Minas, de Almenara. Com Vini Ribeiro, que é um músico maravilhoso, contrabaixista e compositor do Serrão, representante das comunidades belo-horizontinas. E com o talentosíssimo pianista Davi Horta, o caçula da banda, com 17 anos. Essa apresentação foi do jeito que tinha que ser. Tocando com os mais novos, com os meus contemporâneos, fazendo uma música que a gente acredita. Fazer o que eu acredito é isso.
Uma das músicas que defendi no BDMG Instrumental, chamada “Presença de Mestre”, eu compus em homenagem ao meu professor, Mestre Leonardo Alabê, um grande percussionista, ogã e conhecedor da liturgia do candomblé Ketu/Angola. Era com ele o meu principal aprendizado dentro da tradição do candomblé Bantu/Ketu, mas ano passado nós o perdemos. Foi muito difícil para nós perder uma pessoa que tinha muito a ensinar ainda. “Presença de Mestre” é, então, uma homenagem póstuma a uma pessoa muito importante para a tradição do candomblé de Minas. Essa música estava na apresentação do prêmio BDMG Instrumental e também estará nos meus shows de vencedor, que acontecerão nos dias 08/11 em BH e 28/11 em São Paulo. Nesses shows contarei com a presença especialíssima do Mestre percussionista Gabi Guedes, que aprendeu percussão com os Alabês do prestigiado Terreiro de Gantois na Bahia. Ele é um dos mais importantes percussionistas do Brasil em atividade. Nessa empreitada de defender a música afrodiaspórica com meu trompete, quero dançar durante e depois, quero comemorar muito. Tocar uma música alicerçada nas tradições negras necessita de muita festa. Eu adoro o palco e tenho esse legado de festeiro. Então, não tem como tocar sem depois comemorar os louros dessa conquista. Nosso povo preto, a gente comemora quando a gente vence. A gente é de festa porque a gente é de muita luta. É uma vida muito custosa, como diz mamãe e como dizia vovó, e a gente precisa comemorar. Salve Maria, Motumbá, Asè!